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O papel do contraponto no desenvolvimento da harmonia : uma abordagem a partir do baixo contínuo italiano no século XVII

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

GUSTAVO ANGELO DIAS

O PAPEL DO CONTRAPONTO NO DESENVOLVIMENTO DA HARMONIA: UMA ABORDAGEM A PARTIR DO BAIXO CONTÍNUO ITALIANO NO SÉCULO XVII

CAMPINAS 2015

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GUSTAVO ANGELO DIAS

O PAPEL DO CONTRAPONTO NO DESENVOLVIMENTO DA HARMONIA: UMA ABORDAGEM A PARTIR DO BAIXO CONTÍNUO ITALIANO NO SÉCULO XVII

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Música na área de concentração: Fundamentos Teóricos.

ORIENTADORA: Profa. Dra. HELENA JANK

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA [DISSERTAÇÃO/TESE] DEFENDIDA PELO ALUNO GUSTAVO ANGELO DIAS, E ORIENTADO PELA PROFA. DRA. HELENA JANK.

CAMPINAS 2015

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AGRADECIMENTOS

À querida orientadora Helena Jank, que com muita sabedoria e paciência ofereceu inspiração e contribuições muito valiosas a esta pesquisa e a tantas outras questões da vida;

Aos professores Marcos Fernandes Pupo Nogueira, Paulo Mugayar Kühl, Patrícia Gatti, Ricardo Goldemberg, Cassiano de Almeida Barros, Áurea Helena de Jesus Ambiel, Edmundo Pacheco Hora e Hermes Coelho Gomes, que, compondo as bancas de defesa, qualificação e monografia, forneceram suas leituras atentas e comentários proveitosos, ajudando a direcionar os rumos da pesquisa; Aos demais professores e colegas que aceitaram debater ideias nos eventos acadêmicos, nas aulas e nos corredores;

À Natália, que com seu amor e exemplo de vida torna mais agradável qualquer travessia;

Ao pessoal da Casa da Sheeba, pela amizade e pela ajuda em tantas situações; A todos os familiares e amigos que apoiaram os passos dados até aqui, e que certamente me apoiarão nos próximos;

À Unicamp, espécie de segunda casa durante um período tão gratificante, e em especial ao Programa de Pós-graduação em Música, que ofereceu valioso suporte técnico e humano;

À CAPES, que concedeu auxílio financeiro à pesquisa, possibilitando a necessária dedicação.

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Num conceito, há, no mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de outros conceitos, que respondiam a outros problemas e supunham outros planos. Não pode ser diferente, já que cada conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado. (Gilles Deleuze e Felix Guatarri, O que é a filosofia?)

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RESUMO

Neste trabalho propomos uma investigação acerca do desenvolvimento da harmonia entre os séculos XVI e início do século XVIII, com especial ênfase no baixo contínuo italiano do século XVII, segundo algumas das fontes primárias mais relevantes publicadas na Itália neste período. Utilizando o tratado Le Istitutioni harmoniche (1558), de Gioseffo Zarlino como referência principal da teoria harmônica e contrapontística do renascimento, a tese está centrada na comparação entre estes procedimentos e os princípios do acompanhamento no barroco setecentista. Com isto esperamos tecer uma visão historiográfica das fontes abordadas, problematizando a teoria harmônica para a compreensão da prática do baixo contínuo e seu desenvolvimento e contextualizando histórica e esteticamente o surgimento da monodia acompanhada. Concluímos que o referencial teórico do contraponto e da harmonia renascentista oferece grande contribuição para a compreensão da visão harmônica anterior à consolidação da tonalidade harmônica, encontrando equivalências entre os procedimentos formulados por Zarlino e os autores abordados que descrevem e ensinam a prática do acompanhamento instrumental entre o início do século XVII e início do século XVIII.

Plavras-chave: Música italiana do século XVII; Baixo-contínuo; Teoria da harmonia; Contraponto.

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ABSTRACT

In this work the author proposes an investigation on the development of harmony from the 16th to the early 18th centuries, with special emphasis on the Italian thorough-bass of the 17th century, according to the most relevant primary sources published in Italy during this period. Using Gioseffo Zarlino´s “Le Intitutioni harmoniche” (1558) as principal reference to Renaissance´s harmonic and contrapuntal theory, this work focuses on the comparison between these procedures and the principles of 17th century baroque music accompaniment. Thus it is hoped to offer a historiographic vision of the existing references leading to the understanding of thoroughbass practice and its development and to the emergence of accompanied monody. In conclusion it is possible to observe that this reference offers great contribution to the understanding of harmonic vision prior to the consolidation of harmonic tonality, making it possible to find similar procedures formulated by Zarlino and authors that describe and teach the art accompaniment as practiced between the early 17th and early 18th -centuries.

Keywords: Seventtenth century Italian music; Thorough-bass; Harmony theory; Counterpoint.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: intervalos compostos e suas equivalências. Fonte: ZARLINO, 1558. 43 Figura 2: relações de semidiapente e tritono entre as notas consequentes de

diferentes vozes. Fonte: ZARLINO, 1558, p. 179

49 Figura 3: Exemplos de boas progressões por movimento paralelo com alternância

de consonâncias perfeitas e imperfeitas (na ordem: 8a → 3a, U →3a, U → 3a, 5a → 6a

, 5a → 6a, 8a → 3a, U → 3a, 5a → 6a). Fonte: ZARLINO, 1558, p. 186.

51

Figura 4: exemplo de contraponto florido ou diminuído. Sob o soggetto (neste caso um cantus firmus) dois diferentes contrapontos são mostrados: o segundo dele (dois pentagramas finais) traz início em síncopa. Fonte: ZARLINO, 1558, p. 196.

55

Figura 5: "Consequência de dois tempos em semiditono [3am] no agudo, para movimento contrário" (as duas claves no início mostram a posição das duas vozes) Fonte: ZARLINO, 1558, p. 216

59

Figura 6: Exemplos de cadências simples, todas terminando em uníssono. Fonte: ZARLINO, 1558, p. 222.

60 Figura 7: a formação dos acordes a partir de duas vozes dadas. Fonte:

ZARLINO, 1558, p. 241

66 Figura 8: os tetracordes diatônicos, cromaticos e enarmônicos. Fonte:

ZARLINO, 1558, p. 281.

74 Figura 9: Sequência de consonâncias e dissonâncias alternadas sobre um baixo

que caminha por graus conjuntos descendentes. Fonte: PENNA, 1679, p. 148.

118 Figura 10: Regra e exemplos de baixos se movimentando por 4a ascendente ou 5a

descendente. A 3aM do segundo acorde corresponde ao sétimo grau maior da escala, ou sensível. Fonte: PENNA, 1679, p. 152.

119

Figura 11: Regra e exemplos de progressões com o baixo movendo-se por 5a descendente ou 4a ascendente. Fonte: PENNA, 1679, p. 154

120 Figura 12: Exemplos de interompimenti para cadências de primeira ordem (5a

descendente ou 4a ascendente). Fonte: PENNA, 1679, p. 166.

122 Figura 13: Uso de harmonias de 6ª alternadas com tríades no concerto Duo

Seraphim Clamambant (1602), de Lodovido da Viadana. Fonte: o autor.

143 Figura 14: Excerto da Sonata Op.5 No. 1 de Corelli com realização do baixo por

Tonelli. Fonte: CORELLI, p. 2.

156 Figura 15: Excerto da Sonata Op.5 No. 1 de Corelli com realização do baixo por

Tonelli. Em destaque as notas cifradas, as preparações e resoluções. Fonte: CORELLI, p. 2.

156

Figura 16: Excerto da Ottava Sonata – A doi. Fagotto & Violin, de Dario Castello. Fonte: CASTELLO, 2005, p. 48

157 Figura 17: Trecho inicial de Queste lagima’amare, do Nuove Musiche (1601), de

Giulio Caccini, com realização do baixo. Fonte: o autor.

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Figura 18: página de rosto da primeira edição de Le Musiche sopra L'Euridice. Fonte: PERI, 1660 (fac-símile)

172 Figura 19: página de rosto da primeira edição. Fonte: VIADANA, 1602

(fac-símile).

180 Figura 20: A Breve Regola original de Bianciardi, publicado em 1607 em uma

única grande página. Fonte: http://www.earlymusicsources.com

190

Figura 21: Fonte: LANG. In: www.bassus-generalis.org 192

Figura 22: Fonte: LANG. In: www.bassus-generalis.org 195

Figura 23: Fonte: LANG. In: www.bassus-generalis.org 196

Figura 24: Fonte: LANG. In: www.bassus-generalis.org 199

Figura 25: Fonte: LANG. In: www.bassus-generalis.org 201

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LISTA DE TBELAS

Tabela 1: movimentos melódicos indicados por Zarlino para consonâncias imperfeitas maiores e

menores. Fonte: o autor. 45

Tabela 2: movimentos melódicos indicados por Zarlino para resoluções melódicas. Fonte: o

autor. 52

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 24

1. BASES COMPOSICIONAIS DO RENASCIMENTO TARDIO ITALIANO SEGUNDO LE ISTITUTIONI HARMONICHE (1558), DE GIOSEFFO ZARLINO

33

1.1. GIOSEFFO ZARLINO: TERCEIRA PARTE DE LE ISTITUTIONI HARMONICHE [AS INSTITUIÇÕES HARMÔNICAS] (1558)

41

2. FONTES ITALIANAS DO BAIXO CONTÍNUO NO SÉCULO XVII 80

2.1. A MONODIA ACOMPANHADA E A CORTE DOS MEDICI 83

2.2. ANTECEDENTES DO STILE RAPPRESENTATIVO 87

2.3. SURGIMENTO DA MONODIA EM MEIO IMPRESSO NA MÚSICA SACRA

92

2.4. JACOPO PERI: PREFÁCIO A LE MUSICHE SOPRA L'EURIDICE (FLORENÇA, 1600)

95

2.5. GIULIO CACCINI: PREFÁCIO A LE NUOVE MUSICHE [AS NOVAS MÚSICAS] (FLORENÇA, 1601)

101

2.6. LODOVICO DA VIADANA: PREFÁCIO AOS CENTO CONCERTI ECLESIASTICI [CEM CONCERTOS ECLESIÁSTICOS] (VENEZA, 1602)

103

2.7. FRANCESCO BIANCIARDI: BREVE REGOLA PER IMPARAR A SONARE IL BASSO COM OGNI SORTE D’ISTRUMENTO [BREVE REGRA PARA APRENDER A TOCAR SOBRE O BAIXO COM TODO TIPO DE INSTRUMENTOS] (SIENA, 1607)

112

2.8. AGOSTINO AGAZZARI: DEL SONARE SOPRA IL BASSO COM TUTTI STROMENTI E USO LORO NEL CONSERTO, [TOCAR SOBRE O BAIXO COM TODO TIPO DE INSTRUMENTOS E SEU USO NOS CONJUNTOS], (SIENA, 1607)

113

2.9. LORENZO PENNA: LI PRIMI ALBORI MUSICALI PER LI PRINCIPIANTI DELLA MUSICA FIGURATA [O PRIMEIRO ALVORECER MUSICAL PARA OS PRINCIPIANTES DA MÚSICA FIGURADA] (BOLOGNA, 1679)

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2.10. DISCUSSÃO SOBRE AS FONTES ABORDADAS 123

3. O CONTRAPONTO COMO ELEMENTO ESTRUTURAL NA PRÁTICA DO BAIXO CONTÍNUO ITALIANA NO SÉCULO XVII

130

3.1. O CONHECIMENTO DO CONTRAPONTO COMO PRÉ-REQUISITO PARA O ACOMPANHAMENTO

130

3.2. A HARMONIA COMO DIVERSIDADE DE VOZES EM MOVIMENTO SIMULTÂNEO

134

3.3. AS CONSONÂNCIAS PERFEITAS E IMPERFEITAS SÃO INTERCAMBIÁVEIS

139

3.4. O QUE SE REGISTRA NAS CIFRAS SÃO CONSONÂNCIAS INESPERADAS E DISSONÂNCIAS

144

3.5. A APRENDIZAGEM E A DEDUÇÃO DOS INTERVALOS ATRAVÉS DOS MOVIMENTOS DO BAIXO

151

3.6. O TRATAMENTO DAS DISSONÂNCIAS 155

CONSIDERAÇÕES FINAIS 159

BIBLIOGRAFIA 164

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24

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25

Neste trabalho procuramos apresentar uma abordagem histórica da prática do baixo contínuo, ou o estilo de acompanhamento instrumental que surge na Itália entre fins do século XVI e o início do século XVII, e que logo passa a representar um dos aspectos fundamentais nas transformações musicais características do período que posteriormente ficou conhecido como barroco.

O interesse em empreender esta investigação surgiu da observação de que a abordagem comumente utilizada nos dias de hoje para a aprendizagem do baixo contínuo tende a partir de premissas posteriores a esta prática, do ponto de vista de fatores como harmonia e tonalidade. Como afirma Thérèse de Goede-Klinkhammer, "muitos dos executantes de baixo contínuo abordam a parte do baixo contínuo, incluindo as do século XVII, a partir do ponto de vista da harmonia funcional1" (1997, p.81), o que tende portanto a fornecer sobre esta prática um

pensamento diferente daquele sobre o qual ela foi construída. Como explica a autora, ainda que este acompanhamento tenha sido praticamente extinto durante o século XIX, a cifragem utilizada para representar as harmonias permaneceu em uso para ensinar e ilustrar a harmonia, tendo sido utilizada inclusive por Hugo Riemann para demonstrar sua proposição teórica da harmonia funcional.

Desta forma, a leitura de fontes setecentistas que descrevem a prática do baixo contínuo (sobretudo a do século XVII) pode surpreender o estudante que se lança nos dias de hoje à tarefa de aprender esta prática procurando compreendê-la a partir dos ensinamentos dos mestres contemporâneos a ela. Embora seja comum ouvir de professores e colegas que o baixo contínuo é uma prática que concretiza e consolida o papel de uma verticalização do discurso musical em contraposição à polifonia característica da música renascentista, apenas gradualmente, ao longo dos séculos XVII e XVIII, a concepção harmônica presente no baixo contínuo se desliga dos parâmetros da modalidade em direção ao que se conhece hoje por harmonia tonal. Outro aspecto intrigante das fontes do século XVII sobre o acompanhamento é que as explicações e justificativas desta prática, comumente associada ao rompimento com a polifonia, são essencialmente ligadas aos preceitos e procedimentos do contraponto com os quais se construiu a

1 Most thorough bass players approach a thorough bass part, including a 17th-century bass, from the point of view

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26 polifonia renascentista.

Não considerar que o pensamento que direciona a compreensão do baixo contínuo neste período está alicerçado sobre as premissas do contraponto poderá fazer os conjuntos de regras e indicações para acompanhamento parecerem um complicado emaranhado de instruções difíceis de compreender e aplicar, senão completamente insípidas. Isto se deve ao fato de que o século XVII, apesar de comumente associado a um período de fortes transformações na prática e na teoria musical, representa talvez mais um mosaico de influências de fenômenos conhecidos e invenções do que o surgimento de uma proposição acabada e coerente de fazer musical. Embora muito do aspecto revolucionário que se costuma atribuir a este período de fato tenha ocorrido, os eventos e os parâmetros artísticos que constitituíram estas revoluções surgem de forma intermitente e não são prontamente aceitas com unanimidade. Igualmente, a formulação dos novos preceitos tende a surgir por vezes a partir de uma adaptação da teoria existente, em outros momentos procurando por parâmetros novos que possam espelhar as buscas empreendidas no campo da prática musical. Desta maneira, tanto os músicos que apresentam suas proposições como completamente inovadoras quanto os teóricos que procuram explicar seus preceitos utilizam-se algumas vezes de argumentos e ferramentas teóricas que podem parecer completamente inusitadas para o leitor que habituou-se à visão construída a posteriori deste período.

No capítulo Tonal organization in seventeenth-century music theory da Cambridge History of Western Music (2006), Gregory Barnett oferece um interessante resumo da problemática da teoria musical setecentista:

Embora conhecido como a Idade da Razão pelos empreendimentos e descobertas científicas que testemunhou, o século XVII é frequentemente visto como um período de incerteza e confusão no contexto do pensamento musical. Na nossa perspectiva atual, o pensamento musical desse período é ofuscado tanto pelo que o precede quanto pelo que o sucede: os pólos opostos da teoria modal renascentista e da tonalidade harmônica do século XVIII parecem mais inteligíveis do que aquilo que percebemos como a transição entre os dois. De fato, muito do que encontramos na teoria do século XVII nos parece atualmente uma mistura complicada: idéias que se adequam surpreendentemente bem aos preceitos de tonalidade maior e menor parecem se misturar livremente com os ensinamentos e a terminologia da teoria modal. A este aparente paradoxo soma-se um espírito pesaroso dos próprios teóricos, muitos dos quais lamentam a confusão de sua época2 (BARNETT, 2006, p. 407).

2

Otherwise known as the Age of Reason for the scientific undertakings and discoveries it witnessed, the seventeenth century is frequently seen as a period of uncertainty and confusion in the context of musical thought. From our own present perspective, musical thought of this period is overshadowed both by what precedes it and by what follows: the opposing poles of Renaissance modal theory and eighteenth-century harmonic tonality each seem more intelligible than that which we perceive as the transition between the two. Indeed, much of what we find in seventeenth-century theory appears to present a puzzling mix: ideas that accord strikingly well with the precepts

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A dificuldade em encontrarmos hoje alguma "unidade" de pensamento na teoria musical deste período diz respeito não apenas ao emaranhado de preceitos teóricos antigos e novos de que ela é objeto, mas também à finalidade com que as fontes teóricas são escritas (o que espelha as diversas práticas musicais concomitantes neste período e o amplo debate existente sobre como compreendê-la), como complementa Barnett:

E ainda assim os tratados de música século XVII oferecem uma imagem clara e ricamente detalhada do pensamento musical se considerarmos que eles se direcionam a finalidades muito diferentes: servir ao cantor de igreja ligado a uma prática longeva e relativamente estável de canto litúrgico; treinar instrumentistas de teclado e de outros instrumentos cordais na arte de improvisar harmonias sobre um baixo; familiarizar o músico já formado com as tradições estabelecidas de contraponto e teoria modal; instruir a mente racional nas bases científicas dos sistemas de afinação; e, finalmente, esclarecer os curiosos sobre temas musicais mais especulativos e imaginativos, como o mito da descoberta da harmonia por Pitágoras no som dos martelos na forja, os estratos harmônicos de Boécio e as origens lendárias da própria música. Resumindo, a teoria do século XVII compreende uma rica mistura de mito, investigação científica, regras de composição e treinamento musical básico3 (idem).

É no heterogêneo período descrito por Gregory Barnett que se encontra o objeto principal de nossa investigação. Mais especificamente, procuramos estabelecer uma compreensão dos princípios que regem o baixo contínuo neste contexto de terra média entre a teoria modal conforme se compreendia no século XVI e o estabelecimento da tonalidade harmônica no século XVIII a partir das fontes italianas do século XVII e da mais significativa fonte da teoria modal renascentista, Le Istitutioni harmoniche (1558), de Gioseffo Zarlino (1517-1590). Dito de outra forma, nosso objetivo é investigar em que medida a construção do pensamento sobre o baixo contínuo nas fontes italianas ao longo do século XVII se relaciona aos preceitos herdados da teoria musical do século anterior sobre a harmonia e o contraponto. Para tanto, utilizamos em

of major-minor tonality appear to mingle freely with the teachings and terminology of modal theory. Added to this seeming paradox is the darkened mood of the theorists themselves, many of whom lament the confusion of their age.

3 And yet, seventeenth-century music treatises paint a clear, if richly detailed, picture of musical thought if we

keep in mind that they address widely diferent purposes: to serve the church singer in a long-standing and relatively stable practice of liturgical chant; to train keyboardists and other chord-playing instrumentalists in the art of extemporizing harmonies over a bass; to educate the well-rounded musician in the established traditions of counterpoint and modal theory; to instruct the rational mind in the scientific bases of tuning systems; and finally, to enlighten the curious on more speculative and imaginative musical topics, such as Pythagoras’s fabled discovery of harmony in the sound of hammers at the forge, the Boethian harmonic strata, and the legendary origins of music itself. In short, seventeenth-century theory comprises a rich mixture of myth, scientific research, rules for composition, and basic musical training.

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nossa pesquisa fontes do baixo contínuo que envolvem desde as primeiras proposições escritas sobre a nova proposta musical que se consolidaria como a seconda pratica até a elaboração de tratados bastante ricos e completos sobre o acompanhamento, como o Primi Albori Musicali per li Principianti della Musica Figurata (1679), de Lorenzo Penna (1613-1693).

Nossa abordagem, portanto, parte de uma tentaiva de construir uma visão cronológica da teoria do baixo contínuo, e não de uma formulação que tente explicá-la como um todo coerente. Ao contrário, procuraremos dar lugar às diferentes visões encontradas nas fontes abordadas, ainda que algumas vezes elas pareçam contradizer-se entre si sob determinados aspectos.

Para tanto, tentamos de antemão relativizar a abordagem teórica que inicialmente pode parecer mais confortável por encontrar-se pronta a oferecer uma compreensão mais acabada dos fenômenos aqui estudados. Trata-se da visão que se aproxima da harmonia como geralmente aprendemos nos cursos de música de diferentes níveis, e que prontamente apresenta algum tipo de solução para explicar uma música anterior a ela: a harmonia como uma teoria que procura descrever as relações entre conjuntos de sons simultâneos (os acordes), construída sobre princípios abstratos que regem estas relações num campo de hierarquias e funções definidas e reconhecíveis. Procuramos, à medida do possível, colocar de lado esta visão ao abordar as fontes primárias, ainda que a falta dela tenha criado num primeiro momento muito mais questionamentos do que respostas.

Entre as fontes modernas pesquisadas, a maioria dos trabalhos sobre o acompanhamento do período barroco tem ênfase na questão da performance. É o caso de livros como The Performance of the Basso Continuo in Italian Baroque Music, de Tharald Borgir (1987 - publicado originalmente em 1977), The Performance of Italian Basso Continuo: Style in Keyboard accompaniment in the Seventeenth and Eighteenth Centuries, de Giulia Nuti (2007), e do clássico The Art of Accompaniment from a Thorough-bass as practised in the XVIIth & XVIIIth Centuries, de Frank Thomas Arnold (1965 - publicado originalmente em 1931). O interesse da abordagem frequente a partir do ponto de vista da performance pode ser atribuído à demanda por informações que possam embasar a prática conhecida como "música antiga", "música historicamente informada" ou outros termos equivalentes ao que em inglês ficou conhecido como early music - movimento que ganhou enorme espaço entre executantes e público nas salas de concertos e demais ambientes, que procura abordar a música do passado segundo o parâmetro de retomar elementos musicais perdidos por tradições posteriores e reconstruir em termos de sonoridade algumas das características desta música.

Embora pensemos que este trabalho possa trazer alguma contribuição efetiva ao intérprete da "música antiga" (no sentido de propor uma visão dos princípios que regiam ou

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estruturavam a prática do baixo contínuo no século XVII e do desenvolvimento da harmonia neste período), não estabelecemos o foco desta pesquisa na questão específica da performance - ou seja, nos preceitos práticos sobe execução encontrados nas fontes abordadas. Ainda assim, muitas vezes estes preceitos ou indicações (ou "regras", como são algumas vezes chamadas pelos autores) acabaram se mostrando valiosos para a compreensão que buscamos aqui estabelecer, mais ligada a uma percepção histórica da teoria da harmonia e do baixo contínuo.

O resultado é que, do ponto de vista teórico, encontramos distinções essenciais na abordagem das fontes setecentistas quando comparadas às fontes mais tardias, muitas vezes utilizadas como referência para a compreensão do baixo contínuo. Enquanto métodos como o Principes de l’accompagnement du clavecin (1718), de François Dandrieu (1682-1738), apresentam logo nas primeiras lições os diferentes acordes que um companhador deve conhecer (focando em sua função harmônica no contexto musical, embora sempre atento ao encademento formado pelas vozes), os métodos e tratados do século XVII tem na relação entre as vozes seu elemento principal, deixando a função harmônica que o acorde assumirá ou a posição que a nota do baixo ocupa no tom ou modo ao plano secundário (quando não inexistente). O ensino do acompanhamento, nestas fontes, se dá tomando como parâmetro-base os movimentos melódicos da voz do baixo, utilizando-se destes movimentos para a dedução dos intervalos e dos movimentos das vozes restantes, formando como consequência as harmonias. O modo ou tom em que a música está escrita não é uma preocupação nas primeiras lições. Ao contrário, é nos procedimentos de condução de vozes que o foco se estabelece, ainda que se tenha de tratar os diferentes movimentos um a um, como nos tratados de contraponto. A dedução de cada cifra pressupõe a compreensão do movimento que a voz ou as vozes vozes deverão realizar em consequência de um determinado movimento na voz do baixo. Estes procedimentos, incompreensíveis fora do contexto do contraponto, evidenciam o quanto a compreensão harmônica posterior ao século XVII se distancia dos preceitos em que primeiramente se baseou a prática do baixo contínuo (motivo pelo qual as fontes mais tardias costumam apresentar uma introdução mais “amigável” hoje em dia aos iniciantes na prática do baixo contínuo).

É necessário, porém, fazer uma distinção essencial neste ponto. Embora neste trabalho procuremos relacionar a prática do baixo contínuo aos preceitos do contraponto renascentista, não é nossa intenção propor que o acompanhamento que os autores deste período descrevem tenha caráter polifônico. Uma das ideias centrais da monodia acompanhada proposta na virada do século XVI para o século XVII é evidentemente uma ruptura com os moldes renascentistas de composição (chamada posteriormente como prima pratica, em oposição à nova proposta). Porém, esta ruptura se dá sobretudo no que diz respeito à textura da composição musical, e não

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nos preceitos estruturais da composição. O uso de instrumentos harmônicos para o acompanhamento do canto ou de instrumentos solistas evidencia que a atenção especial dada a uma melodia especialmente elaborada (e, segundo se buscava, especialmente espressiva) não prescinde da harmonia que resulta de diferentes vozes em movimento simultâneo, embora estas vozes possam surgir de forma resumida e desprovidas de uma textura necessariamente polifônica.

A harmonia, lembrada muitas vezes como uma espécie de invenção do barroco, já era velha conhecida dos músicos que primeiramente propuseram a monodia. A concepção que se fazia da 'harmonia', no entanto, é o que representa a grande diferença com relação ao que se passou a compreender como 'harmonia' a partir de mais ou menos a metade do século XVIII. A 'harmonia' conforme encontramos descrita nas fontes do século XVII é compreendida como o resultado da movimentação ordenada das diferentes vozes, formando um todo cujas partes são coerentes entre si. Só se pode pensar em harmonia depois que se pensou cada voz em relação a cada uma das outras, pois a 'harmonia' surge apenas como o resultado desta construção. Desta maneira, nos lançamos neste trabalho à tarefa de tentar entender, a partir do baixo contínuo, como o pensamento presente nos preceitos do contraponto ajudou a transformar a harmonia, primeiramente segundo a concepção herdada do renascimento, e em seguida conforme ela passa a ser compreendida no barroco tardio (ou seja, como sequências de entidades formadas por sons simultâneos – os acordes – relacionadas entre si através de encadeamentos harmônicos).

No primeiro capítulo da tese procuramos compreender os procedimentos do contraponto renascentista que precedem a prática da monodia acompanhada e do baixo contínuo a partir do tratado Le Istitutione Harmoniche, de Gioseffo Zarlino (1558).

No segundo capítulo, buscamos contextualizar o surgimento da monodia acompanhada e do baixo contínuo na Itália entre as últimas décadas do século XVI e o início do século XVII; em seguida analisamos algumas das principais fontes italianas do século XVII sobre o acompanhamento, buscando informações que ajudem a compreender os parâmetros sobre os quais o acompanhamento se estrutura segundo estas fontes.

A partir das fontes estudadas, discutimos no terceiro capítulo o papel do contraponto no desenvolvimento do baixo contínuo na Itália ao longo do século XVII. Para tanto, procuramos analisar elementos que evidenciem a ligação entre os preceitos do contraponto do renascimento e a prática do baixo contínuo italiano no século XVII. Nas considerações finais apresentamos de forma resumida algumas observações que o presente trabalho permite tecer sobre a prática do baixo contínuo na Itália, e por fim, incluímos em anexo a tradução de três das fontes abordadas no capítulo 2: o prefácio à ópera L'Euridice (Florença, 1600), de Jacopo Peri (1561-1633), texto

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que aborda de forma única os parâmetros estéticos buscados pela primeira geração dos monodistas e problematiza a busca pela retomada de elementos da antiguidade na prática musical; o prefácio dos Cento Concerti Ecclesiastici (Veneza, 1602), de Lodovico Grossi da Viadana (1564-1627), a primeira fonte escrita a abordar o baixo contínuo na música sacra; e o método Breve Regola per imparar'a sonare sopra il Basso con ogni sorte d'Instrumento, de Francesco Bianciardi (Siena, 1607), o mais antigo texto a trazer um conjunto de regras de acompanhar baseado nos movimentos da voz do baixo, e que contêm também um interessante conjunto de instruções sobre a performance do baixo contínuo. Utilizamos como critério para a escolha das fontes a ser traduzidas a relevância ilustrativa destas fontes quanto ao objetivo da pesquisa, a extensão dos textos e o ineditismo das traduções.

Quanto a alguns dos termos aqui utilizados, faz-se necessário prestar alguns esclarecimentos de antemão. É o caso por exemplo da palavra 'harmonia', que traz diferentes significados entre as fontes e os períodos aqui abordados, como discutiremos ao longo do trabalho. Ainda que este termo possa se referir a uma ampla gama de significados distintos a depender da época, contexto e autor, optamos por manter o uso da palavra inalterado ao longo do texto, seguindo a visão de Claude Palisca, que ao problematizar o uso do termo na introdução à versão inglesa do terceiro capítulo do tratado Le Istitutioni Harmoniche4 (1558), de Gioseffo

Zarlino, conclui que seu significado "é próximo o suficiente do significado moderno de "harmonia" para que o cognato seja usualmente adequado5" (1976, p. xx). Ainda que Palisca

reconheça que se trata de um cognato em relação ao significado moderno do termo (e não um sinônimo), o autor/tradutor provavelmente preferiu o uso com sentido apenas aproximado ao original à possibilidade de criação de um neologismo, o que por si só representaria uma nova problemática. Desta maneira, optamos por deixar o contexto apontar com mais acuidade qual acepção se adequa melhor a cada uso, tendo em vista ainda que, utilizada da mesma maneira, a palavra harmonia teve seu significado modificado pelo ao longo da história, o que representa também objeto de interesse desta pesquisa. Sempre que possível, procuramos apontar onde estas mudanças parecem surgir, ressaltando o sentido que pode ter tido em algum contexto mais específico.

Da mesma maneira, os termos 'tonalidade' e 'tom' sofreram inúmeras mudanças de sentido ao longo do período que esta pesquisa abrange. O uso italiano de 'tuono', conforme encontrado nas fontes pesquisadas, se aplica a parâmetros de organização dos sons que vão desde

4 Traduzido por Claude Palisca em parceria com Guy A. Marco, publicado sob o título The Art of Counterpoint -

Part Three of Le Istitutioni Harmoniche, 1558 pela Yale University Press, New Haven, em 1968 e reimpresso

pela Norton Library, New York, em 1976 (edição aqui utilizada).

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estruturas modais com raiz em autores tão antigos quanto Boécio (c. 480-525) até relações entre acordes e graus que se aproximam do que se compreende hoje como parâmetros da 'música tonal'. Ainda que eventualmente o termo 'tom' possa se aproximar da concepção mais usual nos dias de hoje (ligada à ideia de 'tonalidade harmônica'), é necessário ter em vista que o que se compreende hoje como tonalidade harmônica tende a incluir uma descrição posterior das relações tonais presentes em nossos objetos de estudo, além é claro de relações tonais posteriores a estas. A própria concepção de tonalidade harmônica é também uma questão em aberto, tanto entre os teóricos que buscaram definí-la e descrevê-la quanto entre os musicólogos que procuraram compreender seu uso no passado. Como mostra Carl Dahlhaus em uma excelente investigação musicológica sobre o desenvolvimento da tonalidade harmônica, Studies on the Origin of Harmonic Tonality6

(1990), não há consenso entre os pesquisadores sobre quando exatamente a tonalidade harmônica surgiu e se desenvolveu.

Igualmente, para os termos 'tom', 'tonalidade' e outros afins, deixamos o contexto direcionar o sentido mais adequado a cada situação dentro do campo semântico que cada termo possui, procurando sempre que possível problematizar a questão e buscar pelas diferenciações mais relevantes à análise das fontes selecionadas. A grosso modo, poderíamos dizer que dentro do período que as fontes aqui estudadas perfazem (da metade do século XVI até a primeira década do século XVIII), houve uma mutação, embora não-contínua e não-linear, do 'tom' representado pela modalidade conforme os parâmetros que constituíam a base teórica da renascença até o 'tom' que representa algo bastante próximo ao conceito de tonalidade harmônica mais corrente nos dias de hoje. Assim como ocorre com a harmonia, a mudança da compreensão de tom e/ou tonalidade ao longo do período representado também é objeto de interesse desta pesquisa, e como tal procuraremos observar esta mudança.

Para outros termos cujo significado possa suscitar dúvidas ou gerar diferentes interpretações buscamos incluir esclarecimentos ao longo do texto ou por meio de notas. No caso de termos inusuais ou inexistentes na teoria musical moderna, ou que não encontrem equivalente próximo em uso corrente em português, mantivemos a grafia original, buscando diferenciar assim os sentidos que teriam tido nos respectivos contextos em que foram utilizados.

Todas as citações feitas a partir de fontes em língua estrangeira foram inseridas no texto em tradução nossa, com os textos originias em notas de rodapé.

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33 Capítulo 1

BASES COMPOSICIONAIS DO RENASCIMENTO TARDIO ITALIANO SEGUNDO LE ISTITUTIONI HARMONICHE (1558), DE GIOSEFFO ZARLINO

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Neste capítulo observamos alguns dos preceitos de composição, harmonia e contraponto do século XVI, a partir de Gioseffo Zarlino em seu emblemático tratado Le Istitutioni harmoniche, publicado em Veneza em 1558. O objetivo desta abordagem é procurar parâmetros teóricos que teriam influenciado e contextualizado o desenvolvimento do baixo contínuo a partir da virada deste século para o século seguinte na Itália, especialmente do ponto de vista da compreensão harmônica e dos procedimentos do contraponto. A escolha desta fonte se dá pela importância teórica e histórica da obra, por sua representatividade quanto ao pensamento musical do período, e pelo potencial que Zarlino, enquanto o mais famoso e mais importante teórico do século XVI (JUDD, 2006, p. 366), teria tido de influenciar as gerações posteriores através de sua obra, sobretudo seu canônico Istitutioni, "um tratado que permaneceu como uma fonte teórica essencial desde sua primeira publicação7" (JUDD, 2008, p. 366), e que era "ainda considerado o

guia padrão até o século XVII8" (GOEDE-KLINKHAMER, 1997, p. 83) para aqueles que

queriam aprender contraponto e composição.

Zarlino foi a um só tempo um organizador, um codificador e um inovador da teoria musical então existente. O contexto em que viveu é ao mesmo tempo de uma espécide de cristalização da arte musical que é tema de seu tratado, denominado por Richard Taruskin de "arte aperfeiçoada", ou ars perfecta (2010a, p. 585), e uma tentaiva de resposta teórica a uma série de experimentações desenvolvidas nas décadas precedentes e ainda válidas quando Zarlino escreve sua obra, buscando reviver ideais expressivos da antiguidade, interpretados segundo o que se sabia sobre a teoria musical grega. Diante desta matéria de caráter especulativo, do ponto de vista teórico, Zarlino apresenta uma posição de desmistificação das justificativas ao uso intensivo de cromatismos e enarmônicos por parte de compositores que teriam, segundo sua visão, uma falsa compreensão da teoria da antiguidade. Do ponto de vista composicional, Zarlino se coloca em favor da manutenção dos preceitos que segundo Taruskin representam a busca pela perfeição artística empreendida durante o século XVI. Trata-se de um conjunto de concepções e procedimentos que Zarlino se esforça por demonstrar e defender em seu tratado, explicando, justificando e cristalizando um estilo e uma prática que Zarlino acredita ser o mais perfeito e deseja ver prosperar pelas gerações vindouras. Aos olhos de seus defensores, este modelo de

7 a treatise that has remained a primary theoretical source since its first publication 8 still considered to be the standard guide into the 17th century

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composição, em seus ideais de harmonia e equilíbrio, conferia às aquisições técnicas da arte musical (assim como ocorrera no clacissismo renascentista nas artes visuais) um status de perfeição alcançada por volta da metade deste século:

Sua técnica agora não admitia desenvolvimentos adicionais. O que era necessário era codificação: o estabelecimento do estilo aperfeiçoado em regras permanentes para que nunca fosse perdida novamente, para que sua harmonia e equilíbrio pudessem ser preservadas e passadas adiante mesmo para aqueles que não tivessem o gênio de descobrí-las por si mesmos. Pois ninguém precisava redescobrir o que já havia sido descoberto. A era da descoberta ficou no passado. Tudo era conhecido. Uma era de "classicismo" - de conformidade com uma excelência estabelecida - tinha amanhecido. Era uma grande era para teóricos9 (TARUSKIN, 2010a, p. 586).

Ao comentar o ponto de vista dos defensores do clacissismo musical renascentista, Taruskin procura justificar as condições que atribuíram à teoria um papel proeminente na determinação do estilo musical neste deste período. Este papel teria sido justamente o que Zarlino tomou para si, como Taruskin aponta no parágrafo seguinte:

O excepcional codificador da ars perfecta foi Gioseffo Zarlino (1517-1590), de cujo grande tratado Le Istitutioni harmoniche, publicado pela primeira vez em 1558 e reeditado duas vezes depois disso, foram extraídos os julgamentos históricos do parágrafo anterior10 (idem).

A concepção apresentada por Taruskin vai de encontro à visão de Zarlino, como se nota na leitura do Istitutioni Harmoniche (1558). A constante referência aos mestres do passado, sobretudo Adrian Willaert (c.1490-1562), de quem foi discípulo a partir de 1541 e que se tornou a principal referência de Zarlino (PALISCA, 1968, p. xi), Josquin Desprez (c.1440-1521) e Johannes Ockeghen (1520-1497), a reverência aos procedimentos consagrados da arte do contraponto e a recusa a certos procedimentos dos "modernos", aos quais Zarlino faz questão de dirigir refutações, atestam seu papel de codificador e perpetrador de um estilo que se encontrava,

9 Its technique now admitted of no further development. What was needed was codification: the casting of the

perfected style in permanent rules so that it might never be lost again, so that its harmony and balance might be preserved and passed along even to those who had not the genius to discover it for themselves. For no one needed to rediscover what had already been discovered. The age of discovery was past. All was known. An age of “classicism”—of conformity with established excellence—had dawned. It was a great age for theorists.

10

The outstanding codifier of the ars perfecta was Gioseffo Zarlino (1517–90), from whose great treatise Le Istitutioni harmoniche, first published in 1558 and reissued twice thereafter, the historical judgments in the

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a seu ver, em pleno processo de cristalização. Seu papel inovador enquanto teórico diz respeito à tentativa de renovar e resignificar a teoria musical então existente, insuficiente para a compreensão da maneira como a polifonia se organizava no âmbito da modalidade, e à síntese, em forma de regras ou preceitos, de procedimentos consagrados de composição. A especulação, no tratado de Zarlino é, portanto, mais uma tentativa de explicar preceitos musicais já bem estabelecidos, do que a busca por novos parâmetros composicionais. Desta forma, Zarlino pode ser considerado um inovador no sentido de ter conseguido unir a musica theorica (aquela ensinada nas disciplinas do quadrivium) e a musica pratica (aquela em uso, passada de mestre a discípulo) (PALISCA, 1968, p. xiii) para abordar e explicar a música composta.

Zarlino nasceu em Chioggia, próximo a Veneza, onde teve sua primeira formação musical como cantor e organista através da educação pela ordem franciscana, tendo sido ordenado padre e tornado-se organista da catedral de Chioggia antes de mudar-se para Veneza, em 1541, para estudar com o grande mestre da composição Adrian Willaert. Zarlino viveu em Veneza até sua morte, em 1590, ocupando a partir de 1565 a prestigiosa posição de mestre de capela na Basílica de São Marco durante seus anos musicalmente mais gloriosos (JUDD, 2006, p. 366). Em Veneza, segundo Cristle Collins Judd (2006), Zarlino viveu uma prolífica fase como compositor (associando-se ao teórico, humanista e editor Antonio Gardano) e esteve em contato com obras fundamentais da teoria modal, tanto os tratados didáticos destinados aos compositores e executantes da polifonia, quanto aqueles voltados aos literatos humanistas, que "focavam o modo no contexto da musica speculativa e da descoberta dos antigos modos gregos11" (JUDD, 2006, p.

367). Collins Judd aponta ainda que aparentemente Zarlino teve acesso ao Recanetum de musica aurea (Roma, 1533), de Steffano Vanneus (2006, p. 370), um texto que "oferece meios para explorar a teoria modal como ele deve ter sido conhecida por volta da metade do século por um leitor mais educado e com objetivos diferentes daqueles do usuário dos cantorinus12 ou dos livros

dos compêndios jovens estudantes13" (idem). Judd aponta que este livro é pouco estudado pelos

estudiosos modernos da teoria modal por não trazer muita novidade em relação aos demais tratados contemporâneos, razão pela qual justamente esta deve ser considerada uma fonte relevante, já que demonstra a abordagem mais característica da teoria modal por volta dos anos 1530-1540. Como era comum entre livros deste tipo, o tratado de Vanneus traz a exposição do

11

focused on mode in the context of musica speculativa and the recovery of the ancient Greek modes.

12

Segundo Cristle Collins Judd, cantorinus é o nome genérico para livros de música que serviam como espécie de manuais para os padres e meninos cantores, oferecendo as instruções rudimentares necessárias para se cantar a liturgia e abordando brevemente a teoria modal. Judd ressalta que livros deste gênero podem ter feito parte da primeira instrução de Zarlino (2006, p. 368).

13 offers a means for exploring modal theory as it might have been known in mid-century by a more educated

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modo na parte que trata do cantochão, passando pelas espécies consonantes e dissonantes e discutindo os gêneros diatônico, cromático e enarmônico (tema que será amplamente discutido por Zarlino em seu tratado de 1558) e por fim uma parte sobre proporções rítmicas e o contraponto.

A questão do modo é essencial na compreensão do papel de Zarlino enquanto teórico e na projeção que seu tratado teve entre os compositores e teóricos a partir de sua publicação e durante pelo menos boa parte do século XVII. Como afirma Collins Judd, "muitas diferentes facetas da teoria modal se juntaram nos escritos de um só autor14

" (JUDD, 2006, p. 366), o que faz do tratado de Zarlino uma fonte interessante no que diz respeito à compreensão da teoria modal. A teoria vigente durante a época de Zarlino trazia a explicação de modo na parte dedicada ao cantochão justamente porque os elemenos que permitem sua caracterização se aplicam naturalmente a uma única melodia, como as terminaçóes características de cada modo, as notas apropriadas para começar e terminar as melodias e o âmbito em que a voz se insere, baseados nos hexacordes do sistema de solmização15 de Guido d'Arezzo (992-1050). Sendo portanto o

modo definido pelo âmbito e pelas notas prescritas para o início e o fim das melodias, a sobreposição de diferentes vozes torna problemática a abordagem dos modos quando se trata do contraponto. Como afirma Gregory Barnett (2006), a questão dos modos aplicada à polifonia foi um problema do qual se ocuparam os principais teóricos renascentistas, que buscaram suas próprias soluções para adequar uma antiga teoria a uma prática composicional para a qual esta teoria não havia sido pensada:

Séculos antes da sua aplicação à música polifônica, a teoria modal tinha se originado como um sistema de classificação de cânticos. A idéia de analisar música diferente do cantochão em termos de teoria modal é uma inovação da renascença, a imposição de uma teoria de longa duração sobre repertórios mais recentes da música.

Teóricos do século XVI como Pietro Aaron e Gioseffo Zarlino criaram métodos detalhados e à vezes engenhosos para aplicar os princípios da modalidade a peças em várias vozes, e teóricos do século XVII prontamente aceitaram essa tradição recente de atribuir modos para composições polifónicas apenas porque nenhuma outra teoria da organização tonal existia16 (BARNETT, 2006, p. 415).

14 many discret facets of modal theory came toghether in the writings of one author 15

A solmização é uma ssociação mnemônica de intervalos a sílabas. Guido d'Arezzo associou as sílabas equivalentes às notas dos hexacordes a partes da mão, a fim de facilitar a lembrança dos intervalos e permitir o canto de melodias que podiam passar de um hexacorde a outro.

16

Centuries prior to its application to polyphonic music, modal theory had originated as a system for classifying

chants. The idea of analyzing music other than plainchant in terms of modal theory is a Renaissance innovation, the imposition of a long-standing theory upon newer repertories of music.

Sixteenth-century theorists suchas Pietro Aaron and Gioseffo Zarlino set out detailed and sometimes ingenious methods for applying the tenets of modality to pieces in several voices, and theorists of the seventeenth century readily accepted this recent tradition of ascribing modes to polyphonic compositions if only because no other theory of tonal organization existed.

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A maneira como a teoria renascentista trata a modalidade na composição polifônica, no entanto, não foi homogênea. Como aponta Collins Judd, "os autores do século XVI frequentemente moldaram suas discussões sobre questões modais com a intenção de tornar claro um conceito difícil que os autores anteriores não tinham compreendido completamente17"

(JUDD, 2006, p. 364). O problema reside, segundo Collins Judd, nas relações entre a polifonia e uma teoria intimamente ligada a uma música monódica em suas origens. Como afirma o autor, o termo "mode" (em inglês, mas o mesmo se pode dizer para o nosso "modo") é um termo guarda-chuva, utilizado genericamente para substituir conceitos que podem ter significados batante diferentes, como modo/tuono18

, modus/tonus e até tropus. A multiplicidade de significados e concepções para a compreensão de modo se estende à relação entre modo e contraponto. Judd aponta que em Liber de natura et proprietate tenorum (1476), Johannes Tinctoris (c.1435-1511) aborda um exemplo polifônico discutindo o modo de cada voz individualmente; já Vanneus aborda o modo apenas de forma periférica ao tratar do contraponto (2006, p. 374). Esta problemática sobre a compreensão modal aplicada ao contraponto se estende ao Istitutioni harmoniche. A solução de Zarlino, no entanto, parece ter oferecido a resposta que teria ido mais de encontro ao anseio daqueles que procuraram na teoria a explicação para a aplicação da modalidade à composição polifônica.

Na quarta parte de seu tratado, Zarlino estabelece uma regra simples para composição polifônica modal: o modo da voz de tenor determina o modo de toda a peça; dependendo se o tenor ocupa o ambitus autêntico ou plagal, a voz do baixo completa o

ambitus suplementar autêntico ou plagal , pois ela se posiciona aproximadamente a uma

quarta ou quinta abaixo do tenor. O soprano, colocado uma oitava acima do tenor, teria a mesma designação autêntica ou plagal, e o alto corresponde ao baixo em sua escala modal individual19 (BARNETT, 2006, p. 415).

17 sixteenth-century writers frequently framed their discussion of modal assertions that intended to clarify a

difficult concept that earlier writers had not fully grasped

18 Segundo Gregory Barnett, tuono pode ser sinônimo de modo, referindo-se a um dos oito modos (adotados por

Zarlino no Istitutioni de acordo com o modelo de Boécio) ou doze (adotados posteriormente por Zarlino em seguimento à teoria de Glareano) ou pode referir-se aos tons dos Salmos, conjuntos de cantos utilizados nos Ofícios Divinos na liturgia católica (2006, p. 419).

19 In the fourth part of his treatise, Zarlino sets forth a simple rule for modal-polyphonic composition: the mode of

the tenor voice determines the mode of the entire piece; depending on whether the tenor occupies the authentic or plagal ambitus, the bass voice fills the collateral plagal or authentic ambitus because it is pitched approximately a fourth or fifth below the tenor. The soprano, pitched an octave above the tenor, would bear the same authentic or plagal designation, and the alto matches the bass in its individual modal range.

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Falando mais especificamente sobre a parte prática da composição, no terceiro capítulo (o qual constitui o foco principal de nossa abordagem do tratado), Zarlino não se atem de forma muito detalhada sobre como a modalidade se conforma na polifonia. Como veremos no sub-capítulo seguinte, Zarlino prefere sugerir que o compositor comece sua composição pela linha do tenor, colocando sobre e sob ela as demais vozes segundo critérios intervalares bastante determinados, não apenas no início e no fim, mas no decorrer da composição. Desta forma, a metodologia didática de Zarlino aponta para uma solução bastante prática para a construção de polifonias complexas, sem que se percam os âmbitos designados para cada voz, permitindo ao mesmo tempo uma coesão entre as vozes, mantendo os parâmetros modais. Zarlino reforça esta concepção com algumas indicações especiais, como por exemplo no 40° capítulo da terceira parte do tratado, quando prescreve que o compositor deve estar atento para a posição do tenor, pelo fato de que esta voz terá papel primordial na configuração das cadências e na determinação do modo, e consequentemente do caráter da composição.

A resposta de Zarlino para a compreensão teórica da relação entre modo e tecido contrapontístico encontra ainda outro fator relevante: a introdução da 3a como parte da harmonia completa formada entre as vozes, além da 5a, contribui para a concepção de unidade do contraponto, do qual se distinguiria uma nota principal e os intervalos que o complementam harmonicamente. Ainda que Zarlino tenha procurado muito mais ajustar uma teoria existente a uma prática que ia além desta teoria (prática esta já bem estabelecida desde a geração anterior, da qual compositores como Willaert figuram como representantes), a compreensão de Zarlino sobre a conexão modal entre as diferentes vozes somada a uma visão harmônica que enfatiza o aspecto vertical ao prescrever intervalos determinados para as relações entre as vozes, assim como a visão de que a harmonia se torna completa com a presença das consonâncias imperfeitas, contribuíram decisivamente para o estabelecimento da harmonia tonal desde provavelmente os primeiros leitores de seu tratado.

A concepção de Zarlino de harmonia será um dos temas que buscaremos enfatizar em nossa análise, procurando relacionar às concepções posteriores nas fontes aqui abordadas. Como Zarlino define em seu tratado, "harmonia não nasce de outra coisa senão da diversidade dos movimentos e das consonâncias, colocadas juntas com variedade20

" (1558, p. 172). Harmonia, portanto, é um termo que Zarlino compreende como um acontecimento que se dá no tempo, e não como uma simples relação de sons simultâneos. Ainda que se possa argumentar que dois sons simultâneos se dêem também no tempo, é possível notar que Zarlino aborda em termos

20 percioche da altro non nasce l'harmonia, che dalla diuersità delle modulationi, & dalla diuersità delle

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teóricos de maneira diferente a simples relação vertical entre dois sons e a harmonia conforme a concepção exposta acima. Quando quer se referir ao intervalo ou intervalos que duas ou mais notas formam entre si (como no 58° capítulo, em que introduz o contraponto a mais de duas vozes), Zarlino utiliza o termo acorde (accordo). O acorde segundo esta utilização pode ser compreendido no contexto de uma composição ou apenas como elemento isolado, ao referir-se por exemplo a um intervalo ou conjunto de intervalos simplesmente como uma medida de espaço entre diferentes notas. A harmonia, ao contrário, pode apenas ser alcançada ou compreendida no contexto musical, já que sua existência nasce da relação entre as diferentes vozes se movimentando no tempo. Ela se constitui, portanto, em um dos elementos da música, podendo existir apenas como parte de um todo ordenado segundo uma concepção que Zarlino resignifica a partir de Platão. Segundo Claude Palisca,

Zarlino, ao adotar a fórmula de Platão21, deu ao termo harmonia um significado do século XVI de melodias movendo simultaneamente, e por melos ele compreendeu composições. Traduzindo para nossos termos, portanto, a equação de Zarlino é: uma composição vocal polifônica (melodia) consiste em três coisas: duas ou mais partes movendo-se juntas (harmonia), rítmo (numero) e texto (oratione)22 (1968, p. xix)

Como a harmonia, enquanto relação entre os movimentos das vozes no tempo, não se dá apenas entre as notas simultâneas, a regulação das relações harmônicas deve considerar não apenas as notas soantes num dado instante (o acorde), mas os movimentos (modulatione) que cada voz fez para chegar àquelas notas e os que realizará em seguida. A diferença se torna mais clara se pensarmos, por exemplo, numa determinada relação simultânea entre notas que, embora siga corretamente os parâmetros estipulados enquanto acorde, tenha sido obtida através de um movimento não permitido pelas regras do contraponto. Neste caso, o acorde estaria correto (ou seja, formado por notas de relações possíveis entre si), mas a harmonia estaria errada, devido a um movimento estranho às regras. Seria impossível verificar a relação harmônica olhando-se apenas para o acorde específico, já que a relação harmônica se dá apenas dentro de um contexto maior que ele. O acorde, portanto, equivale a uma entidade que se pode referenciar isoladamente, a um instante congelado, como uma fotografia, enquanto a harmonia só seria compreendida vista

21

A fórmula de Platão, segundo Palisca, é aquela em que a canção (melos) é composta por três elementos: logos (palavras) harmonia (junção ou relação entre sons) e rhytmos (1968, p. xviii).

22 Zarlino, in adopting Plato's formula, gave the term harmonia a sixteenth-century meaning of simultaneously

moving melodies, and for melos he understood compositions. Translated into our terms, then, Zarlino's equation is: A polyphonic vocal composition (melodia) consists of three things: two or more parts moving together (harmonia), rhythm (numero) and text (oratione).

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por um contexto de movimento, equivalente nesta analogia a um vídeo.

É necessário notar, no entanto, que ainda que a harmonia se crie através de movimentos horizontais, ela se constitui num todo que inclui diferentes movimentos simultâneos, o que não a destitui de seu caráter eminentemente mais vertical do que os movimentos de cada voz. Esta diferença é abordada por Palisca, que opoe modulatione como aspecto horizontal da textura polifônica a harmonia enquanto elementos que inclui o aspecto vertical (1968, p. xix).

1.1. GIOSEFFO ZARLINO: TERCEIRA PARTE DE LE ISTITUTIONI HARMONICHE [AS INSTITUIÇÕES HARMÔNICAS] (1558)

A terceira parte do tratado de Zarlino, que iremos analisar mais detalhadamente nesta pesquisa, trata especificamente do contraponto. A seguir, apresentamos uma resenha desta parte do tratado, buscando resumir e comentar as principais informações encontradas no texto. Algumas destas informaões serão retomadas no terceiro capítulo, nomeadamente aquelas que consideramos mais essenciais para relacionar aspectos ou concepções encontrados em Zarlino e o desenvolvimento da harmonia no século XVII segundo as fontes elencadas sobre o baixo contínuo.

Os capítulos iniciais da terceira parte do tratado (1 a 25) tratam dos intervalos e suas proporções, consonâncias e dissonâncias e o uso destas nas composições. No 26o capítulo Zarlino apresenta os requisitos básicos para a composição e no seguinte explica que o contraponto é formado preferencialmente pelas consonâncias, e que as dissonâncias possuem papel secundário. Entre os capítulos 28 e 39 estão as regras do contraponto, seguidas pelo método de composição propriamente entre os capítulos 40 e 57, nos quais trata apenas da composição a duas vozes - primeiro com cantus firmus etc etc etc. Do capítulo 58 ao 74 segue o método de composição, agora para escrever contrapontos a mais de duas vozes. Nos capítulos finais (75 a 80), Zarlino apresenta os três gêneros de composição: diatônico, cromático e enarmônico; o autor discute os cromatismos a partir dos tetracordes e também como movimentos isolados e argumenta sobre a dificuldade de se harmonizar melodias que contenham cromatismos. Por fim, tece uma refutação do estilo moderno e do uso excessivo de cromatismos e dissonâncias, mostrando seu desejo de que possa contribuir para uma cristalização do estilo representado por seus preceitos ainda maior do que a encontrada em seu tempo.

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No primeiro capítulo, O que é contraponto e porque é chamado assim23, Zarlino traz duas

definições do assunto principal da terceira parte do tratado:

contraponto é aquela concordância ou unidade que nasce de um corpo que é formado por diversas partes e diversos movimentos [modulationi] acomodados à composição, ordenados com vozes distantes uma da outra por intervalos mesuráveis e harmônicos24 (1558, p. 147)

e mais adiante:

contraponto é um tipo de harmonia que contem em si diferentes tipos de sons, ou vozes cantáveis, com certa certa razão de proporção e medida de tempo, ou [pode-se dizer] que é uma certa união artificiosa de sons diversos, reunidos em concordância 25 (idem).

Segundo o autor há dois tipos de contraponto: simples e diminuído. O simples é formado apenas por consonâncias e é apresentado sempre em semibreves, sendo portanto equivalente à primeira espécie do conhecido método de Johann Joseph Fux26. O contraponto diminuído possui

dissonâncias e valores rítmicos para as notas.

O segundo capítulo, como diz o título, trata sobre A invenção das claves e das figuras cantáveis27

e o terceiro, Os elementos que compõem o contraponto28

mostra os intervalos e traz uma explicação dos harmônicos que compõem o som.

Neste capítulo os intervalos simples e compostos são mostrados. São sete os intervalos simples: 2a, 3a, 4a, 5a, 6a, 7a e 8a. Os intervalos compostos são apresentados até a 22a , como mostra a figura abaixo, com as equivalências aos intervalos simples:

23Quel che sia Contrapunto, & perche sia cosi nominato

24 Contrapunto è quella Concordanza, o concento, che nasce da un corpo , ilquale habbia in se diverse parti, &

diverse modulationi accomodate alla cantilena, ordinate con voci distanti l'una dall' altra per intervalli comensurabili, & harmonici

25

Contrapunto sia un modo di harmonia, che contenghi in se diverse variationi de suoni, o de voci cantabili, con certa ragione di proportioni, & misura di tempo: Overamente che'l sia una certa unione artificiosa de suoni diversi, ridutta alla concordanza.

26

O tratado Gradus ad Parnassum, de J. J. Fux, apesar de publicado em 1625, basea-se no estilo de escrita contrapontística de Palestrina e segue a metodologia das espécies, comum entre os tratados do renascimento (JUDD, 365). A proposta pedagógica de Fux, que se tornou uma das mais adotadas para a prendizagem do contraponto modal, parte do ensino do contraponto mais simples possivel, a duas vozes em semibreves, e segue até a quinta espécie com uma voz florida. Posteriormente são adicionadas a terceira e quarta voz.

27 Della inuentione delle Chiaui, & delle Figure cantabili 28 De gli Elementi, che compogno il Contrapunto

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43

Figura 1: intervalos compostos e suas equivalências. Fonte: ZARLINO, 1558.

O quarto capítulo, Divisões das espécies mostradas29, traz uma explicação do sistema de

Boécio para os intervalos. Ele menciona que considera, no entanto, este sistema muito complexo e prefere mostrar os intervalos simplesmente divididos em consonâncias e dissonâncias:

- consonâncias: 3a, 4a, 5a, 6a e 8a e seus compostos; - dissonâncias: 2a e 7a e seus compostos

Zarlino chama a atenção, no capítulo seguinte, Se a quarta é consonância; e qual o motivo de os músicos não utilizarem-na, exceto nas composições a várias vozes30, que o fato de o

intervalo de 4a ser considerado uma consonância pode ser novidade para muitos. Sua argumentação para esta concepção se dá primeiramente por argumentos de autoridade, citando autores anteriores, em segundo por razão (divisão) e em terceiro por exemplos. Segundo lembra, Ptolomeu, Boécio, Gaudentius, Vitrivius e uma extensa lista de autores consideram a 4a consonância. O segundo argumento é que, sendo o resultado da soma de 4a e 5a uma consonância (8a), logo as partes separadas têm de ser também consonâncias. O argumento prático é que ao ouvir a 4a qualquer um pode perceber que ela é consonante e que soa bem, como se pode observar por exemplo na missa L'homme armé, de Josquin Desprez, na qual a 4a é usada sozinha como consonância. Ele crê que se os compositores achassem que a 4a é dissonante, eles nem teriam utilizado este intervalo.

As consonâncias, como mostradas no sexto capítulo, Divisão das consonâncias em perfeitas e imperfeitas31, são assim divididas:

- consonâncias perfeitas: 4a, 5a, 8a e seus compostos (11a, 12a, 15a, 18a, 19a e 22a)

29Diuisione delle mostrate Specie 30

Se la Quarta è consonanza ; & donde auiene, che li Musici non l'habbiano usata, se non nelle compostiioni di più uoci

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