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SUMÁRIO

FONTES ITALIANAS DO BAIXO CONTÍNUO NO SÉCULO

2.10. DISCUSSÃO SOBRE AS FONTES ABORDADAS

A publicação dos textos de Giulio Caccini (1601), Jacopo Peri (1600) e Lodovico da Viadana (1602) são publicados em datas muito próximas, e de certa forma pode-se dizer que pertencem ao mesmo ímpeto, ou seja, o de fundamentar como uma proposta composicional uma prática que, apesar de não ser completamente nova, surgia pela primeira vez em forma de

167 concorrono molti affetti sù dissonanze 168 passaggi

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publicação. Como mencionamos, a adoção de uma linha de baixo como diretriz ao acompanhamento em Caccini e Peri tem sua origem e fundamentação um pouco diferente daquela apresentada por Viadana.

Com relação à origem, no caso de Viadana ela está relacionada a um tipo de acompanhamento que já tendia a criar uma linha de baixo a ser seguida pelo organista, embora a mesma constituísse um recorte de trechos de diferentes vozes; na música profana, a monodia representa uma ruptura com a polifonia que não acontece necessariamente na música sacra, e sua origem está relacionada à prática de se tocar peças polifônicas com uma voz apenas, e acompanhamento instrumental.

Quanto à fundamentação da nova prática, os compositores ligados à Camerata Fiorentina buscam retomar princípios que se acreditava ligados à prática musical da antiguidade, sobretudo na declamação das tragédias, nas quais a música teria função de reforçar o sentido do texto. Os temas eram ligados a mitos encontrados nas tragédias gregas, uma escolha que reflete não apenas o desejo de retomar aspectos da antiguidade, como a busca por material poético que permita a composição de obras de elevado grau de expressividade. Os Concerti de Viadana (1602), por sua vez, pertencem ao contexto da música sacra, e a adoção do modelo de composição da seconda pratica neste caso envolve uma adaptação da prática musical que já se encontrava em curso, ligada à prática religiosa, e não uma ruptura completa.

Entre ambos, no entanto, há semelhanças fundamentais em termos técnicos e estéticos: a adoção de uma linha de baixo como parte da composição, que serve como guia ao acompanhamento instrumental; o uso de cifras que apontam alterações ou intervalos como os únicos parâmetros para a dedução dos preenchimentos do acompanhamento e como base à improvisação; a admissão da improvisação como parte constituinte da obra; a busca pela clareza na expressão do texto; a liberdade maior de criar linhas expressivas, ligadas às nuances poéticas do texto, uma vez que as melodias não têm de necessariamente configurar-se de forma a pertencer a um tecido polifônico.

Apesar de ser lembrado como um dos principais elementos que contribuíram para a ruptura com o modelo polifônico de composição característico da música cênica, o apreço pela palavra se encontra entre as principais buscas também no repertório apresentado por Viadana neste momento de transição mais ou menos gradual ao que viria a ser o estilo barroco. Tanto nas obras em si, a poucas vozes ou a voz solo, quanto no prefácio, o autor demonstra preocupação com a clareza na execução tanto no acompanhamento quanto na parte cantada, de forma a tornar o texto claro, retirando excessos em ambas as partes para favorecer a compreensão do texto. Desta forma, podemos entender que a clareza na expressão dos afetos e a delineação de

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diferentes funções para o canto e o acompanhamento são elementos comuns entre os autores. O acompanhamento, portanto, tem aqui uma função bastante determinada, que provavelmente se relaciona muito pouco com a ornamentação e preenchimento com passagens e diminuições, mas antes, como recomenda Agazzari, "manter a harmonia estável [ferma], sonora e contínua, para sustentar a voz169" (1607, p.10). Esta harmonia mencionada por Agazzari é o

resultado de uma espécie de supressão do tecido polifônico por um acompanhamento que mantêm-se ligado a ele em seus procedimentos, porém subtraindo o movimento constante e independente das vozes internas (como o acompanhador possivelmente tenderia a fazer - daí a recomendação de Agazzari).

Assim, o instrumento de fondamento virá substituir a harmonia composta pela relação entre as vozes da polifonia, e o instrumentista acompanhador deverá prezar sobretudo pela boa estruturação desta harmonia, o que apenas pode ser alcançado pelo pleno conhecimento das regras do contraponto. O bom uso da harmonia, ou seja, o uso harmonioso das vozes do acompanhamento, permite ao acompanhador manter uma base sobre a qual a voz principal se sobressai e adquire liberdade para expressar os afetos da palavra. Ao instrumentista caberia, segundo Agazzari, acompanhar com discrição, sem acrescentar muitos ornamentos ou dobrar a voz solista, mas antes realizar o baixo com clareza e correção.

A tradição das regras de acompanhamento, ou seja, de prescrições de padrões de harmonização que permitiriam ao intérprete realizar um baixo mesmo sem cifras por dedução, tem como primeira fonte o Breve Regola de Francesco Bianciardi (1607). Como comentado anteriormente, a abordagem de Bianciardi fornece instruções muito práticas para o acompanhamento, baseadas na determinação de harmonias específicas que preenchem as vozes a partir dos movimentos do baixo. Se pensarmos que se trata de um momento em que os métodos tem uma grande demanda entre os músicos que buscam aprender o novo estilo de acompanhamento (e que, cabe frisar, surgem num mometo em que as funções harmônicas e a concepção de tonalidade não estão presentes), conjuntos de instruções como o de Bianciardi teriam tido grande utilidade prática e contado adesão considerável entre os músicos, o que pode ser atestado pela grande quantidade de cópias (muitas feitas à mão) que circularam de métodos que continham estas regras (NUTI, 2006). Dentre as fontes aqui abordadas, aquela que pode ser considerada sucessora nesta metodologia é o Primi Albori Musicali, de Lorenzo Penna (1679). O tratado de Penna, porém, mostra uma formulação ao mesmo tampo mais sintética em seus princípios (pois ele junta numa mesma regra os diferentes movimentos do baixo que permitem

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dedução de harmonias idênticas) e mais elaborada em termos de quantidade de vozes e de movimentos melódicos que constituem suspensões, apojaturas e bordaduras (interompimenti), algumas vezes com duas vozes ou até três caminhando conjuntamente. Enquanto nas harmonias mais simples de Bianciardi as harmonias deduzidas equivalem à cifragem característica do incício do século XVII, que em geral tende a apresentar os intervalos menos esperados e que prevêem algum tratamento contrapontístico, Penna acrescenta e estas harmonias algumas fórmulas mais elaboradas, em que passos harmônicos intermediários (sobretudo nos movimentos cadenciais) começam a fazer parte das fórmulas de progressão harmônicas que podem ser consideradas de caráter mais cordal devido ao movimento simultâneo de harmonias prescritas pelas regras.

Pode-se dizer, portanto, que os interrompimenti de Penna são movimentos entre as consonâncias, ainda entendendo-se que as notas que não sejam as consonâncias devem ser ocasionais. Esta maneira de abordar as dissonâncias mantem relação com a maneira como Zarlino tratava a composição, conforme citado anteriormente: "Embora o contraponto seja composto principalmente por consonâncias, ocasionalmente são incluídas dissonâncias, o que aumenta sua vivacidade e beleza170" (1558, p.157). Ao mesmo tempo, porém, os interrompimenti

representam já formulações bastante elaboradas de passos harmônicos como padrões de progressões de acordes que tendem a consolidar funções harmônicas, à medida que os movimentos cadenciais começam a representar acordes determinados, cujas dissonâncias e seus tratamentos aparecem de forma previsível.

170 Percioche se bene il Contrapunto si compone principalmente di consonanze nondimeno per accidente anco si

127 Capítulo 3

O CONTRAPONTO COMO ELEMENTO ESTRUTURAL NA PRÁTICA DO BAIXO CONTÍNUO ITALIANA NO SÉCULO XVII

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Em termos históricos, o surgimento da monodia acompanhada possui papel fundamental enquanto uma revolução no fazer musical, rompendo técnica e esteticamente com a prática polifônica em busca de parâmetros composicionais que lançariam as bases para a construção do estilo e dos fundamentos sobre os quais se desenvolve o barroco na música. A ruptura que esta monodia representa, no entanto, não se dá com relação aos fundamentos contrapontísticos de composição, mas sim principalmente quanto à textura da obra que se deseja compôr e com o papel de cada parte no discurso sonoro. Em outras palavras, a monodia acompanhada rompe sobretudo com a textura polifônica, enquanto os fundamentos do contraponto que regiam a polifonia permanecem como a base fundamental da construção musical. Mesmo na monodia, o contraponto permanece válido como instrumento de coesão ao discurso harmônico ainda que a textura não seja polifônica, sobrevivendo na forma de condução vocal mesmo em repertórios de escrita cordal, como por exemplo os corais de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Caccini e Viadana (embora este não possa ser exatamente considerado um monodista) buscam de certa forma o mesmo em suas composições: uma clareza que se obtêm de texturas formadas por poucas vozes, o que permite que se possa representar ou perceber os afetos encontrados no texto sem a confusão que a polifonia a muitas vozes pode trazer ao ouvinte.

A harmonia, termo comumente associado a uma certa concepção de verticalidade dos sons, não surge e tão pouco se transforma de maneira tão radical durante os processos transformadores que sucederam entre fins do século XVI e as primeiras décadas do século XVII. Ao contrário, a concepção de harmonia permanece fortemente ligada, durante o século XVII, àquela que pode ser considerada a concepção característica do século anterior. A diferença essencial está no uso que se faz desta harmonia: seu papel na configuração da textura musical, sua origem material (com prevalência absoluta dos instrumentos na prática harmônica a partir do início do barroco), a inventividade que advem de diversas especulações composicionais, o atrelamento a uma proposta de reforçar a expressividade do texto, e, por fim, o desenvolvimento de fórmulas de progressão harmônica que podem ser muito bem resumidas pelos procedimentos de baixo contínuo.

A transformação da concepção harmônica, no período barroco, se dá de forma gradual, embora não linear. Durante a maior parte do século XVII e mesmo além dele pode-se perceber pelas afirmações dos teóricos semelhanças muito grandes com as fontes seicentistas na definição

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de harmonia ou na explicação de seus fundamentos. Em outras palavras, a harmonia muito raramente pode ser compreendida fora da percepção de que ela surge como resultado do uso dos parâmetros do contraponto. Apenas em pleno século XVIII, e ainda assim não de maneira uniforme, os acordes tendem a ser compreendidos como entidades dotadas de uma unidade significativa, as consequências harmônicas passam a ser tratadas de acorde para acorde, e sobretudo funções harmônicas passam a ser bem definidas dentro de uma concepção que na prática se aproxima à ideia de campo harmônico (o que se evidencia mais claramente pelo surgimento e a adoção da regra de oitava171

nas fontes sobre o acompanhamento).

Ao versar sobre a maneira correta de se conduzir as vozes, Bianciardi afirma que "a harmonia nasce de diferentes sons ordenados por movimento contrário"172

(1607, p.7). Esta afirmação permite observar que a concepção do aspecto harmônico está presente na maneira de conceber o acompanhamento à época do autor, mas também que a construção desta harmonia é direcionada por princípios do contraponto (neste caso, o movimento contrário das vozes).

Mesmo na defesa da monodia acompanhada como a maneira mais adequada para a expressão dos afetos da palavra, Caccini (1601) justifica o uso do contraponto como uma ferramenta de composição que estaria por trás da concepção da melodia e sua relação com o baixo:

Nestes madrigais, assim como nestas árias, sempre busquei a imitação do sentido das palavras, procurando as notas mais ou menos expressivas de acordo com os sentimentos delas, e que tivessem particular graça, dissimulando o mais que pude a arte do contraponto (CACCINI, 2006 [1601], p.216).

Esta "dissimilação" da arte do contraponto significa que o contraponto está presente enquanto diretriz composicional do ponto de vista técnico, embora a polifonia não esteja presente como o elemento central que deve cativar o interesse do ouvinte. Segundo a nova proposta, a atenção estaria direcionada a uma linha principal de canto. A composição desta linha, no entanto, assim como sua própria relação com a linha do baixo, permanece tendo como fundamento os princípios do contraponto, a partir dos quais o compositor encontra meios para se

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A regra de oitava, que surge na França nas primeiras décadas do século XVII, é uma simplificação de diversas regras de acompanhamento em uma fórmula que consiste em prescrever um acorde específico para cada grau da escala diatônica. Embora a adoção desta regra não tenha sido unânime, ela é a base para a aprendizagem inicial do baixo contínuo em métodos conhecidos como o Principes de l’accompagnement du clavecin, de Dandrieu (s/a.)

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utilizar de consonâncias e dissonâncias e ornamentar a linha melódica, de acordo com os afetos da palavra.

Embora o resultado esperado para o acompanhamento claramente se afaste da prática do acompanhamento polifônico característico do século anterior, com base nas afirmações dos autores estudados podemos compreender o contraponto como o elemento estrutural a partir do qual se desenvolve a prática do baixo contínuo durante o período que estas obras perfaz. Seguindo esta premissa, é possível encontrar evidências de que a prática do baixo contínuo característica do século XVII se dá inteiramente dentro dos parâmetros do contraponto no que diz respeito à sua construção, apresentando-se portanto como o fundamento da aprendizagem e da prática do acompanhamento. Os preceitos do contraponto, então, passam gradualmente à posição de guia para questões como aprogressão harmônica, a condução das vozes e preparação e resolução de dissonâncias.

A seguir, buscaremos compreender o papel do contraponto no desenvolvimento dos preceitos básicos do acompanhamento ao longo do século XVII na Itália, a partir de evidências encontradas nas fontes analisadas.

3.1. O CONHECIMENTO DO CONTRAPONTO COMO PRÉ-REQUISITO PARA O ACOMPANHAMENTO

Entre os tratados e métodos aqui analisados que abordam o baixo contínuo (segundo capítulo), uma semelhança fundamental é a presença do contraponto como ferramenta primordial na construção do discurso sonoro, apesar de este discurso não se basear na criação de um tecido polifônico. Como aponta Thérèse de Goede-Klinkhammer, "para o executante moderno, que via de regra tem pouco conhecimento de contraponto, eles são bastante incompletos em alguns aspectos173" (GOEDE-KLINKHAMMER, 1997, p.84). Isto se deve ao fato de que, nestas fontes,

o conhecimento do contraponto é pensado como um pré-requisito para a aprendizagem do acompanhamento, como afirma a autora:

A concisão dos primeiros tratados está relacionada ao fato de que era esperado que o executante de baixo contínuo tivesse um bom conhecimento de contraponto e das regras

173 For the modem player, who as a rule has but little knowledge of counterpoint, they are rather incomplete in some

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para se tocar "a partir do baixo" (sopra la parte). Os tratados eram, sobretudo, destinados a servir como livros de instruções práticas174 (1997, p.82).

Esta relação entre o conhecimento do contraponto e a aprendizagem do acompanhamento pode ser observada a partir da necessidade apontada expressamente por praticamente todos os autores citados autores citados de se conhecer o contraponto como um pré-requisito para se aprender a realizar o acompanhamento: Francesco Bianciardi, logo nas primeiras indicações sobre o acompanhamento (1607, p. 9); Agostino Agazzari, como primeiro pré-requisito para o acompanhamento (1607, p. 6); Lorenzo Penna, também como primeiro pré-requisito (1679, p. 135).

Ainda que alguns autores não mencionem esta necessidade, o contexto e a abordagem de seus textos a deixam subentendida, como é o caso do prefácio de Viadana, claramente direcionado a instruir a nova prática aos organistas já acostumados com o acompanhamento contrapontístico. Viadana não procura fundamentar a prática do baixo contínuo ou estabelecer os princípios que regem esta prática, mas antes advertir o organista para o que se deve ou não fazer a partir do conhecimento e da prática que já possuíam de acompahamento, o que se mostra evidente, por exemplo, na segunda advertência:

O organista é obrigado a tocar somente a partitura, especialmente com a mão de baixo, e se quiser fazer algum movimento com a mão de cima, como florear a cadência ou qualquer passagem apropriada, deve tocar de maneira tal que o cantor ou cantores não sejam cobertos ou fiquem confusos com tanto movimento175 (1602, p. 6).

Como mencionado no capítulo anterior, Giulio Caccini toma pessoalmente uma posição contra a escrita polifônica ao afirmar em seu prefácio que aprendeu mais com os intelectuais da Camerata do que com trinta anos de experiência com o contraponto (2006 [1601], p. 214). Ainda assim, sua escrita monódica ainda se baseia nos preceitos do contraponto, ainda que utilizados apenas para direcionar a escrita das duas vozes, como afirma Dahlhaus:

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The conciseness of the earliest treatises is related to the fact that the thorough bass player was supposed to possess a good knowledge of counterpoint and of the rules to play "from the bass" (sopra la parte). The treatises were, above all, intended to serve as books of practical instruction.

175 Che l´Organista sia in obligo di suonar semplicemente la Partitura, & in particolare con la man di sotto, & se

pure vuol fare qualche movimento dalla mano di sopra, come fiorire le Cadenze, ò qualche Passaggio à proposito, ha da suonare in maniera tale, che il cantore, ò cantorinon vengano coperti, ò confusi dal troppo movimento.

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a polêmica de Giulio Caccini contra o contraponto tradicional apenas assinala que na monodia contraponto é um meio, não um fim: o contraponto foi deslocado, mas não invalidado. Caccini entendeu a relação entre a parte da voz e do baixo como contraponto, como uma progressão intervalar176 (1990, p. 121)

Em seu prefácio, ainda que Caccini protagonize esta polêmica contra o contraponto tradicional, ele justifica alguns de seus procedimentos composicionais utilizando-se de parâmetros do contraponto. A aparente contradição da posição de Caccini se explica pelo fato de que, ao colocar-se contrariamente ao contraponto, o que ele nega não são seus princípios enquanto elementos que fornecem estrutura à composição, mas sim o modelo de escrita polifônica, defendendo em seu lugar o estilo monódico, no qual as regras do contraponto são relativizadas em favor de uma escrita mais espressiva para o canto. Desta forma, a prática da monodia defendida no Nuove Musiche (1601) não representa uma supressão completa do contraponto, mas sim uma proposta de composição que preza pela maior clareza da voz solista e a expressão dos afetos do texto, em contraposição à complexa polifonia do alto renascimento. Para que a soberania do texto mencionada por Caccini aconteça, é necessário que o acompanhamento seja bem estruturado do ponto de vista contrapontístico, porém sem que a textura polifônica represente seu principal material. Trata-se de um momento de ruptura, mas também de transição, em que se busca o novo, embora ainda apresentado através das antigas ferramentas de estruturação musical.

Se esteticamente a monodia é apresentada como uma ruptura com a prática anterior, do ponto de vista técnico esta transformação parece mais gradual. Ainda que o acompanhamento indicado pelos autores aqui abordados não seja de caráter polifônico, certamente ele deve incluir passagens nas vozes internas, que ancorariam ou embasariam o uso da dissonância como elemento expressivo. Desta forma, pode-se inferir que não cabe ao instrumentista apenas preencher o espaço entre a voz solista e o baixo com acordes e passagens ornamentais, mas sim criar um acompanhamento que possa fornecer os elementos do contraponto como contexto sobretudo às dissonâncias, oferecendo uma base bem estruturada sobre a qual a voz solista possa aparecer com maior clareza, destacando os afetos da palavra cantada.

A forma como o contraponto é exigido como pré-requisito se dá através da mais essencial das exigências do baixo contínuo: a de que o executante possa realizar o acompanhamento a partir de

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Yet Giulio Caccini' s polemic against traditional counterpoint only points out that in monody, counterpoint is a

means, not an end: counterpoint was demoted, but not invalidated. Caccini understood the relationship between the voice part and the bass as counterpoint, as in interval progression

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um baixo com poucas cifras ou nenhuma. O estabelecimento de regras de acompanhamento, uma das principais preocupações entre a maior parte das fontes mencionadas no segundo capítulo, exerce a função essencial de ensinar ao instrumentista como deduzir corretamente as harmonias a partir de uma linha do baixo, prescrevendo procedimentos de harmonização que tendem a se tornar mais complexos nas fontes mais tardias conforme a própria harmonia passa a contar com mais recursos. Como a maior parte das regras se tornaria desnecessária caso as cifras estivessem