• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II Relação entre Saber, Poder e Modos de Subjetivação

2.1 Discurso

Ao propor analisar os discursos sobre família proferidos pelos Psicólogos e Assistentes Sociais dos CRAS, toma-se, então, o discurso no sentido foucaultiano, não pressupondo apenas algo que foi dito, mas um discurso que é produzido na prática (Foucault, 1969/2008; Gregolin, 2006), já que um dos objetivos dessa dissertação é analisar as práticas desses profissionais com as famílias. Logo, os discursos não devem ser concebidos como um conjunto de signos ou a mera fala, mas como práticas que formam os sujeitos que os proferem, bem como os objetos de que se fala (Foucault, 1969/2008).

Nesta perspectiva, o sujeito deve ser compreendido como um objeto que foi/é constituído historicamente a partir de determinações consideradas exteriores, tendo uma gênese, uma formação e uma história que lhe permitem se constituir por meio de práticas tanto de poder, como de conhecimento ou por técnicas de si (Revel, 2005).

A respeito desse sujeito, cabe destacar que cada discurso define uma diferente função para ele já que esse sujeito ocupa vários lugares e esse discurso depende do lugar que esse sujeito ocupa no momento que profere tal discurso e não outro (Gregolin, 2006). No entanto,

cabe refletir que esse sujeito nem sempre conhece o que diz. O que se sucede em virtude dessa dispersão do sujeito em relação ao exterior e a si mesmo (Foucault, 1969/2008). Por isso,

[...] o discurso é o que realmente é dito, sem que o sujeito saiba que está dizendo outros sentidos ao dizer. As práticas se impõem ao sujeito – ele não tem consciência do que é essa prática e age de acordo com as determinações de uma certa sociedade (Gregolin, 2004, p. 41).

Ou seja, o discurso não é manifestado por um sujeito que pensa e conhece o que diz, mas a partir da dispersão desse sujeito, que ocupa diversos lugares, e da sua descontinuidade em relação a si mesmo, já que é no espaço de exterioridade que ele desenvolve esses diferentes lugares, pois o que o sujeito diz não é dito de qualquer lugar (Foucault, 1969/2008). Assim, pode-se dizer que o discurso é um conjunto de enunciados que obedecem às regras comuns de funcionamento (Revel, 2005). Esses enunciados podem ser entendidos como a unidade elementar do discurso, onde uma frase, proposição ou ato de fala possui uma função enunciativa, são produzidos por um sujeito historicamente determinado que ocupa uma posição, um lugar institucional que o define e que possibilita que o discurso seja enunciado (Gregolin, 2006).

Ou seja, diz respeito ao poder o qual se deseja alcançar através do domínio da verdade. As instituições – como o Estado, as instituições escolares, por exemplo – oferecem discursos prontos, da ordem das leis, que dominam um poder, uma verdade e que exercem certa coerção para com os indivíduos, que a elas pedem legitimidade e autorização (Foucault, 1971/2009). Logo, o discurso pode ser entendido como o “eco lingüístico” que articula o saber e o poder, possuindo uma função normativa e reguladora (Revel, 2005).

Pensando nessa função, há de se pontuar que existem três sistemas de exclusão que atingem o discurso: a palavra proibida (interdição), a segregação da loucura e a vontade de verdade. O primeiro deles é a interdição, que diz respeito ao fato de que há ainda um tabu – tabu do objeto – em relação a determinados assuntos, logo, não se tem o direito de dizer tudo o que se deseja, por isso, fala-se em palavra proibida e isso logo revela o jogo de desejo e poder que permeia os discursos: o discurso é o poder que se deseja apoderar (Foucault, 1971/2009).

O segundo princípio de exclusão é a rejeição, que se relaciona com a segregação da loucura que foi supracitada. Esse princípio, mais do que indicar que não se pode falar tudo o que se deseja, indica também a rejeição dos discursos que não são considerados como verdadeiros, que não possuem importância e que não podem circular. Como exemplo, Foucault menciona o discurso do louco, que por muito tempo foi – e ainda o é – rejeitado, considerado nulo e sem valor (Foucault, 1971/2009).

Sobre o terceiro princípio, o da vontade de verdade, o autor fala sobre a oposição entre o verdadeiro e o falso, oposição essa que é constituída historicamente. O discurso considerado verdadeiro era o discurso a que se tinha ao mesmo tempo respeito e terror porque a ele estava submisso. Logo, essa vontade de verdade encontra-se apoiada institucionalmente, sendo o discurso e seus princípios de exclusão reforçados pelo conjunto de práticas dessas instituições e os discursos destas passam a exercer um poder de coerção sobre os outros discursos (Foucault, 1971/2009).

Logo, os sujeitos recebem o discurso das instituições, que realizam uma apropriação social dos discursos, passando a gerenciá-los (Foucault, 1971/2009; Gregolin, 2006). No caso desta dissertação, esse aspecto mostra-se importante para conhecer os discursos sobre família proferidos pelos profissionais do CRAS que realizam o trabalho social com as famílias e, como esses discursos circulam nas práticas dos profissionais.

O discurso emerge de um acontecimento e, como mencionado, o acontecimento para Foucault se remete à “irrupção de uma singularidade histórica”, o que pode ser chamado de acontecimento discursivo (Revel, 2005). Pelo seu método arqueológico, Foucault propõe analisar o acontecimento discursivo, tratar os enunciados produzidos, abrangendo as condições que permitiram sua emergência em certo momento histórico (Gregolin, 2006).

Ou seja, vai permitir compreender como surgiu determinado enunciado e não outro em seu lugar, até porque os acontecimentos - apesar de serem únicos - estão ligados aos enunciados que o precedem e o seguem e, por isso, são suscetíveis à repetição, a serem reativados e transformados (Foucault, 1969/2008). Sobre a ocorrência da repetição, essa se torna fundamental na análise dos discursos porque para Foucault (1971/2009, p. 7) “O novo não está naquilo que é dito, mas no acontecimento do seu retorno”.

Os discursos usados estão situados em um domínio de dois valores: o regular e o original. O regular pode ser entendido como o que é antigo, repetido, tradicional, semelhante, são os discursos que têm como categoria de formulação a que é considerada banal, cotidiana, maciça, que derivam de outras ou a partir da repetição daquilo que já foi dito. Já o original caracteriza-se por ser novo, inédito, desviante e tem como categorias de formulação aquelas consideradas valorizadas (raras), pouco numerosas, que aparecem pela primeira vez, sem antecedentes semelhantes e que servirão de base para outras (Foucault, 1969/2008).

Outra característica dos discursos é a contradição, que funciona como princípio da sua historicidade, estando situado tanto no nível das aparências, que se dá enquanto unidade profunda do discurso onde sua presença, mas demasiadamente visível; o segundo nível é o dos seus fundamentos, que se assume como figura empírica dos discursos, não sendo facilmente visível torna-se necessário destruir para reencontrá-las. Para que se analisem os discursos é necessário fazer com que desapareçam e reapareçam essas contradições, identificando (ou mesmo desmascarando) os jogos que elas desempenham e dando-lhes

materialidade (Foucault, 1969/2008). Como Gregolin (2004) coloca: “... o que se nega é base para o que se afirma” (p. 27).

Desse modo, para compreender o acontecimento discursivo deve-se buscar nos enunciados suas estreitezas e singularidades, buscando suas condições de existência (regras de funcionamento) e estabelecendo correlações com outros enunciados, buscando no que é dito e manifesto sua existência singular, o porquê daquele discurso e não outro em seu lugar (Foucault, 1969/2008). Por isso, o Discurso é importante tanto como categoria teórica como de análise, porque permitirá identificar os discursos sobre família e a partir de que acontecimento esse surge, compreendendo quem falou, de onde falou e a partir de que acontecimento.