• Nenhum resultado encontrado

Complicações secundárias à infecção crônica pelo VHC, como cirrose descompensada e CHC, são as principais indicações para TH no Brasil e no mundo21.

Os tratamentos baseados na combinação de PegIFN e RBV foram utilizados como primeira opção para terapia da recorrência do VHC pós TH por cerca de duas décadas. Essas medicações eram associadas a grandes taxas de contraindicações, baixas taxas de cura, altas taxas de EA e descontinuação de tratamento, além de risco de rejeição21 e, portanto, eram recomendadas apenas a pacientes com evidência

histológica de fibrose no enxerto20.

Em nosso primeiro estudo, incluindo 127 pacientes transplantados por VHC, 44,1% dos pacientes (65,9% dos 85 biopsiados) tiveram diagnóstico de evidência histológica de recorrência de VHC. Esta taxa foi menor do que a de 66% encontrada na literatura por Shuhart et al38. O uso de biópsias protocolares poderia

contribuir para diagnóstico de maior taxa de recorrência do VHC na nossa casuística. Foi contraindicado tratamento em 25% dos casos, taxa maior do que a de 17% encontrada na literatura39.

O tratamento antiviral com interferon e RBV foi iniciado por apenas 21,8% dos 127 transplantados, taxa semelhante à descrita por Garcia et al, da Universidade

Federal do Ceará, de 22,8%40. Os pacientes iniciaram medicação em mediana de 18

meses após o transplante (início mais precoce do que aquele encontrado por Garcia et al, com média de 22,5 meses). Cinco pacientes foram tratados com IFN e RBV e 32 com PegIFN e RBV. Anemia e neutropenia foram os eventos adversos mais comuns, acometendo, respectivamente, 75,7 e 65,6% dos pacientes. O manejo dos eventos adversos está apresentado no quadro a seguir (Quadro 1).

Quadro 1. Tratamento de VHC pós transplante com interferon e ribavirina em duas casuísticas brasileiras

Entre pacientes transplantados, as taxas de RVS pós tratamento a base de interferon e RBV encontradas na literatura são em torno de 30,2%4, enquanto na

nossa casuística 54,1% dos pacientes atingiram RVS. Esta diferença pode ser explicada pelo maior tempo de tratamento entre os nossos pacientes, com mediana de 68 semanas, contra 48 semanas na literatura, já que o protocolo local estabelecia que os pacientes deveriam ser tratados por 48 semanas após obtenção do primeiro VHC-PCR não detectado. Foi observada diferença significativa na duração do tratamento entre os pacientes que atingiram RVS versus os pacientes sem RVS (mediana de 79 semanas versus 45 semanas, P=0,006). O menor tempo de tratamento entre os pacientes sem RVS pode estar relacionado a interrupção precoce por intolerância ao tratamento, rejeição ou falha terapêutica (ausência de negativação do VHC-PCR). Maiores taxas de RVS foram observadas entre os pacientes com VHC genótipo 3 (84,6%) em comparação ao genótipo 1 (37,5%) e entre aqueles que não apresentavam fibrose avançada pré-tratamento, como observado na literatura39, 41.

A combinação de PegIFN e RBV era a única opção de tratamento disponível no Brasil até 2011, quando telaprevir e boceprevir, antivirais de ação direta

ESTUDO 1/ UNICAMP

GARCIA ET AL

N 37 40

Genótipo 1 – % 64,3 65

Meses entre TH e tratamento – mediana 18 22,5

Experimentados pré TH – % 43,2 20

Semanas de tratamento – mediana 68 48

RVS – n/N, % 20/37 = 54,1 22/40 = 55

Meses de seguimento pós tratamento – mediana 51 57

Redução de dose de RBV – % 75,7 67

Redução de dose de interferon – % 48,6 22,5

Uso de eritropoietina – % 59,5 25

de primeira geração, foram aprovados pela ANVISA. Estes medicamentos foram incorporados pelo PCDT em 2013, mas com uso restrito aos pacientes com VHC

genótipo 1, sempre associados a PegIFN e RBV22. Seu uso em pacientes pós TH foi

bastante limitado, principalmente devido a interações medicamentosas com imunossupressores, além de altas taxas de EA e de descontinuação de tratamento25.

O emprego de terapias livres de interferon trouxe melhora nas taxas de RVS pós TH. Os primeiros estudos avaliaram a combinação de SOF com RBV por 24

semanas, com taxa global de RVS de 70%42. A associação de dois DAA traz melhores

resultados, independentemente da combinação utilizada27-34, e passou a ser o padrão-

ouro para tratamento antiviral.

A combinação de SOF, DCV e RBV foi avaliada por alguns trabalhos publicados na literatura (Quadro 2). Em nosso segundo estudo foram tratados 55 pacientes transplantados de fígado com a combinação de SOF e DCV, associados à RBV, por 12 ou 24 semanas, de acordo com as indicações do PCDT vigente à época. Os pacientes eram em sua maioria portadores de VHC genótipo 1 (65%) e 35% genótipo 3. A predominância de pacientes com genótipo 1 também ocorreu em outros trabalhos da literatura, como o protocolo ALLY-127 e o estudo de vida real francês

ANRS CULPIT43. Além disso, proporção significativa dos pacientes tratados com DAA

já havia realizado tratamento prévio com interferon e RBV, atingindo 67% da nossa casuística.

A informação do estadiamento de fibrose pré tratamento não estava disponível para todos os nossos pacientes, já que nosso serviço não realiza biópsias protocolares durante o seguimento clínico (apenas após detecção de elevação de transaminases) e elastografia hepática não estava disponível na época do estudo. Além disto, o PCDT de 2015 não exigia esta informação para indicação da medicação, uma vez que os pacientes pós TH passaram a ser considerados prioritários para realização de tratamento e evidência de fibrose do enxerto parou de ser exigida para disponibilização dos antivirais. Nas casuísticas internacionais citadas acima mais de metade dos pacientes tratados apresentava fibrose avançada, com Metavir ≥ F3 (Quadro 2)27, 43.

As medianas de doses de RBV utilizadas nos diferentes estudos variaram de 480 a 800mg por dia. Em nosso estudo 58% dos pacientes foram tratados por 12

semanas, proporção superior ao estudo de vida real francês. Anemia foi o EA mais comum, observado em 65% dos nossos pacientes. Anemia considerada grave, com Hb < 10 g/dL, ocorreu 20% dos nossos pacientes, taxa menor do que a de 46% do braço que utilizou RBV no estudo ANRS CULPIT. O manejo da anemia nos diferentes estudos ocorreu principalmente com redução de dose de RBV (atingindo 45% dos nossos pacientes) ou suspensão desta medicação (apenas 5% dos nossos pacientes, contra 8% no estudo ALLY-1 e 15% no estudo francês) (Quadro 2)27, 43.

Quadro 2. Resultados do tratamento antiviral com SOF+DCV±RBV em diferentes estudos.

Em nossa casuística não foram descontinuados tratamentos por EA e nenhum paciente evoluiu a óbito. Foi suspenso tratamento de um paciente, na semana 11, por diagnóstico de tuberculose e este paciente atingiu RVS. A taxa de descontinuação de tratamento nos estudos acima variou de 2–4,2%.

As taxas de RVS obtidas foram altas em todos os estudos analisados. Em nossa casuística a taxa de RVS foi 98% e a única falha virológica ocorreu em paciente cirrótica, previamente experimentada a interferon, com infecção pelo VHC genótipo 3, tratada por 12 semanas. No estudo ALLY-1 a taxa global de RVS, 94%, foi semelhante àquela observada em nosso estudo, com 95% entre os pacientes genótipo 1 e 91%

ESTUDO 2/

UNICAMP ALLY-1 ANRS CULPIT ANRS CULPIT

N 55 53 48 89

Genótipo 1 – % 65 77 75 82

Genótipo 3 – % 35 21 17 8

Fibrose avançada – % – 55 56 56

Experimentados – % 67 58 60 44

Tratamento por 12 semanas – % 58 100 8 24

RVS – % 98 94 98 99

Dose de RBV – mg/dia, mediana 750 480 800 Sem RBV

Anemia – % Hb<10: 20 Hb<9: 4 Hb<10: 46 Hb<10: 17

Redução RBV – % 45 – 35 -

Suspensão RBV – % 5 8 15 -

Descontinuação de tratamento – % 0 2 4,2 (óbitos) 0

entre os de genótipo 3. No estudo ANRS CULPIT a taxa global de RVS (incluindo os braços tratados com ou sem RBV) foi de 96%.

Estudo publicado por Dumortier et al avaliou o tratamento de 125 pacientes

com fibrose avançada (Metavir ≥ F3), tratados com diversos esquemas baseados em

SOF. Os pacientes eram em sua maioria portadores de VHC genótipo 1 (78,2%) e receberam SOF e DCV por 12 semanas (73,6%). A taxa global de RVS foi 92,8%, com sete não respondedores (um tratado com SOF e DCV e seis tratados com SOF e RBV, esquema considerado subótimo). Nesta casuística de fibrose avançada ocorreram quatro óbitos e três retransplantes5.

Mucenic et al publicaram outro estudo de vida real de 40 transplantados brasileiros, predominantemente com VHC do genótipo 3 (66,7%), tratados por 12 semanas com SOF e DCV sem RBV (28 pacientes) ou com RBV (11 pacientes). A taxa global de RVS foi 89,7%, inferior àquela encontrada em nosso estudo. Ocorreram quatro falhas virológicas de pacientes com VHC genótipo 3 tratados por 12 semanas, sem RBV44.

Ao contrário dos tratamentos baseados em interferon, nos estudos com uso de DAA citados acima5, 27, 43, 44 se observa a tendência de piores taxas de RVS em

pacientes com infecção por VHC genótipo 3 e na presença de cirrose, principalmente cirrose descompensada (Child-Pugh B ou C). Nestes casos o tratamento por 24 semanas, associado ao uso de RBV, pode contribuir para melhores taxas de RVS. Buscando corrigir este problema, em 19 de abril de 2017 o Ministério da Saúde publicou a Portaria n°18, atualizando o PCDT brasileiro, recomendando tratamento de pacientes cirróticos com VHC genótipo 3 por 24 semanas45. Desde então já foram

realizadas outras mudanças no PCDT, incluindo novas opções terapêuticas para pacientes virgens de tratamento com DAA e também abordando retratamento dos casos de falha terapêutica aos DAA de primeira geração.

Com base nas opções terapêuticas disponíveis no momento do início da realização do estudo (SOF associado a DCV ou SMV, com ou sem RBV), a equipe assistente do Ambulatório de Moléstias Infecciosas do Grupo de Transplante de Fígado do Hospital de Clínicas da UNICAMP optou por tratar os pacientes com a combinação SOF e DCV, devido ao maior número de interações medicamentosas entre SMV e os imunossupressores comumente utilizados pós-TH26, 46. De acordo com

estudo publicado em 2016, a coadministração de ciclosporina e SMV pode levar a aumento significativo (acima de quatro vezes) nas concentrações plasmáticas de SMV e seu uso é contraindicado26. Por outro lado, em estudo publicado em 2015 não foi

observada alteração na concentração sérica de ciclosporina ou tacrolimus quando coadministrados com DCV46.

A ocorrência de rejeição do enxerto é uma grande preocupação no acompanhamento dos pacientes pós TH e pode ser causada por diversos outros fatores além das interações medicamentosas. É notório que o tratamento com PegIFN pode levar a disfunção imuno-mediada do enxerto47. Por este risco de rejeição, não

estava indicado o tratamento de VHC com terapias baseadas em interferon para pacientes em vigência de quadro de rejeição e seu uso em qualquer momento após outros tipos de transplante de órgãos sólidos, como renal, por exemplo, era bastante controverso.

Em estudo que publicamos em 2016, 48,6% dos pacientes avaliados apresentaram rejeição, considerada associada ao uso de IFN em 38,9% dos casos, em taxa maior do que aquela observada na literatura, de 0—25%4. Esta diferença

pode estar relacionada à maior duração do tratamento (mediana de 68 semanas na UNICAMP e 48 semanas na literatura). Por outro lado, entre pacientes tratados com terapias livres de IFN, as taxas de rejeição são baixas. Em nossa casuística de pacientes tratados com SOF, DCV e RBV não ocorreram casos de rejeição durante o tratamento, enquanto a literatura traz taxas de 0—4,2%27-29, 34, 43, 48, 49. Além disso,

observamos que foi realizada mudança da medicação imunossupressora em 36% dos nossos pacientes (principalmente redução de doses de prednisona), taxa menor que

a de 52% relatada no estudo ANRS CULPIT43. ELITA (European Liver and Intestine

Transplant Association) recomenda monitoramento cauteloso dos níveis séricos dos imunossupressores durante e especialmente após o final do tratamento, pois é esperado que com a melhora no metabolismo hepático causada pelo clareamento viral possa ocorrer alteração na exposição aos imunossupressores50.

Em nossa casuística apenas uma paciente apresentou rejeição, 12 semanas após terminar o uso de SOF, DCV e RBV. Esta paciente era previamente experimentada a tratamento com interferon pós TH. Chan et al publicaram estudo multicêntrico analisando 33 casos de disfunção imuno-mediada do enxerto associada

ao tratamento com DAA. Neste estudo o quadro de disfunção do enxerto acometeu 3,4% dos pacientes tratados com DAA, variando de 1,1—6,3% nos diferentes centros, se associou ao uso prévio de INF e se iniciou em mediana de 76 dias após o final do

tratamento com DAA51. Assim como ocorreu em nosso estudo, não foram observados

casos de disfunção do enxerto durante o uso de DAA. Rejeição pós tratamento pode estar associada a alteração na exposição aos imunossupressores, como comentado acima, mas também pode estar relacionada a alteração da resposta imune após clareamento viral. A infeção crônica pelo VHC pode levar a prejuízos na resposta imune inata e adaptativa e a eliminação do vírus pós tratamento com DAA pode

reverter este quadro, com evidências de restauração da função de células T CD8+52

e NK53. Alguns pesquisadores propõem que devido a estas alterações na resposta

imune pode ocorrer quadro semelhante ao da síndrome de reconstituição imune observada após início de antirretrovirais potentes para tratamento de pacientes com AIDS51.

Nosso estudo com tratamentos baseados em interferon (INF ou PegIFN) e RBV demonstrou resultados similares aos encontrados na literatura: maior sobrevida e menores taxas de descompensação clínica entre os pacientes que receberam terapia antiviral. A obtenção de RVS foi associada a melhores desfechos clínicos, mas foram observados benefícios mesmo entre os casos de recidiva viral4, 39, 41, 54-57.

Entre nossos pacientes tratados com interferon e RBV, independentemente da obtenção de RVS ou não, foi observado maior tempo de seguimento pós TH (mediana de 17 meses para pacientes não tratados e 86 meses para pacientes tratados, sendo 72 meses para aqueles sem RVS e 105 meses para aqueles com RVS). Esta diferença pode se justificar em parte pela existência de um viés de seleção, já que tanto a realização de biópsia hepática para diagnóstico de recorrência quanto a utilização do interferon eram contraindicadas para os pacientes mais graves, com sinais de descompensação clínica. Além disso, esta diferença pode estar relacionada a outros efeitos benéficos relacionados ao uso de interferon, já que alguns estudos demonstraram a melhora ou ausência de progressão da necroinflamação hepática com uso de interferon, mesmo na ausência de clareamento viral, o que levou a tentativas de estratégia de tratamento de manutenção com esta medicação4.

Estudo publicado com dados do Registro Europeu de Transplantes de Fígado incluindo mais de 60.000 pacientes demonstrou queda na indicação de TH por complicações secundárias ao VHC (de 22,8 a 17,4% de todos as cirurgias realizadas) e aumento na sobrevida 3 anos após TH, de 65,1% na era IFN para 76,9% na era DAA35. Estudo com dados americanos publicado por Cotter et al mostra dados

semelhantes, com receptores de TH por VHC atingindo desfechos semelhantes aos transplantados por outras causas36. Cholankeril et al avaliaram sobrevida do paciente

e do enxerto em um ano pós TH e observaram aumento na sobrevida dos pacientes transplantados por VHC na era dos DAA58.

Estes estudos apontam dados importantes a respeito dos benefícios do tratamento antiviral, porém não detalham dados a respeito de regimes terapêuticos ou resposta virológica. Não foram observados casos de óbito na casuística de pacientes tratados com DAA, mas maior período observação será necessário para avaliar a repercussão do tratamento com DAA na população de transplantados do Brasil no que diz respeito a aumento na sobrevida e redução de descompensação e perda do enxerto.

Nossos estudos apresentam algumas limitações, principalmente relacionadas ao fato de serem observacionais. Os médicos assistentes eram os responsáveis pela indicação de quais pacientes seriam tratados e pela escolha da opção terapêutica, o que pode levar a viés de seleção para inclusão no estudo. Além disso, os resultados dependem do registro das informações em prontuário médico e outras bases de dados do Grupo de Transplante de Fígado, o que pode levar à subnotificação de EA leves e outras intercorrências durante os tratamentos.

A falta de estadiamento de fibrose hepática de todos os pacientes no pré- tratamento é outra limitação para análise dos resultados. No serviço não eram realizadas biópsias hepáticas de maneira protocolar, apenas quando existia alteração clínica-laboratorial, o que pode levar a subnotificação dos dados de recorrência do VHC nos enxertos e subclassificação de fibrose naqueles pacientes que foram biopsiados longo tempo antes de iniciar tratamento antiviral. Além disso, a elastografia hepática para estadiamento não invasivo não estava incorporada na rotina clínica durante a realização dos estudos.

A realização de pesquisa de mutações ajudaria a compreender se a falha terapêutica observada na paciente tratada com SOF+DCV+RBV foi causada por emergência de variantes associadas a resistência.

Nesta casuística o curto período de acompanhamento prejudica análises sobre o impacto da terapia com DAA na sobrevida dos pacientes pós TH e no risco de recorrência de CHC.

A busca da RVS com o tratamento da hepatite C o mais precocemente possível após transplante se justifica pelos diversos benefícios apresentados acima e deve ser uma das prioridades dos serviços que realizam TH no Brasil e no mundo.

Documentos relacionados