• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 3. Eventos de leitura em uma sala de aula da Escola do Assentamento

3.4 Eventos de leitura

3.4.1 Eventos de letramento literário

51 CORREA, Maria Helena & PONTAROLLI, Bernadette. LD Novo Tempo Português 3ª série. Ed.Scipione

Os eventos de letramento literário referem-se às situações de interação de professora e alunos mediada por textos literários, como citado. Textos literários referem-se aqui a todos os suportes impressos ou manuscritos, de alguma forma já definidos como literários quer seja pela política pública, quer seja por instituições autorizadas, ou ainda, pelos próprios leitores. Isso significa que não se está referindo especificamente à leitura literária que passaria a ter de se considerar a experiência estética do leitor e não só o texto. A expressão textos literários evoca a intenção estética, de pacto ficcional, mas não controla a leitura.

No contexto da escola, a proposta de pacto ficcional e recepção não-pragmática tem sido alvo de discussões e de muito debate. Vale destacar as críticas à escolarização da literatura da década de 1980 que chegaria a uma destruição da leitura (SILVA, 1986) ou à leitura destruidora (LAJOLO e ZILBERMAN, 1991) e a necessidade e possibilidade de a escola realizar uma escolarização adequada na década de 1990 (SOARES, 1999), ou ainda ao entendimento de que a leitura literária não se reduz à escola, embora passe por ela (PAULINO, 1999). Passada uma década do século XXI, o Jogo do livro (2009), evento coordenado pelo Grupo de Pesquisa do Letramento Literário (GPELL) em sua VIII versão continua esse debate em torno da relação literatura e escola, com o tema a tela e o livro, discutindo a inserção no ambiente escolar dos diferentes tipos de leitura.

Em meio a esse debate, mais uma vez a relação literatura e escola é objeto do que denomino eventos de letramento literário. A eles se referem um conjunto de eventos de leitura nos quais as situações de interação de professora e alunos são mediados por textos literários. A síntese de cada evento pretende indicar alguns elementos constitutivos da leitura: os suportes, gêneros e modos de ler em sala de aula. O quadro a seguir apresenta um resumo desses eventos:

Eventos de letramento literário

Leitura de textos manuscritos no quadro de giz

Situações de interação de professora e alunos mediados por textos manuscritos no quadro de giz, lidos oralmente, individual ou coletivamente e copiados nos cadernos. Os textos são literários, predominando poemas. Esse evento ocorre cotidianamente durante o ano de 2006.

Leitura no livro didático de português

Situações de interação de professora e alunos mediados por textos do livro didático de português - Novo tempo: Português 3ª série é de autoria de Maria Helena Correa e Bernadette Pontarolli e

123

editado pela Scipione, em 2001 – de uso individual. Os textos literários são lidos oralmente por professora e alunos. A finalidade desse evento é a aprendizagem de habilidades relacionadas ao ensino de português, em especial, da leitura. Nessas situações, observa-se algum tipo de modificação da proposta original do livro didático, caracterizando-se assim diferentes apropriações de professora e de alunos. Esse evento ocorre cotidianamente no ano de 2007.

Chá com Poesia

Situações de interação de professoras, alunos e comunidade, mediadas por textos literários de tradição oral ou escrita. Esse evento ocorre anualmente desde 2007, em um espaço público do assentamento e é acompanhado de um lanche coletivo, organizado pela escola com a contribuição da comunidade. Normalmente servem-se chás, sucos, leite, broas, bolos, biscoitos, pães e frutas. Tem a duração média de 1 hora e meia.

Leitura silenciosa no livro de literatura

Situações de interação de professora e alunos, mediadas por livros de literatura infantil, lidos silenciosamente, em média por 30 minutos, todos os dias, após o recreio. A finalidade desse evento é que os alunos descubram a leitura silenciosa, a leitura solitária, o prazer da leitura. Esse é um evento diário nos anos de 2006 e 2007.

Leitura nos Textos Visuais

Situações de interação dos alunos, em grupos, com textos literários, a maioria poemas, na produção de um texto visual, a pintura. No momento da pintura, os textos são relidos ou declamados, ou recontados, pois já fizeram parte de algum evento anterior e resultam em uma re-leitura. As pinturas são fixadas nas paredes da sala de aula. Esse evento ocorre, normalmente, uma vez por semana, durante todo o ano de 2007.

Esses eventos, dentre outros, evidenciam a presença cotidiana de textos literários nas interações que ocorrem em sala de aula, com diferentes finalidades no interior de um objetivo mais amplo de formação do leitor. Há uma crença no valor da literatura para a formação do leitor, pois a literatura ocupou lugar central no trabalho desenvolvido pela professora, na presença cotidiana de poemas, da leitura de livros de literatura, no Chá com Poesia como estratégia de aproximação da escola com a comunidade.

O que se observa é que os textos literários estão presentes em diferentes suportes. No livro didático, em livros de poesia e de literatura, em folhas xerografadas, em pinturas, como será analisado no capítulo que discutirá a materialidade dos textos constitutivos dos eventos de leitura. Os livros literários representam nesta sala um suporte que sintetiza um dos valores da cultura escrita moderna, a leitura silenciosa de uma obra literária.

Esses eventos serão objetos de análise do capítulo seguinte, o que permitirá uma compreensão melhor das práticas de leitura em uma sala de aula da Escola do Assentamento. Todavia, como parte desse processo de compreensão, neste momento, será analisado um evento de leitura constitutivo do processo de construção do letramento literário, que ocorreu no dia 30 de outubro de 2007.

O evento se dá em torno da leitura de um poema no livro didático de português. O poema faz parte do capítulo 2 do LD que abre com a temática “O artista é você!”. O protocolo de leitura do poema “Os dedos do artista” de Sérgio Caparelli, como se pode ver abaixo, não sugere nenhum modo de ler específico para o poema e inicia na página seguinte uma sequência de atividades (vocabulário e interpretação) em torno do poema.

Imagem 1: texto do LD de português

O evento de leitura do poema em sala tem a seguinte seqüência: a) leitura oral, individual, de cada estrofe pelos alunos; b) leitura coletiva do poema; c) leitura oral da professora; d) diálogo da professora com os alunos em torno da relação entre o escritor e o pintor como

125

artistas; e) leitura de vários poemas de autores diferentes para exemplificar diferentes estilos, um sarau de poesias; f) leitura de vários nomes de escritores com a finalidade de ampliar o universo de autores e identificar aqueles já conhecidos. Como se pode observar, e será freqüente em outros eventos, a professora se apropria da proposta do LD transformando-a, neste caso e em muitos outros, em um “sarau” de poesias.

Após as leituras orais do poema e sua relação com outros poemas do autor, já familiar para os alunos, a professora chama a atenção dos alunos para a escrita como um processo criativo original:

“é porque a escrita... a pintura... vem daqui oh... [apontando para sua cabeça] principalmente... daqui [apontando novamente para a cabeça] e do coração... [apontando para o coração] né... aí o jeito de escrever dele [referindo-se ao Sérgio Caparelli] se diferencia do de todo mundo... de todos os outros escritores... igual o jeito de pintar de Tarsila do Amaral... [referindo-se à pintura apresentada no LD, p. 116] todo mundo pode pintar... mas tem um jeito que é dela... então cria-se um estilo de pintura que é o dela... então todo mundo pode escrever... assim como Sérgio Caparelli escrever... como Vinicius de Morais escreve... aí tem a Ruth Rocha que adora contar história... que tem um jeito de escrever dela... cada um tem o seu jeito de escrever... tá? é por isso... senão não precisava de um tanto de escritor não... para quê... né?”

A partir daí os alunos falam ao mesmo tempo. Alguns falam com os colegas concordando com a professora e um deles, Carlos, pede à professora para ler o poema “Jacaré letrado” também de Sérgio Caparelli. Esta sugestão vai ao encontro do movimento da professora que, neste momento, localiza vários livros de leitura do Programa Nacional de Biblioteca na Escola em uma caixa que fica em uma bancada próxima a sua mesa e começa a ler poemas de vários autores. Esse evento sintetiza o lugar do letramento literário nesta sala e o seu valor para a Escola do Assentamento.