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DISCURSOS FILOSÓFICOS E A DESTITUIÇÃO DO NEGRO DO ESTATUTO

como aponta uma das características da filosofia iluminista, seria, segundo eles, a forma legítima de definir a natureza humana e serviu de argumento para classificar os negros numa escala inferior à dos brancos, ou seja, como sub-humanos. Da mesma forma, a divisão por raças como critério de racionalidade, reservou ao branco a categoria de homem racional e a negou para os seres considerados inferiores. A imagem do europeu como superior e civilizado e dos africanos como o seu oposto, foi utilizada como mecanismo de justificação para diversas violências.

Dentro do discurso dos pensadores iluministas, o africano foi classificado como “raça” sub-humana, naturalmente inferior e dotado de selvageria. As produções filosóficas foram originadas dentro de um orgânico desenvolvimento no contexto sociohistórico, mais extenso, do colonialismo e do etnocentrismo, ou seja, a ideia de que a Europa representa o modelo da modernidade, “a cultura e a história em si mesma”.

A Europa, como supostamente mais avançada, poderia se autoprojetar na história, inclusive como modelo a ser seguido e isso dentro de um contexto onde houve o processo de dominação e estabelecimento de colônias europeias. A dominação imperial e colonial africana foi elemento chave na construção histórica das manifestações da “Era da Europa”, inclusive a Ilustração.

Segundo Dussel (1993), a Modernidade é síntese da relação dialética entre o europeu e o não-europeu. O período moderno, inaugurado pela afirmação da Europa como o “centro” do mundo, possui um caráter racional emancipador, mas ao mesmo tempo desenvolve um mito irracional de justificação da violência3.

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Além dos filósofos Kant, Hume e Hegel, o discurso racista está presente nas obras de filósofos que influenciaram a formação de muitas sociedades e continuam influenciando sua reorganização. Por exemplo, o filósofo Charles-Louis de Secondat (1689-1755), barão de La Brède e de Montesquieu, escreveu o livro O espírito das leis (1748) obra que influenciou a divisão de poderes presente nas constituições modernas, inclusive o Brasil. No décimo quinto livro “Como as leis da escravidão civil têm relação com a natureza do clima”, Montesquieu diz que a escravidão, ato de firmar direito absoluto sobre homens e seus bens, não é boa e nem útil. Segundo ele, a escravidão é contrária aos espíritos das leis, mas se tivesse que defender o direito a escravidão, seria justificando a necessidade da mão de obra africana para abrir terras, visto que os europeus haviam exterminado a população da América. Sobre os negros: “Aqueles de que se trata são pretos dos pés à cabeça: e têm o nariz tão achatado que é impossível ter pena deles. Não nos podemos convencer que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, principalmente uma alma boa, num corpo todo preto. É tão natural pensar que a cor constitui a essência da humanidade que os povos da Ásia, que fazem eunucos, sempre privam os negros da relação que têm conosco de uma forma mais marcada. Pode-se julgar a cor da pele pela dos cabelos, que, entre os egípcios, os melhores filósofos do mundo, era de tão grande consequência, que matavam todos os homens ruivos que lhes caíssem nas mãos. Uma prova de que os negros não têm senso comum é que dão maior valor a um colar de vidro do que ao ouro, que, nas nações policiadas é de tão grande importância. É impossível que suponhamos que estas pessoas sejam homens; porque, se supuséssemos que eles fossem homens, começaríamos a crer que nós mesmos não somos cristãos

David Hume (1711-1776), filósofo escocês, escreveu o livro Ensaios Morais, Políticos & Literários (1741). Este livro corresponde a uma versão mais popular da sua

obra filosófica de maior importância, Tratado da natureza humana4 (que não foi muito

bem recebida, segundo ele, pela maneira como o assunto foi abordado) onde pretende ir direto ao ponto central das ciências, a natureza humana, e “fundar a ciência do homem na solidez da observação e da experiência” (HUISMAN, 2001, p. 515), ou seja, apresentar nos discursos morais o “método experimental de raciocínio”. Ao falar sobre a natureza humana dos negros, Hume destaca que:

Eu me inclino a suspeitar que os negros são naturalmente inferiores aos brancos. Praticamente nunca existiu uma nação civilizada com aquela compleição, nem sequer um indivíduo eminente seja na ação, seja na especulação. Não existem manufaturas engenhosas entre eles, nem artes, nem ciências. Em contrapartida, mesmo os mais rudes e bárbaros dos brancos, como os antigos ALEMÃES ou os TÁRTAROS no presente, apresentam algo de eminente entre eles, em seus valores, em sua forma de governo ou qualquer outro aspecto particular. Semelhante diferença, uniforme e constante, não poderia acontecer em tantos países e épocas se a natureza não tivesse feito uma distinção original entre essas raças e homens. Sem mencionar nossas colônias, existem escravos NEGROS dispersos por toda a EUROPA, e nunca se descobriu em qualquer um deles algum sinal de engenhosidade; enquanto membros brancos da classe baixa, sem educação, são capazes de progredir e se destacar em qualquer profissão. Na JAMAICA, de fato, falam do NEGRO como um homem de mérito e cultura; mas é provável que ele seja admirado por pequenas conquistas, como o papagaio, que é capaz de pronunciar algumas palavras com clareza (HUME, 2004, p. 344).

Hume estabelece a “diferença” entre brancos e negros como algo permanente e que ocorre de maneira natural, ou seja, uma diferenciação original estabelecida pela natureza. A ideia de uma diferenciação natural foi o motor que colocou a África fora do que foi entendido como verdadeira humanidade (europeia). Para os filósofos iluministas, a humanidade europeia era a própria encarnação da humanidade em si mesma, enquadrando os africanos como uma espécie diferenciada, sub-humana. Este pensamento legitimou filosoficamente o processo (que já ocorria desde o século XV) de exploração africana, tal como também os métodos utilizados de dominação, métodos estes que não seriam admitidos para um ser humano europeu.

Estas formulações filosóficas racistas contra os povos africanos e não europeus

(MONTESQUIEU, 1996, p. 257).

4 “O Tratado da natureza humana é bem um ‘tratado’, na forma didática do gênero. Nitidamente estruturado em três livros, que por sua vez são subdivididos em partes e seções, corresponde ao desejo expresso por Hume de "introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais” (HUISMAN, 2001, p. 515).

em geral, trouxeram um grande prejuízo filosófico para estes povos e para a própria filosofia, causando um empobrecimento filosófico. Além dessas formulações circularem livremente, foram utilizadas por outros filósofos europeus modernos, como veremos a seguir.

Imannuel Kant (1724-1804), filósofo alemão que apoiado na fala de Hume, diz que os negros não possuem sentimento acima do ridículo e atribui a diferença de capacidades mentais à diferença de cores, sendo o homem branco superior ao negro. A influência de Kant no campo do conhecimento foi tão grande que me recordo da fala de um professor durante a graduação em filosofia que, ao ser perguntado sobre

a diferença entre duas disciplinas do currículo, Teoria do conhecimento e

Epistemologia, a resposta dada foi “antes de Kant é teoria do conhecimento, depois de Kant é epistemologia”.

No livro intitulado 50 autores-chave de filosofia... e seus textos incontornáveis

de Grissault (2012), Kant é apresentado como uma referência obrigatória e como um filósofo revolucionário por ter colocado fim no embate entre racionalistas e empiristas, inaugurando o criticismo, colocado pela autora como uma nova revolução copernicana.

Alternativa para o racionalismo e para o empirismo, o criticismo kantiano opera uma revolução copernicana na teoria do conhecimento: Copérnico havia invertido as posições respectivamente do sol e da terra ao afirmar o heliocentrismo. Igualmente, para Kant, no conhecimento, não é o sujeito que gira em torno do objeto, mas o objeto que se define em vista do sujeito” (GRISSAULT, 2012, p. 162).

Ao fazer Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, publicado em

1764, na quarta seção “Dos caracteres nacionais, na medida em que residem no sentimento diferenciado do sublime e do belo”, Kant descreve de forma minuciosa características dos sentimentos do belo e do sublime das nações. Ao falar sobre os negros africanos afirma que:

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha demonstrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca,

uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação dos esconjuros. Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas (KANT, 1993, p.78).

Assim como Hume, Kant afirma uma superioridade branca e uma inferioridade negra que se caracteriza na relação entre a cor da pele e suas capacidades mentais. Também utiliza o argumento de inferiorização da religião africana, colocando-a como religião do fetiche e legitima o uso de violência para dispersão dos negros. Até que ponto essas ideias continuam nos influenciando? Presenciamos ainda nos dias atuais o preconceito às religiões de matrizes africanas e o uso desenfreado de violência contra a população negra, oriunda de vários setores do próprio governo.

Ainda no decorrer do texto "Observações sobre o sentimento do belo e do sublime", Kant chega à conclusão de que somente os europeus possuem uma inclinação moral ao estímulo sensível que estabelece as relações, além de afirmar uma eminente escravidão feminina e covardia masculina no continente africano.

Nas terras dos negros o que esperar de melhor do que ordinariamente lá se encontra, ou seja, o sexo feminino na mais profunda escravidão? Um homem pusilânime é sempre um senhor severo ante os mais fracos, assim como também entre nós aquele que a toda hora é tirano na cozinha, fora de casa mal se atreve a olhar nos olhos de quem quer que seja. A propósito, o padre Labat conta que um carpinteiro negro, a quem ele censurara o comportamento arrogante para com a mulher, lhe respondeu: “Vocês brancos são verdadeiros estultos, pois primeiro concedem muito a suas mulheres, e depois se queixam, quando elas os infernizam”. É bem possível haver, nessas palavras, algo que deva ser levado em conta; só que, para ser breve, esse sujeito era preto da cabeça aos pés, argumento suficiente para considerar irrelevante o que disse (KANT, 1993, p. 80).

Como já dito anteriormente, Kant atribuía a capacidade de raciocínio à cor de pele. Portanto, os seres humanos inferiores seriam superiores na medida em que se aproximassem da coloração branca. Esta descrição de Kant sobre o homem negro, citado acima, onde ele descredibiliza o carpinteiro apenas por ser negro, se apresenta como uma prova dessa relação da filosofia kantiana entre capacidade racional e cor de pele.

O tráfico e a escravidão transatlântica foram justificados filosoficamente segundo a suposta sub-humanidade africana e a prática colonialista se ancorou na negação de uma historicidade africana, já que a Europa ficou definida como a própria expressão da história. Isso fica visível no pensamento do filósofo alemão Friedrich Hegel (1770-1831) que em seu livro, Filosofia da História (18375), descarta a atuação

Africana na história, afirmando que se constitui no começo absoluto (não desenvolvido) e “aistórico”. Por consequência, a África e os africanos foram excluídos da categoria de racionalidade, implicando também na exclusão da humanidade, já que a racionalidade seria considerada um atributo próprio do homem.

Ao descrever a África ao sul do Saara, considerada por ele a “África propriamente dita”, Hegel a aponta como a parte que ficou fechada para o resto do mundo, infantil e excluída da história autoconsciente, ou seja, da racionalidade. Para compreender o caráter africano, segundo ele, é necessário

Renunciar ao princípio que acompanha todas as nossas ideias, ou seja, a categoria da universalidade. A principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais o homem se encontraria com a própria vontade, e onde ele teria uma ideia geral de sua essência. Em sua unidade indiscriminada e compacta, o africano ainda não chegou a essa distinção de si como indivíduo e de sua generalidade essencial. Por isso, carece também do conhecimento de uma essência absoluta, que seria um outro, superior a ele mesmo. O negro representa, como já foi dito, o homem natural, selvagem e indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de tudo o que chamamos sentimento, para realmente compreendê-los. Neles, nada evoca a ideia do caráter humano. Os extensos relatórios dos missionários comprovam esse fato, e o maometismo parece ser a única coisa que traz a cultura, de certa forma, até os negros (HEGEL, 1999, p. 83-84).

A filosofia racista de Hegel aponta que um elemento necessário para compreender os negros é a renúncia de sentimentos, moralidade, reverência, pois supostamente não possuiriam consciência de si como indivíduo e necessitariam de um tutor, superior a ele, mais “evoluído” para domá-lo. Hegel, ao fazer considerações sobre as religiões de matrizes africanas, coloca-as, assim como Kant (1993), na posição de religião do fetiche e envolta de bruxarias.

Para Hegel, o caráter do negro sempre foi de todo indomável, sem moralidade, estando nesse estado nada se forma ou desenvolve. Para o avanço e alcance da moralidade necessária para o desenvolvimento humano, o filósofo afirma que a única relação essencial entre os negros e os europeus é a escravidão.

Apesar de apontar a escravidão como contrária ao estado natural humano, destaca que a mesma pode carregar uma função de educação, num processo de transição para uma moralidade mais sublime em sociedade onde o pré-requisito para o alcance é o amadurecimento humano.

Segundo Hegel, ser escravizado pelos europeus deveria ser considerado um benefício para o africano, pois seria favorecido com a educação moral. Da mesma forma, o colonialismo era considerado um benefício para a África, pois o continente

europeu introduzia razão, ética e cultura, ou seja, história. Para finalizar:

Com isso, deixamos a África. Não vamos abordá-la posteriormente, pois ela não faz parte da história mundial; não tem nenhum movimento ou desenvolvimento para mostrar, e o que porventura tenha acontecido nela – melhor dizendo, no norte dela – pertence ao mundo asiático e ao europeu. Cartago foi um momento importante e passageiro; mas como colônia fenícia pertence à Ásia. O Egito será abordado como transição do espírito humano do Oriente para o Ocidente, mas ele não pertence ao espírito africano. Na verdade, o que entendemos por África é algo fechado sem história, que ainda está envolto no espírito natural, e que teve que ser apresentado aqui no limiar da história universal (HEGEL, 1999, p.88).

A filosofia hegeliana da história converteu-se quase numa opinião comum e num novo paradigma acadêmico da historiografia ocidental. Na modernidade, o documento dominante sobre a relação do antigo Egito (região considerada desenvolvida da África) com o restante da África Negra foi, até o simpósio do Cairo (1974), o livro "Filosofia da História" de Hegel.

No simpósio do Cairo, Cheikh Anta Diop (1923-1986), filósofo senegalês, apresentou e desenvolveu um estudo sobre o povoamento do antigo Egito. Nele, Diop argumenta a respeito da origem egípcia da civilização e de uma população egípcia negra6.

Não apenas Diop, durante o século XIX e XX, vários intelectuais negros utilizaram diversos meios para resgatar sua humanidade negada. Um exemplo é Antenor Firmin (1850-1911) antropólogo haitiano autor do livro L'Egalité des races humaines, publicado em 1885, livro que objetivava provar a igualdade entre as raças humanas.

1.5 CONSTRUÇÃO SOCIAL DE REALIDADES: TEORIAS RACIAIS DO