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Capítulo 4. Práticas de leitura em uma sala de aula da Escola do Assentamento

4.2 Modos de ler em sala de aula

4.2.2 Em aula de ciências e de geografia

O evento Leitura no livro didático de ciências refere-se às situações de interação entre professora e alunos mediados pelo livro didático de Ciências65. Os textos são lidos oralmente pelos alunos e comentados pela professora. No interior dessa situação, intercalam-se outras situações de interações mediadas pelo minidicionário AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA. Esse evento ocorre cotidianamente no ano de 2007.

A análise do evento do dia 10 de julho de 2007 pode nos fornecer elementos importantes para a compreensão das práticas de leitura oral. O trabalho se desenvolve em torno da “Mudança dos estados físicos da água”, atividade 2 do LD de Ciências , página 36, como se pode ver a seguir:

65 Ciências. Coleção Conhecer e Crescer, de autoria de Érica Santana e refere-se à 3ª série do Ensino

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Imagem 16: texto do LD de ciências

O texto intitulado “Mudanças de estado físico da água” é o terceiro texto do capítulo 3 que tem como tema a água. O primeiro texto é parte de uma história em quadrinhos de Maurício de Sousa. O segundo e o terceiro textos são produzidos pelos autores do livro didático. Como se pode observar é um texto composto por vários tópicos numerados em torno dos quais o leitor é chamado a analisar a situação descrita e dar sua opinião. Os conteúdos são desenvolvidos por meio de textos e pelo auxílio de imagens, estimulando observações e trocas de opinião, por meio de situações problema e atividades práticas diversas (GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS, 2007).

A seqüência do evento que envolve a leitura do tópico 2 do texto pode ser assim resumida:

Negociando a leitura e identificando a atividade do LD a ser reiniciada Lendo oralmente no LD e localizando no mapa

Lendo oralmente e compreendendo oralmente as atividades do LD Conferindo regras para a interação

Lendo oralmente e compreendendo oralmente as atividades do LD Consultando o dicionário

Controlando a consulta ao dicionário

Lendo oralmente e compreendendo o verbete

Lendo oralmente e compreendendo as atividades do LD Consultando o dicionário

Lendo o verbete

Lendo oralmente e compreendendo as atividades do LD Encerrando a aula

Outros textos fazem parte desse evento que tomo como eixo central das interações entre professora e alunos mediadas pela leitura do texto do LD. Isso significa que várias outras situações de interação – professora e alunos – com outros textos e finalidades mais específicas se dão no interior de um evento que tem como eixo central o texto do LD de Ciências, integrante da interação que objetiva a aprendizagem de um conteúdo de ciências.

A leitura oral, modo de ler central desse evento, integra os sentidos que vão sendo produzidos. Logo após a leitura do primeiro enunciado, o sentido produzido não se relaciona com o objetivo geral do evento, como se pode observar com a transcrição da enunciação que se segue logo após a leitura oral:

Professora: ... atividade dois... lê aí Juliana...

Juliana: “Luciano, que mora no estado do Espírito Santo, está colocando uma

forma com água no congelador.” (p. 36).

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A professora levanta-se e aponta para o Mapa Mundi fixado no quadro de giz: Olha onde que é o Espírito Santo aqui... oh... Os alunos levantam-se apressados, vão para frente e começam a procurar o estado. Eles falam ao mesmo tempo e se embolam para conseguir ver. Quem define o leitor é a professora, assumindo assim o controle sobre a condução desta prática. A opção é por uma aluna que tem demonstrado, ao lado de Carlos, ser uma leitora legitimada pela professora. Além disso, o foco da interpretação do texto é no estado da federação onde mora o menino, portanto, no que é secundário no texto. O conteúdo que está em foco se distancia do conteúdo da aula de Ciências, mas faz muito sentido para a turma. A produção oral mostra que a aula de ciências se transforma, neste momento, em uma aula de geografia, de conhecimentos sobre a história de vida dos colegas. Isso indica como os sujeitos, professora e alunos, se apropriam dos textos de acordo com seus interesses, mediados pela oralidade.

Na sequência, a leitura em voz alta do texto do LD de ciências é retomada e realizada por um aluno. Ao terminar de ler cada item da atividade, a professora retoma o conteúdo discutindo- o, avaliando-o, ampliando-o. Por duas vezes, no interior desse evento, a professora sugere aos alunos a consulta ao minidicionário.

Rafael: “a passagem da água do estado sólido para o estado líquido é chamada

fus... fusão.” [p.37 do LD]

Professora: fusão... Lúcia: confusão...

[Rafael demonstra que desconhece a palavra fusão. Três alunas se movimentam para consultar o dicionário e a professora solicita que todos façam a consulta.]

A leitura segmentada da palavra fusão é interpretada pela professora como uma pista para o desconhecimento da palavra e/ou de seu sentido. Apesar de o conceito estar no próprio texto lido, ela sugere a consulta ao dicionário. Nesse sentido, a sua preocupação maior é com o conteúdo e não com a compreensão do texto que está sendo lido. A observação de Lúcia também é muito provocativa: confusão é uma possível rima para a situação que se instaura com o desconhecimento da palavra.

Há, portanto, duas formas de acompanhamento da aprendizagem pela professora, em função de sua observação da leitura oral. Uma, quando percebe que a leitura oral e os comentários espontâneos dos alunos demonstram que estes entenderam o conteúdo.

Mariana: “se possível... coloque um pouco de água no estado líquido em uma forma e deixe-a no congelador por algumas horas... em seguida verifique o que aconteceu?” (p. 36)

Luciana: eu já fiz isso... Alunos: eu também...

Professora: leia aí na frente... Soraia...

Os alunos demonstram ter entendido esta parte da seqüência do texto e a professora não dá continuidade à interação que os alunos propõem, retomando a leitura oral. Para ela, o que interessa é confirmado pelos enunciados dos alunos que sabem do que se trata o assunto e têm experiências que a confirmam. Para os alunos, o que interessa é falar de suas experiências, pois o seu referencial é o mundo, a experiência.

Estas observações também se fizeram presente no evento Leitura no livro didático de geografia. Esse evento refere-se às situações de interação entre professora e alunos mediadas pelo livro didático de Geografia - Geografia: interagindo e conhecendo o mundo, publicado em 2001 pela Editora do Brasil e distribuído no PNLD de 2004. Os textos são lidos oralmente pelos alunos e comentados pela professora estabelecendo-se mais uma situação de imbricação oralidade/escrita. No interior dessa situação, intercalaram-se outras situações de interações mediadas pelo minidicionário AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA. A finalidade desse evento é o ensino e a aprendizagem de conteúdos de geografia, evento cotidiano no ano de 2007.

No dia 11 de julho, a situação de interação entre professora e alunos foi mediada pela leitura oral do texto “Localizando o Brasil” no livro didático de geografia (p. 27). O texto abre o capítulo 4 e, como se pode observar abaixo, compõe-se de uma pequena exposição sobre o que é fronteira ou limite, seguida de um mapa político da América do Sul.

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Imagem 17: texto do LD de geografia

O evento inicia-se com a professora solicitando a leitura oral individual do texto. Após a leitura realizada por Soraia, seguem comentários da professora sobre o conceito de fronteiras, relacionando-o com o conceito de território e exemplificando-os com situações da vida cotidiana dos alunos. A seguir, ela explora com os alunos o mapa da América do Sul e situa-o no Mapa Mundi. No momento de exploração do texto, dá-se a seguinte seqüência discursiva:

Professora: Então gente... o que nós estamos estudando... fronteiras... limites... no fundo o que nós estamos estudando é o território... é a base territorial... e neste caso estamos identificando a américa...

Alunos: do sul...

Professora: Vamos então retomar cada um dos países...

Esse diálogo encontra elo na enunciação que constitui o evento do dia anterior em torno dos símbolos dos países e do MST. Desta forma, o sentido que se produz para o texto neste evento está diretamente relacionado à cadeia de sentidos em construção nesta sala em torno da

compreensão do assentamento como um território em construção inserido em um município, estado e país e continente.

O predomínio da voz da professora logo após a leitura oral para ampliar, exemplificar, explicar o conteúdo do texto. Como a leitura dos alunos, em sua maioria, não é satisfatória para a aprendizagem do conteúdo, a professora assume uma explicação ou talvez uma tradução do texto para uma leitura que julga adequada para o conteúdo em aprendizagem.

Essa concepção parece-me muito próxima à relação que De Certeau (1996) estabelece entre leitura e oralidade. Somente uma memória cultural adquirida de ouvido, por tradição oral, permite e enriquece aos poucos as estratégias de interrogação semântica cujas expectativas a decifração de um escrito afirma, precisa e corrige. Desde a leitura da criança até a do cientista, ela é precedida e possibilitada pela comunicação oral, “inumerável” autoridade que os textos não citam quase nunca. (1996, p. 263)

Nesses eventos, temos elementos que sustentam o quanto há uma produção oral que evidencia a relação com o texto escrito, constituindo um modo de ler distinto. As situações orais podem ser assim resumidas: interação face a face da professora com o grupo de alunos, sem se dirigir diretamente a eles, com perguntas objetivas sobre a temática em estudo; leitura oral de uma aluna da primeira parte do texto da unidade do livro didático; comentários orais e perguntas da professora sobre a temática; regras para a interação oral; comentários dos alunos sobre o conteúdo lido; leitura oral de outro fragmento do texto com a entonação e o ritmo da leitura de uma palavra indicando desconhecimento do conteúdo em questão.

Quais finalidades a leitura oral parece cumprir? Pelo que foi descrito, várias são as finalidades construídas. Na aula de Ciências, duas finalidades ficam mais evidenciadas na perspectiva da professora. A primeira, manter o acompanhamento pela turma do conteúdo em foco. A leitura oral individual de um aluno solicitado a ler pela professora constrói a retomada e a continuidade das informações. Ela faz o elo na tessitura construída no evento. A segunda, socializar e controlar as definições dos verbetes que contribuirão para a apropriação dos conceitos.

A leitura silenciosa tem espaços e tempos muito próprios nesta sala de aula. De um lado, ela está estritamente relacionada a uma experiência de leitura literária, individual, solitária, como

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se na leitura silenciosa de textos literários impressos. De outro, ela acontece sem uma intenção clara da professora nos momentos em que os alunos realizam a cópia de textos literários do quadro. Os eventos de leitura de textos não-literários, ao contrário, demonstram uma ausência de intenção da professora em estimular esta leitura. A leitura oral, como analisada no item anterior, é realizada sem indicações para uma leitura silenciosa.

Nesta sala, os eventos indicam uma concepção de leitura que rompe com esta idéia de que, uma vez alfabetizado, o indivíduo pode ler tudo. Ao longo dos dois anos de trabalho com a turma, a professora faz algumas distinções importantes. Para ela, em um primeiro momento é preciso sistematizar o contato dos alunos com práticas consideradas por ela como básicas: a cópia e a leitura oral. Em um segundo momento, o trabalho de sistematização procura garantir a leitura silenciosa de livros de literatura, para depois ampliar para a leitura de outros textos, como os textos mais informativos, de circulação social. Não se forma um leitor apenas com uma dispersão e uma ampliação de práticas de leitura. Parece também que, para ser um bom leitor em português, o aluno tem que ir ao texto, ao contrário, quando está em uma aula de ciências, a professora pode explicar o conteúdo, cobrando menos que o aluno dê conta do que está no texto.

O que os modos de ler indicam sobre as práticas de letramento em construção nesta sala de aula da Escola do Assentamento organizado pelo MST? Eles evidenciam uma tensão entre práticas de uma cultura escolar hegemônica e práticas que representam o valor da oralidade e da relação com a escrita para um movimento social. De um lado, a oralidade se faz presente através da leitura em voz alta, dos diálogos, da tradução em torno dos textos. De outro, a oralidade é uma estratégia de controle sobre a aprendizagem dos alunos e sobre os significados que os alunos vão construindo em torno dos textos. Nas interações, ela também expressa os processos de apropriação dos textos condicionados pela realidade do assentamento e dos princípios do Movimento Social.

Todavia, a oralidade pode ser ampliada em duas direções. Uma, em relação à construção de um espaço/tempo mais voltado para a valorização dos sentidos que os alunos produzem para os textos lidos. Talvez as práticas do MST possam ampliar essa forma de lidar com a oralidade em sala, entendendo as diferenças entre a escola e o movimento social. O que isso pode indicar? Assumindo a assimetria constitutiva da sala de aula, ela pode sair de certos padrões de interação que valorizem mais as intervenções dos alunos, as questões que colocam

e não apenas as respostas que elaboram para as questões apresentadas. Analisar crenças em torno da leitura em muito pode contribuir para ampliar esta compreensão, como se verá no próximo item.