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Capítulo 4. Práticas de leitura em uma sala de aula da Escola do Assentamento

4.1 Materialidade dos textos em sala de aula

4.1.2 Disponibilidade dos textos em sala de aula

Como já enunciado, a materialidade dos textos inclui a disponibilidade, o acesso e a circulação dos textos (CHARTIER, 1990 e 2003; KALMAN, 2004) para professora e alunos. Com relação a isso, Kalman (2004, p. 26) propõe uma distinção a partir de um trabalho sobre uma experiência de lectoescritura com mulheres de um povo – Mixquic – de uma das delegações que conformam o Distrito Federal da Cidade do México. Disponibilidade denota a presença física dos materiais impressos, e a infraestrutura para sua distribuição e acesso refere-se às oportunidades para participar em eventos de língua escrita, situações nas quais o sujeito posiciona-se face a face com outros leitores e escritores, assim como as oportunidades e as modalidades para aprender a ler e a escrever. Esta distinção indica que todos os eventos de leitura observados e analisados nesta tese referem-se ao acesso dos alunos aos textos em sala. Por isso, nesse item o foco será na disponibilidade dos textos identificando, em especial, a sua distribuição. Onde se encontram disponíveis os materiais? A que redes de circulação eles se integram para que possam ser acessados? Quem os distribui?

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Esse tipo de valorização está presente em programas oficiais e nos PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS, bem como em um conjunto de obras que discutem o ensino de língua portuguesa: Geraldi (1984, 1995), Marinho (2001).

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Estas questões orientaram a análise e demarcaram uma distinção entre a disponibilidade dos materiais - livros didáticos, livros de literatura e minidicionários -, suportes de textos que estão diretamente relacionados às políticas públicas do Ministério da Educação (MEC).

Programa Nacional de Distribuição do Livro Didático – PNLD

No Brasil, a seleção, a compra e a distribuição gratuita de livros didáticos, para todos os alunos matriculados em escolas públicas, se faz através do Programa Nacional de Distribuição de Livros Didáticos – PNLD. Esse programa do Ministério da Educação (MEC) é o mais antigo dos programas voltados à distribuição de obras didáticas aos estudantes da rede pública de ensino brasileira e iniciou-se, com outra denominação, em 1929. Ao longo desses 70 anos, o programa se aperfeiçoou e teve diferentes nomes e formas de execução. O PNLD é voltado para o ensino fundamental público e realiza avaliação dos livros a serem escolhidos pelas escolas desde 1996. Essa avaliação resulta também na distribuição para as escolas de Guias com resenhas críticas dos livros que podem contribuir com o processo de escolha60 e que delimitam o acervo disponível para seleção da escola.

O acervo disponível tem a circulação impulsionada por políticas públicas do Estado em nível estadual e federal. Esta rede oficial61 tem sido intensificada desde final de década de 1990 principalmente quando o MEC instaura no interior destes programas um sistema de avaliação em parceria com universidades federais.

Nesta escola do assentamento, há ausência desse material em função de a sua distribuição não ter fechado o seu circuito. Em 2006, ao iniciar o trabalho com a turma, a professora identificou que não havia livros didáticos na escola. Ao iniciar o ano letivo de 2007, ela solicitou à supervisora escolar os livros a que seus alunos direito. O que se observou é que na escola matriz não havia livros suficientes para sua turma. A professora, então, pressionou a

60 Para aprofundar a compreensão do uso de livros didáticos de língua portuguesa ver Costa Val & Marcuschi

(org), 2001. Ver estudos sobre o livro didático em geral: Batista e Galvão (org), 1999; Batista e Costa Val (org) (2004); Batista (2004), sobre o texto escolar.

61 Dias (1999 e 2000) discute esta rede oficial de impressos na prática de leitura de professoras de meio rural ao

Superintendência Regional de Ensino de sua região e conseguiu exemplares que haviam sobrado da distribuição, a maioria de anos anteriores. Isso explica, principalmente, o ano de participação no PNLD - 2001 - dos livros de Português e Matemática adotados. Os livros dessas duas áreas são da coleção intitulada Novo Tempo62, da editora Scipione. Se se considerar o ritmo da distribuição para o ano de 2007, os livros teriam outra data e outros títulos à disposição.

O minidicionário AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA também é distribuído pelo MEC para cada aluno das escolas públicas. Em 2000, é inserida no PNLD a distribuição de dicionários da língua portuguesa para uso dos alunos de 1ª a 4ª série em 2001. Os livros para 2001 foram entregues até 31 de dezembro de 2000.

A disponibilidade desse programa e as oportunidades de acesso criadas pela professora, e os eventos de leitura em sala de aula, indicam alguns elementos importantes das práticas de letramento em construção nesta sala. De um lado, essas práticas estão diretamente relacionadas à disponibilidade e acesso aos livros didáticos. De outro, as obras disponíveis mostram que o acesso tem sido restrito e limitado em relação ao acervo que seria de direito de professora e de alunos de escolas públicas.

Programa Nacional de Biblioteca na Escola - PNBE

Os livros de literatura são distribuídos pelo Programa Nacional de Biblioteca da Escola (PNBE). Criado em 1997, objetiva promover o acesso à cultura e o incentivo à formação do hábito da leitura nos alunos e professores por meio da distribuição de acervos de obras de literatura, de pesquisa e de referência. Ele atende, em anos alternados, à educação infantil e ao primeiro segmento do ensino fundamental e ao segundo segmento do ensino fundamental e ensino médio. As obras distribuídas incluem textos em prosa (novelas, contos, crônicas, memórias, biografias e teatro), obras em verso (poemas, cantigas, parlendas, adivinhas), livros de imagens e livros de histórias em quadrinhos. Os títulos são distribuídos às bibliotecas escolares segundo o número de matrículas registrado no Censo Escolar. Escolas com até 250

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CORREA, Maria Helena & PONTAROLLI, Bernadette. Novo tempo: Português 3ª série. São Paulo: Scipione, 2001.

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alunos receberão 100 títulos; de 251 a 500 alunos, 200 títulos; acima de 501 estudantes, 300 títulos.

No PNBE/2008, os critérios que orientaram a avaliação e a seleção das obras podem ser assim resumidos: um primeiro grupo de itens buscou analisar a qualidade do projeto gráfico- editorial. Nesse item precisariam ser observadas as condições da leitura, a relação imagem/ texto, os paratextos, o conjunto gráfico-editorial. Um segundo grupo de itens contemplava a qualidade do texto. Nesse, precisariam ser observadas a qualidade literária do texto, a qualidade da interação com o leitor e, especificamente, a qualidade das histórias com imagens e em quadrinhos.

Quando vai à Escola Matriz para reuniões pedagógicas ou administrativas, a professora aproveita para consultar a biblioteca. Atualiza e renova o acervo da sala de aula e seleciona novas obras para o trabalho com a literatura. Apesar de outros suportes e obras fazerem parte dessa biblioteca escolar, os interesses da professora sempre estiveram mais voltados para o campo da literatura.

A seleção, pela professora, das obras a serem lidas silenciosamente congrega alguns critérios. O livro tem de ser em prosa e ter em número suficiente para todos os alunos da turma. O estoque de obras fica, então, restrito aos livros disponíveis na escola matriz em função da distribuição do Programa Nacional de Biblioteca Escolar do Ministério da Educação – PNBE. Em 2009, a professora ampliou a sua seleção em função de ter descoberto, na cidade próxima, pólo regional, uma biblioteca na “Casa do Professor”, da Secretaria Municipal de Educação do município, com acervos disponíveis tanto para professores quanto para alunos.

Há duas dimensões importantes a serem consideradas: uma, a importância da literatura na sala de aula estimulada e implementada pela política pública através do PNBE (ARAÚJO, 2008) e que se materializa com os livros disponíveis na Escola Matriz. Há diretrizes que estimulam práticas de leitura literária na sala de aula nas DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS DE LÍNGUA PORTUGUESA (1997). Outra, os vínculos fortes na história do ensino de Língua Portuguesa no Brasil, no ensino fundamental, com o valor do ensino de literatura tão marcado na escola primária francesa (CHARTIER, 2004) e na escola pública brasileira

(VIDAL, 1998;LAJOLO e ZILBERMAN, 1987). Ou seja, há presença da política pública do Estado em níveis diferentes (estadual e federal).

A disponibilidade do poema em uma obra de distribuição gratuita é uma estratégia da política pública. Todavia, à professora deve-se a tática de xerografar o texto e torná-lo acessível aos alunos através da leitura oral, uma maneira de ler os poemas que predomina nesta sala. Da mesma forma, essa leitura é uma estratégia que utiliza para garantir o seu objetivo de estimular o gosto pela poesia e pela expressão através da pintura.

O conjunto de eventos cotidianos mediados por poemas e histórias dos livros didáticos constitui o acesso desta turma aos textos. Esse acesso tem sido possível pela existência de uma biblioteca escolar na Escola Matriz, acervo disponível que delimita a seleção da professora e dos alunos. Essa biblioteca63 contém acervo muito próprio de uma escola estadual de pequeno porte e que atende aos alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Esse evento também evidenciou a relação dos alunos com outros suportes fora da escola. Após a leitura de um dos seus diários, que tinha como tema o Egito, Carlos contou ter lido um livro sobre esse tema sugerido por Juliana. Em uma conversa mais formal fora da escola, ela me relatou:

Vânia: como você descobriu a biblioteca (referindo-se à biblioteca do Centro de Formação)?

Juliana: eu fui lá... no dia que ele estava começando a formar... eles me disseram que iam fazer uma biblioteca... daí começou a formar... aí formou... eles compraram uns livros... aí eu falei com a mulher lá... que estava tomando conta... ei marina... eu vou pegar um livro... ai ela me deu um livro... tal... peguei o livro... li e devolvi... aí nós começamos a vir... eu chamei o carlos tal... aí nós começamos a ler uns livros grandes... sobre o egito...

Fomos juntas à biblioteca, mas ela não conseguiu localizar esse livro. Explicou-me que era um livro grande, creio que de capa dura, parte de uma coleção. Ela foi outras vezes a esta biblioteca e se interessava por livros que não eram de sua fase escolar: não é de 3ª e 4ª série

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não... é de 1º grau, 2º grau...dos livros de menino grande que eu gosto mais.... de matemática e do egito...

Uma outra instância que amplia a relação dos alunos com suportes de textos é o culto religioso. Os cultos católicos acontecem geralmente às 18 horas do domingo na escola. A relação forte entre estas duas instituições ficou muito evidenciada. A utilização do espaço da escola para o culto é reforçada pela participação das professoras como lideranças, como leitoras ou como cantoras. O cenário e o texto que aí se desenvolvem não permitem uma distinção clara entre o que é próprio da escola e o que é próprio da igreja. As crianças, filhas das professoras, também se sentem mais inseridas nesse evento participando efetivamente ora pelo lugar em que se localizam, ora pela posse de um suporte de escrita (livro de cânticos) que quase não é suficiente para todos, ora pela intimidade com o ritual.

Em síntese, os eventos de leitura são constituídos por alguns elementos. Materiais impressos de circulação nacional, em especial livros de literatura infantil; gêneros valorizados em diferentes escalas sociais e por diferentes grupos, como a poesia e a prosa; a expressão através da pintura; a presença preponderante da oralidade em torno da qual se dá a mediação da leitura literária. O acesso dos alunos aos textos é uma preocupação permanente da professora, o que pode ser observado se ampliarmos a concepção tradicional de biblioteca. O que se observou cotidianamente em sala foram eventos nos quais a turma escutou poemas, leu-os, declamou-os, expressou-os em pinturas; identificou autores; leu diariamente textos narrativos da literatura infantil; participou de leituras orais coletivas de textos de variados gêneros. Dessa forma, uma memória coletiva foi se criando em torno de um acervo lido, um acervo desejável, idealizado nos títulos, nos autores, nas experiências de outros leitores.

A materialidade dos textos constitutivos dos eventos de leitura nesta sala de aula evidencia dimensões importantes para se compreender as práticas de letramento em construção em uma Escola do Assentamento. O acesso e a disponibilidade dos textos são, a todo momento, enfrentados com estratégias e táticas da professora para romper os limites da política pública do Estado. A relação oralidade/escrita e a relação impresso/manuscrito são constitutivas da forma como professora e alunos interagem com os textos, explorando, ampliando e, portanto, expressando diferentes processos de apropriação. Nessa direção, os modos de ler também expressam fortemente esses pares de oposição em relação, literário e não-literário, impresso e manuscrito, oralidade e escrita.