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6.2 Norma?

6.2.1 Normas e a transcrição das obras de Athayde e MV Bill

Até aqui, concluiu-se que o ―favelês‖ é uma sub-norma. No entanto, a presente dissertação lida com um problema que vai além de uma simples classificação do ―favelês‖, pois as transcrições feitas por MV Bill e Celso Athayde nas obras, que constituem os corpora analisados, mistura uma sub-norma, a norma standard e a norma padrão.

O ―favelês‖ recebe destaque nos trechos em que os autores intencionaram dar mais vivacidade às entrevistas, deixá-las mais reais, mais próximas das cenas que presenciaram. Se não fosse pela presença dessa sub-norma, os textos das três obras que relatam os oito anos de pesquisas da dupla pareceriam sem fundamento. Quem acreditaria que um jovem, que não frequentou o colégio e que trabalha com o tráfico de drogas dia e noite, saberia conjugar verbos de acordo com a norma padrão? Da mesma maneira, foi necessário demonstrar quando, nas entrevistas, os escritores/documentaristas utilizaram-se do ―favelês‖. Caso a revisão editorial tivesse alterado os questionamentos para a norma standard ou, ainda pior, para a norma padrão do português brasileiro – na intenção de diferenciar o posicionamento social dos indivíduos –, a situação aparentaria descontextualizada, pois seriam interlocutores sem qualquer conexão linguística.

A aplicação forçosa da norma standard nas transcrições só pode ser notada por aqueles que ouvirem o depoimento de MV Bill no documentário. Cinco momentos demonstram a confusão normativa na transcrição, bem como também explicitam ter havido uma revisão de

maneira a favorecer a intenção dos autores com o trabalho – indicando afastamento e aproximação, quando melhor conviesse. No primeiro trecho – que será citado a seguir –, MV Bill transcreve a palavra ―mesmo‖ (sublinhada nas cinco citações para facilitar visualização e comparação) de duas formas (a primeira está em sua fala, e a segunda na fala de seuinterlocutor). A diferenciação é feita na tentativa de imitar a pronúncia dada a ela por seu entrevistado na obra Falcão – mulheres e o tráfico (2007). O segundo trecho é a transcrição do diálogo que o rapper estabeleceu com outro entrevistado em Falcão – meninos do tráfico (2006), no qual MV Bill é o falante a usar a palavra ―mesmo‖. Nesse último caso, ela é transcrita de acordo com o padrão ortográfico brasileiro. O terceiro, o quarto e o quinto trechos são transcrições de falas do rapper no documentário Falcão – meninos do tráfico (2006), em que se constatam três pronúncias diferenciadas para a palavra em questão.

– Ah, tô ligado, o Celso me falou dela, da pelada que aconteceu aqui, é ela mesmo? – Isso mermu, é a mulher do homi... (ATHAYDE; MV BILL, 2007, p. 30)

Rogerinho: Os polícia são safados, se eles vêm de arma na mão, eles matam, dá

tiro pra acertar. São safados.

Bill: Mas a partir do momento em que eles deixam você ir embora, na confiança,

mesmo você devendo dinheiro, então é porque eles também confiam em você... (ATHAYDE; MVBILL, 2006, p. 114)

Tipo, sai[ø] do luga[ø] de palco me[ɦ]mo, de a[R]tista, e me coloca[ø] no luga[ø] de platéia, e passa[ø] a se[ø] a platéia daquele monte de a[R]tista[ø] que vive naquele palco que ninguém que[ø] i[ø] lá assi[ʃ]ti[ø] o show dele[ʃ]. (FALCÃO, 2006, informação oral)

A gente pegamo[ø] a nossa filmadora e começamo[s] a percorre[ø] o Brasil em bu[ʃ]ca dessa me[ʒ]ma realidade que a gente achava inicialmente que era do Rio.

(FALCÃO, 2006, informação oral)

Não em tom desafiado[ø], ma[ɦ] no tom de quem não deve nada me[ø]mo, de quem não tá temendo, não tá cometendo crime algum. (FALCÃO, 2006, informação oral)

Foi encontrada uma única transcrição da fala de MV Bill, dentre as três obras, em que, assim como no primeiro trecho acima, a realização fonética da palavra ―mesmo‖ pelo rapper fosse reproduzida ortograficamente: ―Valeu mermu, Foca, por abrir a comunidade pra nós, estamos fazendo um trabalho maneiro, valeu mermu, irmão!‖ (ATHAYDE; MV BILL, 2007, p. 41).

Como o não preenchimento do /S/ (marcado pelo símbolo [ø]), a pronúncia aproximada de /R/ (com o símbolo [ɦ]) e de /g/ (com o símbolo [ʒ]) são todos frequentes e reincidentes na fala de MV Bill, conclui-se que o profissional ou a instituição responsável

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pela transcrição e/ou revisão textual intencionou em adequar as falas do rapper a uma norma menos estigmatizada do que a sub-norma ―favelês‖.

O mesmo ocorre com os demais preenchimentos de /R/ e /S/ em finais de sílabas nos textos transcritos pelos autores. Apesar de na transcrição do documentário não haver muitas posições preenchidas, nas transcrições das falas do rapper nos livros há pleno preenchimento – salvo a citação apontada acima. Até mesmo grande parte das falas dos entrevistados é preenchida:

Bill: Quais são as vantagens que você tem de trabalhar em boca? (ATHAYDE;

MVBILL, 2006, p. 179)

Dois dias depois, eu estava sentado na sala da Associação de Moradores aguardando o presidente. A Meire chegou e puxou conversa. Ela ainda estava meio abatida. Eu tinha muitas perguntas para fazer, mas o presidente da associação chegaria logo. Mesmo assim, agradeci pela companhia dela no dia em que meu carro tinha sido tomado emprestado e comecei meu interrogatório. (ATHAYDE; MV BILL, 2007, p. 35. Texto de MV Bill)

Betinho: [...] Fui em cana a primeira vez, fiquei seis anos e dois meses.

(ATHAYDE; MVBILL, 2006, p. 217)

Pô, Bill, o amigo do mar, que equilibra as bolinhas no nariz, tá ligado? (ATHAYDE; MV BILL, 2007, p. 48. Texto de entrevistado, morador de favela e/ou membro do tráfico de drogas)

É igualzinho os safados lá do Rio, que vocês falam que é da Mineira. Aqui, antes de eu assumir a favela com meu marido e meu pessoal, eles é que dominavam a favela. Cada morador tinha que pagar a eles pra fazer tudo. Eles tinham taxa de tudo, gás, aluguel de casas, tudo. Tudo você tinha que pagar pra eles. Se você abre um bar, tinha que pagar taxa por mês pra eles. Se você fazia uma festa de aniversário, tinha que pagar pra eles. Nós entramos aqui e matamos todos eles, e os que não morreram fugiram daqui. Agora a favela tá feliz, não pagam nada a ninguém, eu nunca cobrei nada de ninguém. Só vendemos nossos baratos e não mexemos com ninguém. Se você andar por aí, vai ver que em cada esquina as pessoas falam bem de nós. (ATHAYDE; MV BILL, 2007, p. 114. Texto de entrevistado, morador de favela e/ou membro do tráfico de drogas)

Segundo Bortoni-Ricardo (2004, p. 58) ―No português-padrão, principalmente na modalidade escrita, os determinantes e adjetivos concordam em gênero e número com o núcleo do sintagma. Assim: ‗Todos aqueles cidadãos corruptos serão processados.‖ O mesmo não ocorre na oralidade. A autora explica que a supressão do /s/ como marcação de plural é bastante comum em estilos orais não-monitorados. Esse apagamento intencionaria evitar redundância. Ou seja, pluralizando o principal elemento da sentença, não se faz tão necessário para a compreensão de um modo geral o preenchimento de todos os /S/.

Já o não-preenchimento dos /R/ nos textos orais tem outra explicação: ―A perda do /R/ final é um traço gradual. Observe que essa perda é mais frequente nos infinitivos verbais, mas

também, ocorre em substantivos como mulher, colher e suor ou em adjetivos como maior, melhor etc.‖ (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 58).

Por esses raciocínios, conclui-se que os preenchimentos de /S/ e /R/ nas transcrições feitas por MV Bill e Celso Athayde não são fieis à oralidade em grande parte do texto. Tal atitude torna a transcrição confusa, pois os autores, constantemente, aproximam e distanciam seus entrevistados das realidades em que estariam inseridos. Não há, portanto, um uso padronizado de uma norma ou sub-norma para todas as obras aqui estudadas. Vale ressaltar que não estão sendo analisados todos os aspectos normativos do português. Por isso, muitos dos desvios da norma padrão, e até mesmo da norma standard, observáveis nas citações não foram avaliados. Tal atividade seria inviável para uma dissertação de mestrado, haja vista a densidade dos corpora.