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O estigma e o preconceito linguístico ultrapassam os desvios de um uso culto ou padrão da língua. Além das questões gramaticais, ambas as atitudes negativistas atingem também o uso vocabular – incluindo especialmente os termos gírios –, apesar de cada grupo ou indivíduo possuir diferentes motivações sociais seus usos.

De acordo com Camacho (2000), alguns grupos se utilizam de linguagens especiais como recurso comunicacional restritivo, criando neologismos para acompanhar a ampliação das necessidades expressivas, e a exigência de sigilo, como no caso de grupos de adolescentes, marginais e criminosos. Os falcões se enquadram esses três grupos que, segundo Camacho, buscam o sigilo em seus falares, o que, provavelmente, impulsiona o emprego de gírias (pensando em termos pertencentes a uma determinada linguagem especial) na oralidade deste grupo. No entanto, não necessariamente, o ―favelês‖ será classificado como linguagem especial, pois sua composição ultrapassa o âmbito lexical.

MV Bill emprega itens gírios do tráfico de duas maneiras diferentes: com naturalidade (que envolve questões da necessidade expressiva), devido a sua ligação à favela e consequente proximidade daqueles que empregam esta linguagem, mas também como recurso de monitoramento de fala, já que em diversas entrevistas presentes em suas obras precisou adequar-se aos entrevistados, com o objetivo de ser bem aceito para obter as informações das quais necessitava. Dessa forma, observa-se que o rapper varia o registro linguístico empregado, a fim de atingir diferentes grupos.

Preti (1984, p. 03) afirma que ―quanto maior for o sentimento de união que liga os membros do pequeno grupo, tanto mais a linguagem gíria servirá como elemento identificador, diferenciando o falante na sociedade e servindo como meio ideal de comunicação, além de forma de auto-afirmação‖. Ainda segundo o autor, não apenas na gíria, mas no léxico de uma comunidade como um todo, é possível compreender de que forma a língua de determinado grupo se comporta, bem como suas modificações para se adequar às novas realidades sociais, as quais necessitam de recursos comunicacionais. Para ele, o conjunto de palavras empregado em um agrupamento linguístico ―passa a ser a expressão da

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própria história dessa comunidade, de sua estrutura e ideologia, das normas sociais que a regem‖ (PRETI, 1983, p. 59).

É nesta movimentação e renovação da língua que certas formas destacam-se sobre outras, delineando uma relação de estigmas e privilégios entre as variáveis, as quais têm seus valores sociais modificados com frequência. O que em determinada época era de apreço social empregar linguisticamente, anos depois, com o alcance expandido e desgastado da variante, o falante que a empregar pode, ao contrário, colocar-se em uma posição socialmente desfavorável.

Alkmim (2000) cita Bright (1974) para abordar sobre diversidade linguística: segundo a autora, as variações são compostas por aspectos das identidades de cada um dos interlocutores, fatores do contexto social em que decorre a interação, além do julgamento das ações e atitudes linguísticas dos envolvidos na comunicação. Segundo Calvet (2002, p. 65), ―as atitudes linguísticas exercem influências sobre o comportamento linguístico‖.

Ao tratar de identidade, Bogo (2008, p. 35-36), a partir de uma visão sociológica, diz que as identidades cultivadas pelos grupos – sejam elas identidades sociais, linguísticas, biológicas, culturais, políticas etc. – são criadas a partir da necessidade de diferenciação, por meio de recursos criativos. ―Obviamente, é a existência da cultura que possibilita o aparecimento da identidade‖ (BOGO, 2008, p. 59).

Como a questão identitária está intrinsecamente atrelada a uma imagem/sentimento grupal, um falante qualquer tem a capacidade de percorrer diferentes identidades, podendo ser reconhecido como legítimo ou ilegítimo pelo grupo em questão. A maneira que um usuário da língua se utiliza para obter essa permeabilidade variacional está vinculada ao estilo linguístico que emprega em seus textos (orais ou escritos), ou à atenção dada à sua fala, também denominada ―monitoramento de fala‖ (autores oscilam no emprego destes conceitos).

Relacionando essa questão aos corpora desta dissertação, observa-se que é entre a variação empregada pelos moradores das favelas visitadas e diversos entrevistados envolvidos no tráfico de drogas por um lado, e a variação idealizada pelos autores daqueles que seriam seus leitores e espectadores de outro, que transitam os textos de MV Bill. O uso dessas variedades e suas consequências sociolinguísticas implicam este estudo dos estilos linguísticos e do monitoramento de fala do rapper.

A partir desta dependência situacional, a linguagem mostra-se totalmente atrelada ao contexto em que é empregada e, por isso, a importância da análise do monitoramento de fala e do emprego de diferentes estilos linguísticos de MV Bill, além de sua consequente

intencionalidade em cada colocação, podendo esta ser atingida com êxito ou não, a depender da abordagem utilizada pelo falante (produtor de textos) para obter uma resposta (verbalizada ou não) de seu interlocutor. Na presente dissertação se toma a variação de estilos linguísticos como um processo consciente, porque é possível aceitar o estilo, tomá-lo como próprio ou ainda rejeitá-lo. Segue-se a linha de Eckert (2004), que exemplifica esta proposta com o caso de uma jovem que sempre usa, antes de todas as colegas da escola, roupas da última moda. No entanto, este novo estilo – no caso vinculado a vestimentas e atitudes – não se sobressai quando é ela quem o determina, pois não tem autoridade para tanto. O novo estilo é rejeitado conscientemente.

No caso do escritor/documentarista, a oscilação em seus usos linguísticos está evidente em diversos momentos, pois seu objetivo era aproximar-se ao máximo da realidade sociocultural das comunidades que visitou e de seus entrevistados, bem como de seus leitores/espectadores. Falar como os membros de uma comunidade é identificar-se ao grupo ou, ao menos, mostrar-se interessado e, possivelmente, ser aceito.

Segundo Paiva (2003, p. 40),

As variantes linguísticas estigmatizadas pela comunidade de fala possuem, muitas vezes, uma função de garantir a identidade do indivíduo com um determinado grupo social, um sistema de valores definido. Isso é, são formas partilhadas no interior de um grupo e assinaladoras de sua individualidade com relação a outros grupos sociais. Se um indivíduo deseja integrar o grupo, deve partilhar, além das suas atitudes e valores, a linguagem característica desse grupo. Nesse caso, determinadas formas de linguagem se investem de um status particular, embora sejam desprovidas de prestígio na comunidade linguística em geral. (Grifos do autor)

O rapper, por diversas vezes, inclui-se como membro da comunidade daqueles que entrevistou, o que fica aparente com o emprego da primeira pessoa do plural e do termo a gente (citação a seguir), evidenciando, assim, os meios para a permeabilidade supracitada: ―Se nós, os favelados, não pudermos fazer dinheiro com essa miséria que foi herdada, é melhor distribuir cordas para a gente se enforcar‖ (FALCÃO, 2006, informação verbal de MV Bill. Grifos meus).

O resultado destas atitudes é, especialmente, a obtenção de informações mais íntimas: ―eu ouvi eles falarem para mim coisas que, às vezes, eles não falam nem pra própria mãe‖ (FALCÃO, 2006, informação verbal de MV Bill). Segundo Barros (2000, p. 49),

Para persuadir e para interpretar é preciso comparar os conhecimentos, valores, crenças, da competência semântica dos sujeitos, com aqueles que estão em jogo na comunicação. [...] As estratégias de persuasão e as interpretações variam, assim, historicamente, de cultura para cultura, de sociedade para sociedade (de classe social para classe social).

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Aqui, faz-se lembrar ainda da teoria da informação, a qual defende que quanto maior intersecção houver entre os códigos utilizados pelos falantes, melhores os resultados obtidos, ou seja, maior o sucesso no processo de comunicação. Além disso, a mesma teoria ainda aborda questões como a construção desta comunicação, a interação dos indivíduos sociais e suas respectivas vozes (BARROS, 2000, p. 49).

Na abertura da obra Falcão – meninos do tráfico (2006), MV Bill e Celso Athayde reconhecem a necessidade de interação por meio da linguagem:

Esses jovens têm sua própria linguagem, têm suas próprias leis. Se realmente quer entendê-los, terá que fazer um esforço, tanto para compreender suas expressões gramaticais, quanto suas atitudes, e, para isso, cada um de nós tem que se despir de todo ódio que nutrimos e de todo medo que desenvolvemos a partir dele. Temos que renunciar ao que nos foi ensinado sobre o Bem e o Mal. (ATHAYDE; MV BILL, 2006, p. 10)

O conhecimento das formas de abordagem a partir de características socioculturais dos interlocutores é uma fonte rica de estudos na Sociolinguística, pois neste processo de comunicação, há muito mais fatores do que apenas a língua ou a linguagem. Há tantos outros derivados que promovem a compreensão da intersecção dos fatores sociais e linguísticos presentes nas trocas de textos. Assim, visando a compreensão do que é estilo e, precisamente, do que é monitoramento de fala, serão colocados em contraponto dois autores que abordam o assunto.