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PARTE II: O estudo

Capítulo 4. Resultados e Discussão

4.1. Apresentação dos resultados obtidos nos Grupos Focais

4.1.5. Discussão Geral das Interlocuções nos Grupos Focais

As interlocuções desenvolvidas entre os universitários nos possibilitaram levantar alguns pontos comuns a todos os grupos.

Uma questão que chama a atenção logo de início é a consensualidade que os grupos adotaram diante da temática proposta, que, imaginamos, poderia suscitar polêmicas ou diferenças de opinião. As manifestações verbais contestatórias ocorreram em raros momentos e a tônica valorativa das interlocuções foi marcada pelo discurso dos interlocutores masculinos, especialmente nos grupos de estudantes de Psicologia e Educação Física. A freqüência de manifestações femininas nesses dois grupos foi baixa, e quase sempre as falas apreciam para corroborar os juízos de valor enunciados pelos homens do grupo.

A esse respeito, talvez possamos pensar, na mesma direção do que argumenta Rocha-Coutinho (1994), que se trata de um padrão feminino de polidez e condescendência que funciona como estratégia de aprovação social, ao mesmo tempo em que reflete o modo como a mulher se coloca nas interações, tendo em vista o poder de que dispõe (ou de que não dispõe).

Para a autora, “o padrão estratégico, assim, nos encoraja a perceber as interações de homens e mulheres como indicações de respostas a uma distribuição diferencial de poder no mundo público” (Rocha-Coutunho, 1994, p.141). Diante disso, além das questões que já levantamos antes, poderíamos conjecturar, ainda, que as mulheres nos GF desse estudo, e mais particularmente em algumas áreas de conhecimento, acabaram por se comportar de maneira a repetir o modo como o poder se distribui nas suas outras relações.

Ainda como possibilidade de refletir sobre o marcante consenso entre os interlocutores de todos os grupos, poderíamos pensar que ele retrata a superficialidade com que as interações transcorreram. De fato, os participantes não pareciam estar imersos num ambiente de interação, mas de “comunicação conjunta”, em que o debate efetivo e as contestações não se constituíram vigorosamente. Pode ser que os mesmos grupos, numa outra proposta de pesquisa, que solicitasse, talvez, encontros contínuos, conseguissem desenvolver momentos mais de interação mais intensa.

Outro aspecto que apareceu em todos os GF diz respeito à noção fortemente marcada nas trocas verbais de que há diferença na atuação política de homens e mulheres. Essa noção, compartilhada pela maioria dos participantes em cada grupo, remete-nos ao que falava Miguel (2001) sobre a permanência de uma concepção que defende o estilo maternal adotado pelas mulheres ao atuarem no campo da política como possibilidade de superação da “política de interesses”, tida como masculina, substituindo-a pela política do cuidado, considerada feminina.

Tanto que os interlocutores, via de regra, apontaram as mulheres como mais “idealistas”, “éticas” e “sensíveis” que os homens em suas funções políticas. Alguns sujeitos chegaram a verbalizar, explicitamente, que o estilo feminino de atuar na política devia-se à maternidade, que proporciona à mulher maior “cuidado” com o outro. Apesar de manifestações contrárias, que acentuavam a existência de mulheres tão “calhordas” quanto os homens, a distinção entre os gêneros era constantemente retomada em vários momentos das interlocuções, fazendo referência à “simpatia” feminina, à “força” da mulher e sua capacidade de exercer várias funções simultâneas e até mesmo ao poder de “sedução” que as mulheres podem usar a seu favor. Note-se, como já assinalamos neste trabalho, que as qualidades atribuídas à mulher parecem não ser muito associadas ao campo da política. Os próprios participantes reconhecem que os homens estão “há mais tempo no poder”, o que faz deste um universo de domínio e caracterização masculina.

O resultado dessa distinção de núcleos de atuação caracterizados por qualidades masculinas e femininas é a impermeabilização destes espaços, mantendo a polarização entre homens e mulheres e consolidando o que Miguel chama de divisão do trabalho político, como ele expõe:

O discurso da “política maternal” propõe uma alteração da hierarquia de prestígio das atividades políticas, o que merece reflexão, mas ao mesmo tempo parece eternizar a divisão do trabalho político, insulando as mulheres no seu nicho próprio e destinando aos homens as tarefas que, ao menos por enquanto, são as mais valorizadas socialmente (Miguel, 2001, p.261).

Pudemos perceber também que os universitários usualmente se utilizaram do verbo “ser” para definir qualidades e condições masculinas e femininas, mostrando tendência à naturalização da divisão dos universos de gênero, traduzida no entendimento de que essa divisão tem caráter permanente, visto que é assim definida pela natureza. Como vimos em

muitos participantes, as falas marcaram o aspecto definitivo da caracterização de homens e mulheres, conforme se vê em alguns exemplos:

A vida de vocês é mais dura (SM1/GF3) Ela é mais idealista (SF2/GF1)

Ela se preocupa muito com a personalidade, pra não misturar (SM2/GF1)

A maioria (das mulheres) é mais diferente do homem, mais correta, talvez (SM1/GF2) Os homens são mais agressivos (SM1/GF3)

A mulher sabe seduzir (SF1/GF4)

Eu acho que já vem do ser. O ser mulher é diferente do ser homem (SM2/GF4)

No sentido do que colocam os interlocutores, trata-se de diferenças irredutíveis, que serão carregadas por homens e mulheres onde quer que eles estejam ou trabalhem, como se tais diferenças não fossem construídas a partir do modo como o poder se hierarquiza nas relações. O gênero, portanto, ou as diferenças de gênero, pelo menos, são entendidas pelos sujeitos como características existentes a priori, de modo que, para eles, as relações entre homens e mulheres é que se constroem a partir das diferenças e não o contrário.

Sob esse raciocínio, é pertinente que os participantes entendam que mulheres e homens não poderiam, de fato, desfrutar de condições igualitárias de poder, tendo em vista que suas qualidades são diferentes. E sendo assim, também é possível justificar a permanência do patriarcado como condição natural de divisão de poderes entre homens e mulheres a partir de suas diferenças. Não à toa, portanto, SM1 (GF3) entende que a mulher pode até mudar o horário de fazer o jantar, mas fazê-lo é parte integrante de seus atributos.

Talvez daí a opinião presente em todos os grupos quanto à política de quotas como uma ação discriminatória. Se as diferenças são irredutíveis, as quotas, para os sujeitos, serviriam apenas para reforçar tais diferenças, já que transformá-las não é possível. Em

todos os grupos os sujeitos se posicionaram contrariamente à adoção dessa ação afirmativa, não só para as mulheres na política, mas para os negros também.

Nas situações em que o tema das quotas era aventado, a equiparação entre mulheres e negros era instantânea e para ambos utilizava-se a mesma justificativa quanto ao posicionamento contrário às quotas: elas não são necessárias, porque negros e mulheres são capazes de conseguir sua inclusão por si mesmos. A iniqüidade no acesso das minorias ao poder passou ao largo da reflexão dos sujeitos. Em suas falas, o tom meritocrata com que a ideologia capitalista defende seus pilares e exime o Estado de responsabilidade apareceu claramente. Foram várias as manifestações alusivas ao esforço pessoal e à força de vontade como fatores determinantes para se conseguir “chegar lá”.

A meritocracia, no nosso entendimento, é uma armadilha normativa, pois estabelece o sucesso como padrão e defende a responsabilidade individual de alcançar esse sucesso. Portanto, assim como assinalam Narvaz e Koller (2006), os insuficientemente esforçados são pessoalmente “culpados” por se manterem à margem do compartilhamento do poder, desonerando comunidade e Estado de sua parcela de responsabilidade. Pensando assim, torna-se realmente dispensável a utilização de ações afirmativas, como as quotas, que ajam em prol da eqüidade, pois a possibilidade de acesso aos núcleos de poder, segundo os participantes, não é um problema de ordem pública, mas sim de ordem privada, individual.

No entanto, quando os interlocutores avaliaram o funcionamento da engrenagem política, desculpabilizaram a ação individual como alavanca de movimentação dessa engrenagem. Nesse caso, a política não parece feita de seres humanos; assemelha-se mais a uma entidade incorpórea e intangível que paira sobre os indivíduos e os coage a agir. Essa entidade que representa a atividade política foi chamada, em vários momentos, de “sistema” e submete os indivíduos a um assujeitamento. A mulher, menos corrupta e

menos acostumada ao poder, fica ainda mais subjugada e deve se adaptar a esse sistema, sob pena de sua exclusão.

Poderíamos pensar em uma contradição entre esse modo de pensar o sistema político e o modo de encarar o estabelecimento de quotas como ação afirmativa, mas, ao que parece, o raciocínio é similar. Em ambas as situações, a mulher sofre sujeição: no primeiro caso, se sujeita às diferenças impostas pela natureza, o que torna desnecessário o estabelecimento de quotas. Se as capacidades existem, como um dado natural, resta à mulher usá-las na luta pessoal pela conquista de seu espaço. Na segunda situação, a mulher se sujeita ao sistema e passa a não ser responsabilizada pela conduta corrupta, assim como não é sua culpa o fato de não participar da política. Isso pareceu natural aos participantes porque o sistema, criado e mantido por “eles”, não vai se abrir para a presença “delas”. E ademais, não se luta contra um sistema impessoal, formado por uma massa de homens sem rosto.

Diante das falas dos interlocutores nos grupos, o que parece restar à mulher é o comportamento sugerido abaixo:

SF1: Ela tem que participar ou vazar (GF1)

SF1: É, acaba que a mulher às vezes tem que, tipo assim, tem que entrar no esquema, senão... (GF2)

É possível pensar, então, que para os participantes, ainda que avaliem a possibilidade de corrupção feminina, permanecem dois principais aspectos ligados à figura da mulher: o primeiro aspecto refere-se à naturalização dos atributos femininos, que imprimem na mulher um estilo maternal, retilíneo e afetivo de atuação política.

O segundo aspecto tange à passividade feminina frente a um sistema corrupto, manipulador e masculino que só aceita sua presença mediante a adequação às normas de agir, definidas pelos que já ocupam o poder.

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