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PARTE I: Fundamentação Teórica

Capítulo 2 Mulher e Política: a resistência dos mitos

2.1. Mulheres-mães, Mulheres-menos: natureza, maternidade e inépcia

Como se supõe pelo título do tópico, podemos dizer que as expectativas de desempenho feminino em searas como a política, por exemplo, ainda subestimam a capacidade da mulher de mostrar competência num universo amplamente ocupado pelos homens, especialmente por se atribuir a elas a característica da não-agressividade, conforme defendem Ruddick (1989, apud Miguel, 2001) e Elshtain (1981, apud Miguel, 2001). Para Miguel, estas autoras intitulam o modelo de atuação política feminina como “política do desvelo”, considerando que sua participação nessa esfera abrandaria a agressividade presente nas atividades políticas, já que esta é uma qualidade tipicamente masculina.

Contar com a mulher na política significaria, para Ruddick e Elshtain, o ingresso no exercício do zelo, da tolerância e da busca pela paz, superando o egoísmo e a política de interesses exercida pelo homem. Ou seja, as autoras crêem, de fato, num “estilo” próprio à mulher, caracterizado por ações ligadas à sua natureza, diferente da natureza masculina. Assim, ressalta Miguel (2001), se há alguma tentativa de valorização da participação

feminina na política ela se dá a partir do enaltecimento das qualidades que a mulher demonstra no território de ação doméstica, de modo que a atuação política feminina vai se diferenciando da masculina exatamente por significar uma extensão do lar. Diz o autor:

O central, nesta corrente, é a revalorização da esfera familiar, vista como o espaço de realização dos valores que são negados nas atividades públicas, sempre competitivas e egoístas (Miguel, 2001, p. 260).

Assim, a presença política da mulher é usualmente associada a características que ela poderia “importar” de seu desempenho no campo doméstico, marcando, então, na comparação com o homem, uma diferença em sua militância e no exercício de funções políticas.

É importante frisar que em se tratando de pesar estas qualidades tidas como femininas no que tange à competência política, o que comumente se nota é a valoração negativa destas qualidades, desautorizando a mulher ao exercício de atividades ligadas ao mando político, já que ela é considerada insuficientemente agressiva. Há, subjacentes à participação da mulher nestas atividades, estereótipos que relacionam a competência e o saber com a masculinidade, enquanto a mulher se associa ao afeto e à maternidade quando incorre no campo da política.

Para Miguel, são muitos aqueles que defendem que mulheres transpõem seu “instinto maternal” para as funções políticas, o que então faria delas criaturas inaptas para uma plena atuação nesse campo. Significa dizer que ao se utilizar as qualidades ligadas à maternidade como marcadores de atuação feminina, atribui-se à mulher a incompetência para exercer o papel que a política exige, sendo esta uma atividade eminentemente masculina. Em outras palavras, o fato de carregar consigo a maternidade como marca impressa, assinala a inépcia da mulher para o bom desempenho de funções que exijam masculinidade. Diz o autor:

Ademais, a maternidade é uma relação de intimidade e exclusividade (...) enquanto a cidadania requer as qualidades opostas de abertura e inclusividade. Tudo isso torna a relação entre mãe e filho, como observou Mary Dietz, ‘um modelo particularmente impróprio’ para a vida pública (Miguel, 2001, p.262).

Essa não é uma concepção nascida nos dias de hoje, em que apesar de certa desaprovação social pode-se dizer que a mulher tenha conseguido penetração nessa esfera. As restrições à participação política da mulher já eram amplamente utilizadas e justificadas filosoficamente, mesmo antes que elas efetivamente adentrassem no círculo das instâncias de decisão política, como se percebe na obra de contratualistas do porte de Hobbes e Locke (apud Miguel, 2001). Para o primeiro, embora haja uma “igualdade” quanto à capacidade física e intelectual de mulheres e homens, a fragilidade feminina é decorrente da maternidade que a coloca como responsável por outra vida, lançando-a numa condição de submissão à autoridade masculina. Para Locke, no entanto, a igualdade entre homens e mulheres não existia a priori, e elas, assim como os trabalhadores, eram inaptas à participação na vida pública, em função de sua racionalidade inferior (apud Miguel, 2001).

Não só as representações ligadas à maternidade difundem uma mulher menos capaz, mas outras ferramentas de construção dos estereótipos de gênero embasadas no modelo de pensamento patriarcal acabam funcionando no sentido de desqualificar as características femininas, apontando a debilidade nata da mulher.

Esse modelo patriarcal de avivamento da fragilidade feminina parece atravessar o curso da vida de tal modo, que, como mostrou Fávero (1998), influencia até mesmo na concepção sobre as causas que levam mulheres à procura de serviços médicos. No referido trabalho, realizado com adultos, idosos e médicos de um hospital público de Brasília, a investigação girou em torno da acentuada freqüência com que mulheres procuravam os serviços médicos e da perscruta sobre os motivos que levariam a tal acento. Os resultados

obtidos demonstraram que as explicações dos sujeitos fundamentavam-se na concepção clássica de que as mulheres são mais frágeis, adoecem mais e precisam de maior cuidado e atendimento médico (Fávero, 1998). Interessante destacar que as mulheres também ouvidas nessa pesquisa, não comungaram da mesma opinião dos sujeitos masculinos, acreditando que a explicação por eles apresentada traduzia-se apenas numa crença comum aos homens.

Isso significa o quanto os variados espaços de circulação axiológica de gênero ainda estão repletos do background que pensa e constrói as relações humanas a partir de princípios do patriarcado, com reflexos em práticas sociais tidas como científicas e neutras, como a prestação de serviços médicos, por exemplo. É de se notar, então, como a difusão das hierarquias de gênero alcança e permeia todas as esferas de nossa vida social, produzindo impactos importantes no desenvolvimento das subjetividades.

Nesse aspecto, podemos considerar que um dos mais expressivos recursos de difusão representacional é a mídia televisiva. Ali são apresentados estatutos de gênero que corroboram alguns estereótipos e que Fischer (2005) chamou de “dispositivo pedagógico da mídia”. Para a autora, é importante tratar em particular da mídia televisiva, que, usando de estratégias de linguagem, estabelece a si própria como o lugar privilegiado da informação, veiculando “verdades” em seus produtos, e fazendo com que o telespectador reconheça-se nestas verdades. Uma das maneiras utilizadas pela TV para provocar o reconhecimento do telespectador é a exposição da intimidade, conferindo aos produtos um caráter de seriedade e de negação da hipocrisia.

Essa tentativa da mídia de publicizar a intimidade é dirigida a vários segmentos sociais, quais sejam, adolescentes, crianças, mulheres e em cada um deles o intuito é idêntico: transformar vidas privadas em espetáculo e instituir-se como veículo que “dá voz” às diferenças. No entanto, conforme o longitudinal estudo de Fischer (2005), mesmo

que a mulher ocupe hoje papel de destaque como protagonista de variados produtos midiáticos, é preciso entender como essa mulher é apresentada pela mídia e como, a partir dos sentidos circulantes nesse espaço, são partilhados os significados sobre as relações de gênero e construídas suas representações.

Em sua análise sobre material televisivo, Fischer (2001) aponta para as estratégias presentes na formação discursiva da TV e para as relações de poder subjacentes a esse discurso. Na análise da autora, há clara separação entre os espaços que são permitidos à mulher ocupar e os espaços masculinos. Por exemplo, um dos programas analisados por Fischer (Erótica, rede MTV) vai de encontro aos estereótipos já mencionados aqui, que estabelecem o saber como o lugar masculino e a emotividade como o lugar feminino. No referido programa, a figura do médico especialista preenche o espaço do saber científico, enquanto a apresentadora é identificada com a falta do conhecimento especializado, restando-lhe, então, enfeitar o lugar, exibindo-se como figura de sensualidade e beleza.

Além disso, a forma com que o programa se dirige ao telespectador, colocando o sexo em discurso e sublinhando as relações de gênero, demonstra como se dá a pedagogização de nossa subjetividade. Diz Fischer (2001, p. 261):

Ora, esse processo todo se mostra como plenamente ‘pedagógico’: não só porque, tomando ainda o exemplo do programa Erótica, busca-se explícita e didaticamente informar sobre sexo e amor, mas porque há o recurso permanente a toda uma ‘tecnologia de si’, a uma produção da verdade sobre e para o sujeito individual, que ‘deve’ olhar para dentro de si mesmo e julgar-se como sujeito de uma determinada sexualidade e de um determinado gênero.

Consoante as considerações acima, entendemos que essa produção de verdades sobre e para o sujeito facilita a criação de um universo simbólico de compartilhamento de significados que restringe lugares e capacidades para os sexos e promove a constituição de

representações generizadas, que marcam a construção das identidades masculinas e femininas. Como vimos, o instituto da inferioridade intelectual da mulher e da necessidade de conformação moral de sua sexualidade marca presença nas mais variadas instâncias das relações humanas, produzindo, conforme já ressaltado, práticas discursivas e interacionais de hierarquização dos gêneros.

No entanto, apesar de estarmos falando constantemente sobre como as hierarquias de gênero difundidas no modelo patriarcal acabam por definir lugares masculinos e femininos, não estamos defendendo que a socialização seja a explicação absoluta que se presta à compreensão definitiva dos processos de engendramento da subjetividade. Se assim fosse, dois sujeitos imersos num mesmo contexto social teriam subjetividades idênticas e sabemos que isso não ocorre. Então, nossa defesa aqui se coaduna com a perspectiva trazida por Fávero (2005, 2007a, 2009a) que entende a impossibilidade de se separar o sujeito em si do próprio processo de construção social de seu universo subjetivo. A autora pontua que na interação com as práticas sociais, o ser humano constrói os chamados paradigmas pessoais, numa clara demonstração de seu caráter ativo e ressignificador. Diz Fávero (2007a, s/p)

(...) the personal paradigm, which, while not isolated from the collective, preserves the unique and particular individual identity of the subject, if we consider the notion of internalization as transformation15.

Na sua articulação entre a constituição das subjetividades e inserção do sujeito num espaço simbólico, Fávero defende a importância da mediação semiótica como processo sem o qual não haveria desenvolvimento psicológico tal como o entendemos hoje.

Reiteramos, então, o que já dissemos antes: o partilhar de significados não quer dizer uma absoluta e integral internalização de sentidos. É por essa razão que nossa linha

de argumentação tem por base os trabalhos de Fávero, cuja tese é a de que a internalização pressupõe transformação e ressignificação, que são fenômenos particulares ao sujeito. Mais uma vez, frisamos que nossa perspectiva, apoiada pelas pesquisas de Fávero, toma direção contrária à da dicotomização entre sujeito e objeto, e segue no mesmo sentido do que apontou Moscovici (2005) quando disse da relação entre comunicação e cognição.

Também Saffioti (2008) chama a atenção para a importância de que se desenvolva a consciência como pré-requisito para a transformação das sociedades e entende que a consciência, como capacidade humana de caráter filogenético, deva ser incluída nas problematizações sobre as questões de gênero.

Assumimos, portanto, juntamente com Fávero (2009), o posicionamento de que na interação com as representações sociais e com as práticas culturais que orientam os processos de desenvolvimento, o sujeito, por ser ativo e não um mero receptáculo constrói “paradigmas pessoais”, que engendrados a partir do coletivo preservam o que há de particular e único na subjetividade.

Finalizamos reiterando que a proposta desse trabalho foi, de um lado, entender como as interações sociais e as práticas discursivas difundem e produzem conceitos de gênero, e, de outro lado, entender como, do ponto de vista psicológico, foram construídos os paradigmas pessoais de mulheres que adentraram o campo da política, a partir da análise de suas narrativas. É por isso que nosso estudo, descrito em seguida, envolve dois movimentos ou etapas: a investigação junto a grupos, analisando como são produzidas as interações e quais os significados de gênero ali partilhados e a entrevista individual, em que tomamos a narrativa das mulheres como porta de entrada para a perscruta psicológica desses sujeitos.

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