• Nenhum resultado encontrado

5.1 Constituição dos corpora para análise

5.1.2 Discutindo o ―carioquês‖

Os estudos existentes sobre o falar carioca concentram-se, em sua maioria, em aspectos sócio-históricos da capital fluminense, já que foi sede da capital federal em um momento marcante para a história brasileira: a chegada da corte portuguesa ao país, em 1808. Este fato promoveu diversas implicações sociais neste cenário e, consequentemente, linguísticas, uma vez que ambas ocorrem e desenvolvem-se paralelamente.

Destas pesquisas, faz-se relevante para este trabalho a peculiar divisão sócio- demográfica do Rio de Janeiro: cidade à beira mar, cercada por montanhas – uma barreira física reforçada socialmente pelo o denso povoamento da capital.

Conforme relatório divulgado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), entre as montanhas e o mar, abençoada pelo Cristo, a cidade apresenta um dos maiores índices de desenvolvimento humano do mundo, comparáveis aos da Suíça e da Itália e, contrariamente, no lado da extensa baixada, longe do mar, algumas regiões chegam a apresentar um desenvolvimento igual ou pior que o de países como Argélia e Moçambique. (CALLOU; AVELAR, 2002, p. 95).

Os fatores ―adiante‖ e ―atrás‖ das montanhas repercutem fortemente nas características sociais dos cariocas, bem como em seus falares. Entre o mar e a montanha está a zona Sul. Atrás das elevações, as demais zonas, locais onde seus residentes são chamados de suburbanos. O prefixo ―sub‖, que indica inferioridade, promove a carga estigmatizada à denominação.

Esta divisão geográfica da riqueza e da pobreza no Rio de Janeiro já foi abordada por diversos autores (CALLOU; AVELAR, 2002; SANTOS, 2002; TEYSSIER, 1997) e, segundo eles, ocorre desde os tempos de colônia: a corte portuguesa e os trabalhadores administrativos vinculados a ela viviam abastadamente próximos à orla, enquanto os demais – membros das classes mais populares da zona urbana, trabalhadores rurais, descendentes de índios e imigrantes africanos – permaneciam à sombra da divisão natural existente na região.

À época, não existia a possibilidade de haver mobilidade social, por isso, o português era, além de heterogêneo, extremamente polarizado. Hoje, apesar do maior acesso à escolarização, vivem-se resquícios desse período, comprovado pela existência de um grande número de analfabetos no país, indicador social fortemente estratificador. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), executada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2009, contabilizaram-se 14,1 milhões de analfabetos na população acima de 15 anos de idade, o que corresponde a 9,7% da população nacional.

Outro levantamento, que não possui o mesmo foco (nem o mesmo objetivo), mas que também não pode deixar de ser citado aqui, é o estudo sociolinguístico do português brasileiro, desenvolvido pelo Programa de Estudos sobre o Uso da Língua (PEUL), que teve como um de seus projetos a análise de uma amostra do português falado por cariocas não- cultos, conhecido como Corpus Censo, que ―é constituído por 48 horas de gravação com falantes adultos, divididos por três faixas etárias (15-25 anos, 26-49 anos e mais de 50 anos) e uma amostra de crianças na faixa de 7 a 14 anos‖ (SILVA, 1996 apud PAIVA, 2003; PAIVA; SCHERRE, 1999, p. 205). A partir dele, segundo Paiva e Scherre (1999, p. 205),

Foi possível constatar que, a depender da conjugação de fatores linguísticos e extralinguísticos, os carioca, em dias de sol, curte ir na praia e, depois, adora toma umas cervejinha, assistino o jogo de futebol. A frase anterior ilustra algumas variações já estudadas a partir do Corpus Censo, mas, certamente, não as esgota. (Grifos das autoras)

Assim, conclui-se que além do aspecto geográfico, o nível de escolaridade, a forma como se dá o processo de escolarização e os contextos em que ocorrem a aquisição e o emprego da linguagem são fatores relevantes para a compreensão dos traços do ―carioquês‖.

Devido à clara divisão social da cidade – o que remete aos fatores acima mencionados – sabe-se que não há um único ―carioquês‖, mas um estereótipo dele, constituído por um falar malandro, repleto de gírias e, por vezes – quando em situações preconceituosas e estigmatizadas –, composto por expressões ligadas ao cotidiano das favelas e do tráfico de drogas. Esta relação constantemente estabelecida entre o ―carioquês‖ e uma linguagem marginal (PRETI, 1983) deve-se ao grande número de favelas existentes na cidade, assim como também pela frequente exposição midiática de incursões policiais nestas áreas em combate ao tráfico de drogas.

Mas, para além do estereótipo impulsionado por uma separação geográfica, há traços fortemente marcados do falar carioca, os quais podem ser classificados de maneira hierárquica, socialmente variável.

[...] as divisões dialetais no Brasil são menos geográficas que sócio-culturais. As diferenças nas maneiras de falar são maiores, num determinado lugar, entre um homem culto e o vizinho analfabeto, que entre dois brasileiros do mesmo nível cultural originários de duas regiões distantes uma da outra. (TEYSSIER, 1997 apud CALLOU; AVELAR, 2002, p. 96)

Dentre os traços socioculturais marcados no ―carioquês‖, foram selecionadas as realizações das consoantes /S/ e /R/, em que /R/: [h] ~ [ɾ] > [ø] e /S/: [ʃ] ~ [ʒ] > [h] > [ø],

65

sendo que [s] e [z] não se classificam como pronúncias marcadamente cariocas ou relevantemente incidentes neste falar.

Em uma pesquisa da vertente variacionista da Sociolinguística, realizada em Maringá, no estado do Paraná, Botassini (2009) avaliou as avaliações positivas e negativas em relação aos empregos dos róticos na localidade. Alguns cariocas, que compunham o grupo de falantes estudados, revelaram uma característica peculiar:

Como vimos, apesar de estarem morando em Maringá há mais de dez anos, os informantes cariocas não utilizam, em momento algum, a variante retroflexa. No momento da entrevista, pudemos perceber, além do uso do rótico velar, outras marcas muito acentuadas do dialeto carioca, de maneira que não é difícil perceber a região de onde vieram. Aliás, o informante 8 comentou (com um certo orgulho) que as pessoas sempre perguntavam se ele é carioca, revelou, ainda, que não sabe por qual razão, depois de tantos anos morando no Paraná, ainda fala (nos dizeres dele) o ―carioquês‖.

Essa atitude positiva em relação à língua nativa, o orgulho de pertencer àquele grupo, representa o sentimento de identidade linguística, que leva o falante a manter lealdade à sua língua nativa. No caso dos cariocas, o prestígio que pode representar ser reconhecido como pertencendo àquele grupo se deve, sobretudo, ao status e ao prestígio que a cidade do Rio de Janeiro possui. (BOTASSINI, 2009, p. 94)

Assim como a autora o fez em Maringá, a presente dissertação aborda os róticos e suas implicações sociais, assim como também o emprego do /S/, outra consoante que apresenta não somente indicadores de estratificação social no Rio de Janeiro, mas o próprio regionalismo. No caso do rapper, que é o falante aqui analisado, além das variantes relacionadas acima (em relação às peculiaridades do Rio de Janeiro), há ainda de se considerar o fator ―estilo‖ na transcrição. Obviamente, em qualquer falar, a depender da emotividade vinculada ao assunto e o grau de monitoramento sobre a produção do texto oral, se obterão níveis maiores ou menores de /S/ e /R/ estigmatizados ou prestigiosos, considerando-se as regras da sociedade carioca.

Tanto o falante carioca da zona Sul da capital fluminense (considerado prestigiado), quanto o falante carioca da periferia (tido como ―suburbano‖) falam ―carioquês‖, mas os traços linguísticos que os diferenciam vêm carregados de significados sociais há séculos.

Se vieram para cá analfabetos e letrados, pressupõem-se que já se delineava um quadro sociolinguístico em que duas gramáticas, se assim podemos dizer, entravam em competição (Mattos e Silva, 1998, apud Castilho, 2001): a do português europeu considerado culto, veiculado por padres e trabalhadores da administração, e a do português europeu falado, difundido pelas massas de analfabetos. Acrescentando-se o fato de que na colônia já se encontrava um montante expressivo de indivíduos não-brancos e, igualmente, desconhecedores da escrita da língua portuguesa, tem-se uma situação perfeita para o início da polarização sociolinguística do português brasileiro. (SANTOS, 2002, p. 02)

No entanto, ―[...] a imigração portuguesa não pode ser a única responsável pelo falar carioca‖ (CALLOU; AVELAR, 2002 apud SANTOS, 2002, p. 03).

Assim, o ―carioquês‖ caracteriza-se como uma variedade diatópica (ou geográfica) do português brasileiro, com peculiaridades urbanas, abrangendo falas estigmatizadas e prestigiadas de diversas comunidades – sejam elas de fala ou de prática –, unidas por alguns traços que demonstrem a procedência regional dos indivíduos que dispõem e se inserem nessas características.

O ―carioquês‖ está inserido nas normas da língua portuguesa, e disseminado da variação popular (também chamada de vulgar) a padrão. O ―favelês‖, por sua vez, sendo uma derivação da norma popular, pode ou não vincular-se ao ―carioquês‖. Os usos linguísticos das favelas não necessariamente estão atrelados aos usos da cidade do Rio de Janeiro, já que, como se observa nos corpora, o ―favelês‖ está presente em diversas outras favelas do país, o que não ocorre com o ―carioquês‖, pois ele não ultrapassa barreiras geográficas, a não ser que forçosamente, como no caso dos cariocas residentes de Maringá, relatado acima. No documentário Falcão- meninos do tráfico (2006) não há tentativas, por parte dos entrevistados, de simulação dos traços regionais cariocas.

Diferentemente de outros estados brasileiros, as favelas do Rio de Janeiro são conhecidas mundialmente, a distribuição geográfica da riqueza e da pobreza na cidade foram estudadas por muitos, assim como também se pesquisou bastante sobre o reflexo dessa polarização na língua. Entretanto, não se pode permitir haver uma confusão entre o ―favelês‖ e o ―carioquês‖, pois este último poderá ser empregado no ―morro‖ (favela) ou no ―asfalto‖ (áreas centrais e/ou prestigiadas da cidade, onde não há favelas) com juízos de valor semelhantes. O mesmo não acontece com os usos da comunidade linguística favela.