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Pequenos elementos e usos da língua – como o preenchimento ou não do /S/ e do /R/ em finais de sílabas – provocam uma estratificação social de grandes diferenciações entre usuários da mesma língua. Esse jogo de prestígio e estigma possui delimitações tênues, pois pode receber significações diferentes a depender do contexto em que inserido. E essa classificação social promovida pela língua é o que gera preconceito, ao mesmo tempo em que também pode agenciar a aproximação de indivíduos.

Na seção anterior, observou-se que as falas de MV Bill nas transcrições presentes em suas obras estão praticamente na totalidade adequadas às normas padrão e standard. E, apesar de muitas falas de entrevistados também terem sido adequadas à norma standard, há outros tantos momentos em que o rapper, como escritor, impõe distanciamento. Essa atitude é constatada em trechos já citados nos quais, antes de expor um diálogo direto com seu entrevistado, o rapper faz alguma declaração em relação aos seus usos linguísticos, como em ―Eu comecei a tirar da cartola o meu favelês‖ (ATHAYDE; MV BILL, 2007, p. 40).

Mas também é necessário pensar de outra maneira. Ao mesmo tempo em que MV Bill é o autor das obras – que foram publicadas por uma editora nacional renomada – e do documentário estudados nessa dissertação, compositor e cantor reconhecido no meio artístico, incentivador e financiador de instituições que desenvolvem atividades em prol da redução da desigualdade socioeconômica no país, é preciso lembrar que esse indivíduo também é negro, já foi pobre e, desde sua infância, vive na Cidade de Deus e, por esses fatores, já foi alvo de preconceito.

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Relatos do rapper para uma campanha publicitária da Nextel – empresa de telefonia móvel – revelam seus endereços sociais e também cenas de sofrimento e preconceito sofridas:

Eu era muito raivoso. Eu tinha uma revolta muito grande, porque primeiro tapa que eu levei no rosto não foi da minha mãe, foi de um policial, aqui dentro da Cidade de Deus, e porque eu tava passando com uma porrada de CDs na mão. Tinha um grupo de cerca de dez policiais e tinha já dois caras lá parados. Eles tinha sido pegos com cocaína. Eles tavam ajoelhados no chão e eu chegando fresquinho no baile, não tinha nada a ver. O policial mandou eu me juntar a eles. Eu disse que não ia, que eles poderiam me revistar mas eu não tinha nada a ver com aquilo. Ia mostrar meus documentos. Quando eu comecei a explicar o que eu tava fazendo, cara, eu levei um tapa no rosto, mas com tanta força, cara, que nem a dor, mas o efeito moral, a agressão de levar um tapa no rosto sem ter feito absolutamente nada. Continuei com a mão assim. O policial bateu nos CDs que voou tudo no chão e o outro mandando eu catar. E eu, com medo de catar, cara, e levar uma botinada na boca, no rosto, em algum lugar. Eu catando meus CDs no chão, com muito, muito medo, os policiais mandaram eu ir caminhando na frente deles, cara, me fazendo de escudo caso tivesse algum tipo de conflito Então foi um dos momentos mais tensos, assim, que eu já passei na minha vida, na minha juventude. E aquilo me causava uma revolta muito grande, depois que eu fui descobrindo que os salários dos policiais são pagos com os impostos que a gente paga, que eles deveriam nos proteger, e não proteger a sociedade de pessoas como a gente. Junto com a revolta, vem a consciência, a conscientização, e isso me transformou numa pessoa menos amarga e aí vi que a diferença ia ser feita por pessoas como nós, como eu, como meus vizinhos, meu pai, minha mãe, meus amigos. E vejo o reflexo negativo de outros, que só tiveram acesso à revolta, que é uma coisa muito pior. (MV Bill para Nextel – Tapa na Cara, 2010, informação verbal)

Como, portanto, é possível afirmar que MV Bill incita o preconceito social sobre os jovens falcões entrevistados – por meio da prática do preconceito linguístico – se ele próprio já sofreu as mesmas agressões sociais? Além disso, por ser uma pessoa mundialmente reconhecida pela luta em prol da redução da desigualdade, o rapper tem, ao menos, credibilidade para que suas afirmações sejam creíveis. A ratificação pública de um estereótipo estigmatizado para as ―personagens‖ retratadas em suas obras, nessa exata situação, não pode ser considerada uma prática preconceituosa, pois, assim como em alguns selecionados momentos se distancia desse estereótipo, em outros se aproxima.

Eu sempre evitei que a Cidade de Deus participasse desse documentário para evitar incursões na favela ou gracinhas de policiais. Ou até mesmo a confusão na cabeça da imprensa que poderia achar que o documentário foi rodado aqui. Só que o que acontece na Cidade de Deus não é novidade. A grande novidade é saber que no resto do Brasil a situação é muito parecida.

Porém, o Betinho é um grande amigo de infância, um cara que tinha a maior moral na favela e hoje vive... bem deixa ele contar como vive. Ele é da Cidade de Deus, era a exceção que eu abria para contar uma história que os garotos que participaram sempre citavam. Não citavam o meu amigo em particular, mas citavam a situação dele.

[...]

Bill: Como tu virou bandido?

Betinho: Meu coroa já era bandido. Bandido antigo, de 60, de 70. Então eu, porra,

vivia só no meio deles. Minha casa tinha endolação lá no morro. Vivia lá no morro, soltando pipa, vendo eles fumar maconha. Então tu vai aprendendo aquilo tudo. Aí,

pô, minha vida foi mesmo o crime. Daí quando eu vim pra cá demorou dois anos já tava no crime já, traficando, vendendo cargas. Aí já tava portando uma peça, aí caí pra dentro do crime mesmo. Aí tinha umas épocas que tava brabo, arrumava uma batalha, ficava dois, três meses. Aí, pra prometer à mãe, fazia uns cursos, mas era vida de crime. Essa vida nunca me deu nada. Hoje em dia eu tenho alguma coisa, eu batalho, comprei minha casa trabalhando, graças a Deus. Casa lindona, tem três andar, dá pra mim me alimentar maneiro, quer dizer, dá pra pagar uma menina pra cuidar da minha casa, a gente vai levando, né? (ATHAYDE; MVBILL, 2006, p. 217-233)

Na entrevista reportada acima, MV Bill deixa claro como, durante toda sua vida, teve proximidade com o crime, por isso, sua permeabilidade nas favelas para a realização das pesquisas. Seja por meio de amigos que entraram no tráfico de drogas ou pelas famílias desses amigos, o rapper – por menos envolvido que estivesse nessa situação, algo que ele não revela em suas obras –, sempre esteve próximo a situações criminosas.

Em um dos vídeos elaborados para a campanha publicitária da Nextel, MV Bill confirma seu pertencimento a essa comunidade e demonstra grande identificação à realidade vivida pelos membros dela:

Eu sou um sobrevivente porque são poucos da minha idade que conseguem contar as mesmas histórias que eu. Não de sabedoria, mas que viveram pra contar essa história de forma aprofundada. Pô, eu tive uma infância muito bacana na Cidade de Deus. Embora a gente não tenha o luxo ou os sonhos de uma criança que tenha condições, a gente também brincava muito com a criatividade. Imaginava coisas que a gente não tinha, se a gente tivesse, inventava brincadeiras. Era muito criativo. Tinha os problemas de quando soltava fogos, que era a polícia entrando, e podia ter tiroteio. Mas tinha muita coisa legal. Eu tenho um convívio, assim, bacana, que me alimenta muito, porque eu nasci na Cidade de Deus por conta do acaso, mas não quis que isso transformasse no meu destino, de morar numa condição precária, subhumana. E hoje, que eu tenho um pouco mais de condição, prefiro continuar dentro da Cidade de Deus. Mas, quando eu tiver meus filhos, eu gostaria criá-los numa condição um pouco melhor, na qual eles não precisassem sobreviver, como eu tive que sobreviver. Apenas vivam, apenas sejam felizes. Mas, morar na CDD para mim é uma opção e é um grande exercício também. Eu vivo em avião, aeroporto, hotel bacana, restaurante legal, sempre sendo bem tratado por aí, pelas viagens. E, voltar a Cidade de Deus, quando eu chego em casa, piso no chão, cumprimento as pessoas, é como se eu tivesse voltando pra realidade. Qualquer coisa que possa me fazer flutuar durante as viagens, a CDD me traz de volta, me põe no chão. (MV Bill para Nextel – Sobrevivente, 2010, informação verbal)

Outro indício dessa proximidade é indicado por seu compadecimento com a morte de um indivíduo apontado como criminoso pela sociedade, enquadrado justamente no estereótipo rotulado e estigmatizado do traficante morador de favela:

Respondi ao repórter: “Você quer dizer que uma pessoa morreu, um ser humano foi assassinado. Ele tem nome e sobrenome, José Carlos Encina. Não é só um rótulo e um apelido. Você chama a vítima de bandido, mesmo sabendo que ele tinha pago sua dívida com a sociedade? Foram mais de vinte anos. Faltavam poucos meses para a liberdade. Mas nada disso importa: uma vez bandido, sempre bandido. Ele será eternamente bandido, independente de sua situação legal.” Ainda tive vontade de

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dizer: “No Brasil, a Justiça não reconhece penas perpétuas.” Mas desisti. Ligações telefônicas não mudam ninguém. (ATHAYDE [et al.], 2005, p. 95. Grifos meus)

A mudança de endereço social de MV Bill não representa a falta de caráter de um indivíduo posto sob julgamento social. Ela concebe tão somente a representação de um indivíduo com conhecimentos linguísticos e reconhecimento sociocultural mais amplos do que seus entrevistados. Isso também não quer dizer que ele deixe de pertencer ao grupo que rotulou os membros como negros, pobres e moradores de favela (FALCÃO, 2006, informação verbal).

O ponto de vista tomado em suas abordagens – sua aproximação e distanciamento das personagens –, ocorre justamente para mostrar aos espectadores/leitores que a realidade daqueles jovens é uma alternativa de vida, a qual ele tenta ao máximo se isentar quanto à classificação de certa ou errada. E essa tentativa de isenção demonstra que a sensação de que ele possa estar agindo preconceituosamente é proveniente do julgamento daqueles que estão fora da situação socioeconômica e cultural retratada e, por isso, possuem valores diferentes dos expostos pelos moradores de favelas, pelos membros do tráfico de drogas e por MV Bill, pois esses, sim, compartilham (ou algum dia já compartilharam) da mesma realidade.