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O DISCURSO URBANO ORAL CULTO

1 REFLEXÕES INICIAIS: UM OLHAR SOBRE A NORMA, O DISCURSO E A IDENTIDADE SOCIAL

1.3 O DISCURSO URBANO ORAL CULTO

Nesse contexto, percebe-se uma preocupação grande em relação ao conceito de norma culta, afinal dicotomias de diferentes ordens podem ser arroladas para a conceituação de norma culta: igualdade vs superioridade funcional, normal vs normativo, uso vs norma, sistema vs norma etc. Sobre esse aspecto, Barros (1997, p. 29), apoiando-se nas idéias do canadense Stanley Aléong (s/d), expõe que existem as normas explícitas e as implícitas. Assim, a norma explícita compreende o conjunto das formas lingüísticas que tenham sido objeto de uma tradição de elaboração, de codificação e de prescrição. Ela constitui-se segundo processos sócio-históricos. Codificada e consagrada em um aparelho de referência, essa norma é socialmente dominante, no sentido de que ela se impõe como o ideal a respeitar nas circunstâncias que pedem um uso refletido ou controlado da língua, isto é, nos usos oficiais, na imprensa escrita e audiovisual, no sistema de ensino e na administração pública. Quanto às normas implícitas, trata-se dessas formas por meio dos quais o indivíduo se apresenta na sociedade imediata.

Dessa forma, a Lingüística preocupa-se com o funcionamento e a organização das várias normas implícitas, procurando descrevê-las e explicá-las, sem valorizá-las de modo diferente. Se é esse o interesse do lingüista, o fantasma da norma lingüística paira sobre os estudos da linguagem, já que os usuários da língua estão sempre muito preocupados com problemas de “correção” lingüística, com os “belos” e “bons” usos da linguagem. Há, portanto, uma norma lingüística explícita, legitimada em cada sociedade.

Para precisar o estudo da norma explícita, que se confunde com o de norma culta, Barros (1997, p. 30) propõe que se considerem três pontos:

1- a existência de um discurso da norma que classifica os fatos lingüísticos em bons, corretos, errados, belos, etc, de que decorre o caráter prescritivo da norma culta; 2- a remissão a um aparelho de referência, isto é, a usuários de autoridade e prestígio

em matéria de linguagem e a academias, gramáticas e dicionários; 3- a difusão e imposição na escola, na imprensa e na administração pública.

Segundo a autora, é possível considerar que a norma explícita diz respeito à modalidade escrita. Quando se afirma que a norma explícita deve ser referendada por usuários de autoridade e de prestígio e por dicionários, gramáticas e academias, já se aponta que a norma explícita não se diferencia das demais por “qualidades” lingüísticas, mas por elementos sócio-históricos: necessidades de organização política, de unificação nacional, de domínio de grupos ou de classes. Em outras palavras, a norma explícita (ou “culta”) é a norma dos locutores de autoridade e prestígio. São eles que respondem pelos usos literários e sagrados da língua, pelos usos das classes dominantes.

Conforme aponta Barros (1997, p. 31), essa ambigüidade da norma culta, ao mesmo tempo uma entre as demais normas e a norma do prestígio e da autoridade, presidiu também a organização do material do Projeto NURC. O Projeto não diz em nenhum momento que considera como norma culta a dos falantes “literatos” ou a dos falantes da classe dominante, mas sim a dos “falantes cultos”. O termo “culto” deve ser aí entendido em uma de suas acepções, a de “instruído”. Assim os informantes do projeto NURC devem ter nível universitário. Pode-se dizer que são falantes que na escola “aprenderam” ou “confirmaram” a norma explícita, já que a escola é um dos lugares estratégicos de sua difusão. Dessa forma, ao mesmo tempo que se reconhece a “igualdade” intrinsecamente lingüística das diferentes normas, aceita-se a diferença “extrínseca” que existe entre elas e que assegura a uma dessas normas um papel, nesse caso também lingüístico, diferenciado na sociedade, como a norma dos falantes “cultos” ou “instruídos”.

Essa remissão ao “falante culto” – de prestígio, de autoridade, pertencente a certas classes, com instrução – ocorre tanto para a escrita quanto para a fala. Não há, porém, para a fala um aparato institucionalizado de referência e de difusão como há para a escrita – dicionários, gramáticas, academias. Não se pode pensar que faltem à sociedade e sobretudo

às classes dominantes os meios para organizá-los ou que eles estejam abrindo mão de um de seus instrumentos de poder. Ao contrário, essa “ausência” de remissão institucional não deve ser tomada como uma falta e sim como uma das características da norma explícita na fala, a que possibilita ao falante “culto” maior variedade de usos. É a capacidade de variação e não o “purismo” de um único uso que separará de um lado os falantes cultos, de outro os que “não sabem falar”, não são maleáveis, não se adaptam às necessidades dos diferentes momentos e situações.

Segundo Preti (1997, p. 17) quando se iniciaram as análises das gravações do Projeto NURC/SP, havia a expectativa de se encontrar nos diálogos e entrevistas a linguagem de falantes que correspondessem à classificação antecipada de culta. Porque na escolha desses informantes foi levada em conta sua formação universitária e essa variável – grau de escolaridade – constituiu a base para a formação do corpus.

Segundo o autor, essas primeiras análises, no entanto, revelaram resultados inesperados e até contraditórios. Considerando que as situações de interação eram praticamente sempre as mesmas, isto é, gravações conscientes, monitoradas por um documentador, com fases mais espontâneas e outras mais tensas, com variações de nível de intimidade entre os interlocutores dos diálogos ou das entrevistas, os inquéritos acabaram revelando um discurso que se identificava, na maioria das vezes, com o do falante urbano comum. Isto é, o de um falante de um dialeto social dividido entre as influências de uma linguagem mais tensa, marcada pela preocupação com as regras da gramática tradicional, e uma linguagem popular, espontânea, distensa.

Portanto, essa hipotética linguagem urbana comum comportaria oposições como a presença de uma sintaxe dentro das regras tradicionais da gramática ao lado de discordâncias, regências verbais de tendência uniformizadora, colocações dos componentes de frase justificadas pelos elementos prosódicos, como nos casos dos pronomes pessoais; abrangeria a precisão de um vocabulário técnico, ao lado da abertura de significado de vocábulos gírios; utilizaria vocábulos raros, de significação precisa, específica, concomitantemente com vocábulos populares de uso constante e de significado aberto. Portanto, os componentes desse discurso urbano comum se adequariam às variações de interação a que estão sujeitos os falantes nas cidades grandes, ajudando a expressar os vários papéis sociais que desempenham, respeitadas as características da situação

interacional. Trata-se, pois, de um dialeto social que atende tanto aos falantes cultos como aos falantes comuns, com menor grau de escolaridade. Dessa forma, fica claro que falantes cultos podem utilizar uma variedade de registros que vai do formal ao coloquial, em função de suas necessidades de comunicação.

Nesse sentido, pode-se afirmar que, hoje, pelo menos entre os estudiosos da linguagem, há um consenso sobre esses problemas de variação de linguagem dos falantes cultos, isto é, aqueles que sabem escolher a variante adequada, de acordo com as situações de interação. Nessa linha de raciocínio, Preti (1997, p. 18) expõe que se for levada em consideração à idéia de que as gravações do projeto NURC se processaram dentro de uma situação de interação quase sempre igual – exceção feita, talvez, das elocuções formais, realizadas para um público ou então de alguns diálogos e entrevistas de que participaram interlocutores mais formais, pela própria personalidade ou pelas funções de que estavam investidos – pode-se observar que, na grande maioria das vezes, a linguagem se identifica com a de falantes que estão fora dos grupos dos cultos e que falam normalmente a linguagem comum que se fala na cidade grande.

Diante dessa realidade, surge o seguinte questionamento: como se explica que os falantes cultos não apresentem (como todos desejariam) um discurso bem característico, em que a cultura lingüística ficasse suficientemente comprovada?

Primeiramente, é preciso lembrar que, dentro do contexto social das últimas décadas do século, tem predominado, no Brasil, um processo de uniformização cultural, em decorrência de um fenômeno político de democratização, acentuado, nos anos noventa, mas já perfeitamente observado nos fins da década de setenta. Esse processo vem estendendo a uma faixa cada vez maior da comunidade urbana as possibilidades de acesso à escola (e até mesmo à universidade), assim como lhe tem proporcionado um acesso mais rápido e intenso à informação, às fontes de notícia, aos meios informatizados. Por outro lado, um lazer, de certa maneira, uniforme, preparado para atingir indistintamente todas as classes sociais, vem aumentando de forma acentuada a presença da mídia, na cultura contemporânea, levando a sua linguagem oral e escrita a tornar-se padrão até para estudos da norma escolar.

Segundo Preti (1997, p. 19) um dos índices mais expressivos desse processo democratizador da cultura e de sua representação na linguagem espontânea ocorre, em nível

de léxico, com o uso crescente das formas gírias, nas mais variadas situações de interação, com os mais variados tipos de falantes (inclusive os cultos).

Esse painel cultural e suas conseqüências lingüísticas favorecem decididamente a linguagem popular, aumentam-lhe o prestígio. Pode-se afirmar que muitas de suas formas expressivas, embora em desacordo com a tradição gramatical, se incorporaram definitivamente à linguagem oral urbana comum, incluindo-se também na fala das pessoas cultas e nas suas expectativas com referência aos interlocutores, durante uma interação. Assim, por exemplo, não seria mais possível a um falante culto, em qualquer tipo de situação interacional, evitar sempre o uso do pronome proclítico, em início de frase, como determina a gramática tradicional.

Nesse sentido, a maneira de diferenciação dos falantes urbanos cultos dos falantes chamados comuns deve acontecer dependendo da situação de interação como mostram os exemplos a seguir:

(1):

Inf. 2- quanto mais você se distancia da natureza... mais você perde a percepção de que as coisas... se dão em ciclos...” (NURC/SP 343 – D2, 841-843)

Esse exemplo traz o discurso de um falante culto que pode ser identificado pela marca de um vocabulário mais amplo, de menor uso na linguagem comum e mais preciso em sua significação. Além dessa característica, o discurso dos falantes cultos pode ser identificado também pelo uso de vocábulos técnicos como mostra o exemplo 2:

(2):

Inf. 1- problema emocional para a cidade seria... saneamento... despoluição... seria analogia de terapia com o indivíduo... (NURC/SP 343 – D2, 220-221)

Ao mesmo tempo, pode-se observar que esse discurso incorpora, talvez para efeito expressivo, mas certamente por influência do uso comum, várias marcas da linguagem popular como, por exemplo: gírias e vocábulos de intensificação expressiva, de efeito hiperbólico:

(3):

Inf. 2- uhn o nazismo matou... dez milhões

Inf. 1- então... o nazismo... matou:: uma cacetada de:: judeus... mas também não passa de um por cento... e:: já podaram o nazismo

Inf. 2- uhn uhn (NURC/SP 343 – D2, 1480-1485)

Segundo Preti (1997, p. 24), a ocorrência de vocábulos gírios, se testada no discurso dos falantes cultos, hoje, certamente seria bem mais intensa, porque a gíria adquiriu, nas décadas 80 e 90, um prestígio crescente, surgindo até em interações de natureza mais formal como a mistura de tratamentos gramaticais tu/você e os pronomes pessoais eles e suas variações como objeto direto:

(4):

Inf. 2- acho que::... sabe você vai saber controlar se for consciente a tua criação se souber por que você está fazendo aquilo (NURC/SP 343 – D2, 1435-1437)

(5):

Inf. 1- então os homens ainda estão num esquema bem bolado... que não não foram eles que criaram mas... deixa eles irem para a frente... (idem, 1422-1424)

Nesse sentido, considerando-se esses fatos pode-se admitir a hipótese de que o grau de escolaridade (nível universitário), variável básica para a escolha dos falantes cultos no Projeto NURC, embora ajude a identificação, não é suficiente para marcar um discurso próprio dos falantes cultos que, até em situação de gravação consciente, revelaram uma linguagem que, em geral, também pertence aos falantes comuns.

Assim, pode-se constatar que os dados até agora analisados do corpus do Projeto NURC têm revelado que os falantes cultos, por influência das transformações sociais contemporâneas (fundamentalmente, o processo de democratização da cultura urbana), o uso lingüístico comum (principalmente, a ação da norma empregada pela mídia), além de problemas tipicamente interacionais, utilizam praticamente o mesmo discurso dos falantes

urbanos comuns, de escolaridade média, até em gravações conscientes e, portanto, de menor espontaneidade.