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2. A NATUREZA DO EIKÓS COMO PREMISSA CULTURAL

3.5. Luciano de Samósata

A constituição de um ‘gênero’ que apreendesse as narrativas fictícias em prosa com certeza só se deu depois de longo processo de um jogo entre realidade e ficção, momento este que está presente na problematização de um grande número de textos do séc. II d.C. Ainda nessa fase de ‘surgimento’ e ‘transição’, encontra-se o texto Das Narrativas Verdadeiras, de Luciano de Samósata, que pretende distinguir o que ele chama de ‘mentiras’ de um texto que as utiliza intencionalmente, apresentando-se ficcional em prosa250. O Das Narrativas Verdadeiras apresenta a intencionalidade e a permanência de um elemento forte para o processo de imitação: a liberdade de ficcionar, de efabular, ou seja, a possibilidade de acrescentar à imitação o que não é verdadeiro, mas o que é possível. Tendo lido os antigos poetas, historiadores e filósofos, Luciano percebe nesses ‘gêneros’, tidos como verdadeiros, elementos de ficção (ψεῦδος) contrários à verdade que estes escritores afirmavam apresentar nos seus discursos. A proposta do Das Narrativas Verdadeiras é, então, extrapolar o verossímil que se opõe ao real e ser um texto propositadamente ficção, que não diz veracidades e nem mesmo possibilidades verossímeis, além de não possuir compromisso com a verdade, permitindo que a ficção se construa por si. As primeiras palavras do texto já se mostram inquietantemente lúcidas para apresentar tal abordagem um tanto ‘vestida’ de novidade:

Tendo lido todos esses autores, não os reprovei em demasia por mentir, uma vez que percebi que isso já é habitual até para aqueles que professam a filosofia. Algo neles, porém, me deixou admirado, que julgassem que passariam despercebidos ao escrever inverdades. É por esse motivo que também eu próprio, dedicando-me, pelo desejo da vanglória, a deixar algo à posteridade, a fim de que não fosse o único excluído da liberdade de efabular, já que nada verdadeiro podia relatar – nada digno de menção havia experimentado –, me voltei para a mentira, em muito mais honesta que a dos

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“Normalmente, (...) os diversos signos ficcionais não indicam que por eles se opera uma oposição à realidade, mas antes algo cuja alteridade não é compreensível a partir dos hábitos vigentes ao mundo da vida” (Lebenswelt) (Iser, W.: 1979 p.397) (Apud Costa Lima 1986).

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demais, pois ao menos nisto direi a verdade: ao afirmar que minto. Assim, a mim me parece que também escaparei da acusação dos outros, eu próprio concordando que nada digo de verdadeiro. Escrevo, portanto, sobre aquilo que nem vi, nem sofri, nem me informei por outros e ainda sobre seres que não existem em absoluto e nem por princípio podem existir. Por isso, os leitores não devem de forma alguma acreditar neles251.

Luciano tem a intenção de evidenciar que seu texto é construído no contexto que ele chama de “liberdade de efabular”, ao contar histórias com mentiras, que ele identifica já ser “habitual até para aqueles que professam a filosofia”. Sua manifesta percepção do caráter não-verídico em que transitam os outros textos não é a questão de seu problema, mas sim o fato de que todos “julgassem que passariam despercebidos ao escreverem inverdades”. Reconhecendo também as muitas possibilidades que as ‘inverdades ficcionais’ dão à narrativa, que possibilitam a ele e a tantos outros escreverem feitos grandiosos que não viveram e nem mesmo existem, ele se justifica na ‘mentira’, porém afirmando que mente. Luciano tem como principal preocupação mostrar sua honestidade ao demonstrar que seu texto transita no campo do fictício, diferentemente de como agem os outros ‘efabuladores’, que espalham mentiras, como o próprio Ulisses, que ele classifica como “mestre nesse tipo de bufonaria”, por seus relatos aos feácios. Luciano reconhece as muitas possibilidades que as ‘inverdades ficcionais’ dão à narrativa, as quais possibilitam a ele e a tantos outros escreverem feitos grandiosos que não viveram e nem mesmo existem, a partir do que puderem transcender de uma representação apenas realista:

Não apenas lhes será atraente o insólito do tema ou a graça do projeto, nem que declaro mentiras variadas de maneira convincente e verossímil, mas que também cada uma das coisas relatadas alude não sem comicidade a alguns dos antigos poetas, historiadores e filósofos que muitas

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coisas prodigiosas e fabulosas escreveram. Eu mencionaria seus nomes, caso não fossem se tornar evidentes durante a leitura252.

Para reforçar as fraudes e as mentiras dos outros escritores que não se ativeram à verdade e não foram honestos para afirmarem isto, Luciano cria um episódio de punição para estes:

As maiores punições entre todas suportavam-nas os que de algum modo mentiram ao longo da vida e os que não escreveram a verdade, entre os quais estavam Ctésias de Cnido, Heródoto e muitos outros. Então, ao vê-los, eu tive boas expectativas para o porvir. Pois tinha consciência de que eu mesmo nenhuma mentira havia contado253.

Também no bom humor desta passagem é possível ver a preocupação de Luciano com a recepção do seu texto de não ser tomado como verdadeiro. Tim Withmarsh (1993 p. 105) aborda este momento de questionamento do lugar do fictício, do ponto de vista da recepção dos textos. Como ele afirma, “a narrativa de recepção histórica é sempre apresentada como real, sólida e necessária, até mesmo pelos mais céticos dos críticos”, ou seja, o elemento ficcional em que transitam os textos históricos antigos, ainda não ‘bem identificado’, é o mesmo que Luciano problematiza dizendo utilizar como ponto de partida para o seu texto, de forma ainda um tanto ‘ousada’. Este elemento ficcional é o que coloca a verdade historiográfica em questão, colocando-a como uma proliferação infinita de narrativas potenciais. A abordagem de Luciano também inicia a teorização do romance, como uma narrativa essencialmente ficcional a partir da imitação de ações reais. Brandão (2005) trabalha a fronteira entre a historiografia e a ficção que foi palco para o desenvolvimento do romance como um gênero que marca uma nova ‘forma’ discursiva:

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Das Narrativas Verdadeiras I, 2. 253 Das Narrativas Verdadeiras II, 31.

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O que determina o surgimento do romance como um novo gênero capaz de marcar sua diferença em face da historiografia é tão somente o abandono do invólucro historiográfico, permitindo que a ficção se construa sem outro balizamento que a própria ficção. Dito de outro modo: a historiografia pode lidar normalmente com o fictício, que se imiscui nela quase que naturalmente; para o reconhecimento do romance como gênero é necessário, entretanto, deixar de lado a verdade e representar, para o leitor, algo que se apresente, intencionalmente, como ficção. Isso, de fato, só se inventa no segundo século. É novo então254.

O que o romance traz de novo não é a forma, como Aristóteles expõe na Poética, pois não é a prosa que difere a historiografia dos gêneros mais literários, assim como não é a prosa que inova e sustenta o surgimento do romance, mas sim seu caráter essencialmente fictício. Como afirma Withmarsh (2005 p.110), “a verdadeira história do romance reside no que tomam como uma heterodoxa compreensão da verdade”, pois, a partir da grande possibilidade fornecida pela ficção é que a narrativa se distancia de ser um mero acontecimento real255.