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O primeiro ponto em apreciação, aqui, encontra-se em A Condição Humana – obra que, como se sabe, teve como título provisório justamente o binome Amor Mundi, o qual foi alterado pelo editor, no entanto, na procura de um nome mais acessível e comercializável. Em duas passagens específicas desse livro, Arendt afirma a irrelevância do amor ao âmbito público, ao âmbito das aparências. Não que o amor seja irrelevante por si mesmo, mas ele simplesmente não é capaz de tolerar a luz implacável da cena pública e nem de suportar de modo digno a constante visibilidade perante a presença dos outros, pois ao ser exposto continuamente suscita desconfiança em relação à genuinidade do próprio sentimento. Assim como é impossível, para nós, ter acesso à intensidade da dor física que uma outra pessoa sente, também não há como conhecer e nem confiar plenamente no sentimento alheio, que tem no amor um exemplo extremo. Em tais casos, o acesso a esses sentimentos é intrinsecamente privado. Devido a isso, na seção que explica o que seria o “domínio público” e o que seria o “comum” em sua reestruturação dos fenômenos da vita activa, Arendt considera que algumas forças internas prementemente individuais – como a vida do espírito, as paixões do coração e os deleites dos sentidos – não são próprias a compor a realidade do mundo aparente. Ser algo automaticamente privado não significa ser algo rebaixado a um âmbito inferior ao público; significa apenas que cada atividade assinala sua melhor localização conveniente, ou seja, que há coisas que devem ser ocultadas e outras coisas que devem ser expostas para receber existência adequada, e que isso se altera de acordo com contextos históricos e culturais diferentes. Dessa forma, diz Arendt: “O amor (...) em contraposição à amizade, morre ou, antes, se extingue assim que é trazido a público. Dada a sua inerente não mundanidade, o amor só pode ser falsificado e pervertido quando utilizado para fins políticos, como a

transformação ou a salvação do mundo”496. É como se, para a autora, o sentimento amoroso fosse um

intruso quando publicitado, muito pouco ambientado à prática e aos diálogos políticos. Páginas adiante,

ainda na obra A Condição Humana, quando discute a respeito da redenção das vicissitudes ocasionadas pela irreversibilidade das ações humanas, ou melhor, quando discute sobre a envergadura política do perdão, característica que teria sido descoberta pelo Nazareno, Arendt volta à questão do amor, uma vez que perdoar e amar são indissociáveis na doutrina cristã. Diz ela: “Por natureza, o amor é não mundano, e é por essa razão, mais que por sua raridade, que é não apenas apolítico, mas antipolítico, talvez a mais poderosa das forças humanas antipolíticas”497

. Ora, nesses dois contextos, a partir de diferentes justificativas, subjaz a mesma argumentação em Arendt que parte da seguinte premissa: o amor não suporta barreiras e distâncias, ele abole todo espaço-entre existente, segundo a pensadora, em qualquer constituição política organizada humanamente. Daí vem o aspecto antipolítico e não mundano do amor, pois é um sentimento que elimina todo tipo de espaço criado entre aquele que ama e aquilo que é amado; politicamente, isso quer dizer que, por seu caráter passional, o amor destrói aquilo que, ao mesmo tempo, nos une e nos separa uns aos outros. Ou seja, o amor é cego a perspectivas, uma vez que só mira o objeto amado, e, ao mesmo tempo, o amor é mudo, uma vez que não cumpre a tarefa básica de se expressar sem reservas e desconfianças. Nesse sentido, o amor definitivamente não é um bom critério para ações políticas, é fonte equivocada para guiar anseios revolucionários, como ela diz em Sobre a Revolução, e não deve fazer parte argumentativa ou persuasiva no diálogo e debate políticos, até porque a pluralidade teria de ser sacrificada em nome da experiência de um tipo de sentimento que é íntimo e que requer exclusividade, o que geraria um âmbito de intolerância e suspeita com aqueles que, por acaso, não compartilhassem de tal sentimento.

Em um capítulo dedicado ao sentimento humano do amor em Introdução ao Pensamento

Filosófico, Jaspers, por seu turno, enumera alguns usos semânticos da expressão “amor” e orienta sua

discussão sobre essa temática ao assumir, de partida, que significações últimas escapam a quaisquer intentos nesse contexto. “Os sentidos da palavra são vários. Fala-se de amor a Deus, ao sexo oposto, aos pais, aos filhos, aos companheiros de destino, à humanidade, ao homem, aos gregos, à pátria, a Kant, a Espinosa. Gostaríamos de saber e explicitar o que seja o amor. Não o conseguiremos. Tentemos, não obstante”498

. Na tentativa de abstrair todas as particularidades desses tipos de amor em prol de um significado que congregaria a generalidade desse termo, portanto, também na concepção jasperiana o que resta é algo não mundano, pois, diz explicitamente o autor, “não está no mundo a origem do amor”499

. É devido a isso que Jaspers o denomina de “amor metafísico”, algo sem existência

497 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 302.

498 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 117. 499 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 119.

empírica, que escapa tanto às matérias científicas e técnicas quanto às operações racionais que podem se direcionar às ações políticas, por exemplo. Na obra Psicologia das visões de mundo Jaspers argumenta que o amor, enquanto atitude entusiástica humana, por se remeter a uma intimidade tão profunda entre sujeito e objeto, acaba por abolir de modo peculiar a dissociação entre esses dois elementos. Ou seja, abole o espaço entre sujeito e objeto. Desse modo, mais do que apontar o desenraizamento ontológico do amor perante o mundo, assim como Arendt realiza, os argumentos de Jaspers caminham para problematizar que tal sentimento, por não ser concreta e objetivamente acessível aos sentidos humanos, sempre suscitará dúvidas a respeito de sua própria autenticidade. “Ninguém pode saber se ele existe e se, hic et nunc, é real entre dois seres humanos”500; “[n]em é

possível demonstrar a existência do amor quando ele é posto em dúvida. O amor não leva um sinal inconfundível. Não pede reconhecimento [...]”501

. Pode-se expandir essa constatação jasperiana para o fato de que nenhum corpo político, formado por diferentes homens e mulheres, seria capaz de possuir expedientes legítimos para reclamar, averiguar ou sustentar-se no sentimento do amor entre seus membros. O próprio Jaspers comenta rapidamente sobre essa consequência (a)política da característica não mundana do amor:

Esse amor, se perfeito e puro, seria razão exclusiva e suficiente de nossa vida. Um amor perfeito dispensaria a lei moral e a ordem pública, porque a elas daria surgimento em cada situação concreta e implicaria observância de seus preceitos [...] Se houvesse alguém capaz de viver na clarividência do amor, ser-lhe-ia aplicável o dito de Santo Agostinho: ‘ama e faze o que quiseres’. Como, porém, somos todos homens, sujeitos ao engano e à cegueira, expostos à ação de forças hostis ao amor, não podemos viver sem restrições [...] Tal o motivo por que não

podemos recorrer ao amor para justificar uma conduta, uma atitude, um juízo502.

Trata-se, nessas perspectivas, de uma encruzilhada análoga àquilo que tragou violentamente a maioria das revoluções modernas, sobretudo a francesa e a russa, segundo Arendt, no sentido de se instaurar contextos marcados pelo “terrorismo da virtude”, pelo “reinado do terror”503, e pela punição de supostos vícios – como a hipocrisia, “porque a caça dos hipócritas é por natureza ilimitada”504 – que não são de modo algum bem definidos e objetivamente apontáveis em público. Na leitura de Arendt em Sobre a Revolução, quando Robespierre, influenciado por Rousseau e movido pela paixão da compaixão, vinculou a força virtuosa dos revolucionários franceses a um sentimento de piedade para

500 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 119. 501 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 119-120. 502 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 126, grifos meus. 503 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 140.

com o povo (le peuple, os desgraçados, os sofredores, os menos abastados), perdia-se então a capacidade de representar o povo em uma causa comum em prol de um distanciamento entre representantes (os piedosos) e representados (os que merecem caridade). Para Arendt, “se foi Rousseau quem introduziu a compaixão na teoria política, foi Robespierre quem a levou à praça pública com o vigor de sua grandiloquência revolucionária”505

, e o resultado disso foi uma caça às bruxas a determinadas depravações humanas que começavam com o fim da compaixão. Mais do que isso, inaugurava-se uma constante suspeita por parte daqueles que se sentem piedosos em relação àqueles que, por acaso, não se sentem compadecidos com o povo. De acordo com a autora, “o coração humano é, sem dúvida, um local de sombras que nenhum olhar humano pode devassar (...) fez com que Robespierre e seus seguidores, depois de igualarem a virtude às qualidades do coração, vissem intrigas e calúnias, traições e hipocrisias por todas as partes”506

. Há, nesse argumento, um sentido de comprovação do “caráter apolítico e antipolítico” do amor comentado anteriormente em A Condição

Humana, pois o coração humano, que contém os sentimentos mais privados de cada indivíduo, também

não se destina a aparecer à luz do público. Para Arendt, essa fatídica faceta da desconfiança não estava presente na Revolução Americana, pois os revolucionários americanos não tomaram o coração – onde, segundo ela, mora o sentimento do amor – como fonte da virtude política e nem como fonte do caráter moral daqueles que governam. Tais revolucionários se incluíam entre os oprimidos, uma vez que também eram destituídos de poder político por conta de um antigo regime, e, desse modo, legitimaram- se por se erguerem contra a tirania e a opressão sem precisarem recorrer ao sentimento de caridade face à pobreza e à contínua exploração dos povos. “Se se tornaram porta-vozes do povo, não foi no sentido de que fizeram algo pelo povo, fosse por amor ou por desejo de obterpoder sobre ele; falaram e agiram como seus representantes numa causa comum”507. Assim colocadas, as discussões arendtianas parecem expor uma aporia retórica no sentido de que a expressão amor mundi poderia ser contraditória por definição ou de que, no limite, não se vincularia com clareza aos significados que a autora confere às ações políticas humanas, à constituição de corpos políticos, ao “espírito revolucionário”, como exemplos de temas recorrentemente caros a Arendt.

Nessa mesma direção, para finalizar o primeiro bloco das citações aqui selecionadas, cabe ressaltar que no último parágrafo da parte sobre o poder de perdoar em A Condição Humana, Arendt defende, contra a concepção cristã, que para perdoar não é preciso amar. Afinal, para ela, o perdão

505 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 119. 506 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 136.

possui um papel político por ser, justamente, uma espécie de ação, ou melhor, um reinício em resposta a um determinado ato anterior que o provocou, mas trata-se de um reinício que não reage simplesmente, pois não está preso a este ato único. Para Arendt, perdoar seria uma das maiores capacidades humanas “e, talvez, a mais ousada das ações do homem, já que tenta alcançar o aparentemente impossível – desfazer o que foi feito”508

, libertando tanto aquele que perdoa quanto aquele que é perdoado, pois instaura um novo começo em uma situação que parecia infinda. Em outras palavras, perdoar é agir novamente, é desligar tanto o credor quanto o devedor das consequências de um ato que poderiam ser intermináveis, mas não teria uma força política se estivesse necessariamente vinculado ao amor – este entendido como força de grandeza antipolítica. Posso muito bem conceder perdão a alguém que me tenha feito uma falta, sem, contudo, amá-lo. Desse modo, afirma Arendt: “o que o amor é em sua esfera própria e estritamente delimitada, o respeito é no domínio mais amplo dos assuntos humanos. Como a

philia politiké aristotélica, o respeito é uma espécie de amizade sem intimidade ou proximidade; é uma

consideração pela pessoa desde a distância que o espaço do mundo coloca entre nós”509

. Com isso a autora quer dizer, apenas, que o respeito – e não o amor – é o bastante para que possamos perdoar uns aos outros. Antes de discutir mais um pouco sobre isso, a questão do “respeito” abre espaço para a segunda passagem aqui destacada na qual Arendt comenta sobre o amor no contexto mundano.

Em uma carta de resposta às críticas dispensadas pelo teólogo judeu Gerschom Scholem ao seu livro Eichmann em Jerusalém, correspondência na qual Arendt rebate a acusação de ter poucos traços de “amor ao povo judeu”510

, a pensadora escreve que Scholem estava absolutamente correto em seu diagnóstico. Por duas razões principais, segundo ela: primeiro porque o amor a coletividades nunca a tinha comovido; e, segundo, porque seria suspeito ela, enquanto ‘judia’, declarar amor aos judeus. “De fato, eu amo ‘apenas’ os meus amigos e o único tipo de amor que conheço e no qual acredito é o amor pelas pessoas [...] Em segundo lugar, não posso amar a mim mesma nem nada que eu saiba ser parte e parcela de minha própria pessoa”511

. Arendt reitera essa sua posição em uma entrevista concedida a uma emissora de TV alemã, em 1964, ao dizer que acredita ser politicamente estéril fundamentar uma organização mundana entre homens pelo emblema do amor512, conforme, de acordo com ela, os judeus supostamente esperavam que fosse este o sentimento que deveria unir todos os membros pertencentes ao seu povo. O amor como fundamento político de um povo ou de uma nação, nas palavras de Arendt,

508 ARENDT, H. “Compreensão e Política”. In: A Dignidade da Política, p. 39. 509 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 303.

510 ARENDT, H. “A Daughter of our People: a response to Gershom Scholem”. In: BAEHR, P. The Portable Hannah

Arendt, p. 392

511 ARENDT, H. The Jew as Pariah: jewish identity and politics in the modern age, p. 246-247. 512 ARENDT, H. Cf. “Só permanece a língua materna”. In: A Dignidade da Política, p. 138.

é fatal, desastroso, acósmico e apolítico. “Eu admito que o povo judeu é um clássico exemplo de um povo acósmico que se mantem há milhares de anos”513. Nesse sentido, Arendt continua dizendo que

em uma organização política a relação central dos homens é com o mundo, e não simplesmente relações pessoais diretas. Para ela, em uma organização política o que as pessoas têm “em comum é aquilo que ordinariamente chamamos de interesses. A relação pessoal direta, na qual podemos falar de amor, existe obviamente [...], mas, se você confunde essas coisas, se você traz o amor para a mesa de negociações, para falar sem rodeios, eu acho isso fatal”514. Pelo exposto nestes dois momentos em que Arendt relaciona os conceitos de amor e de mundo, ora em alguns testemunhos e ora em sua principal obra de teor político, é interessante que a pensadora insista na expressão “amor mundi” sem se dar ao trabalho de esclarecer precisamente o que compreende com isso. Por se tratar de Arendt, presume-se que a escolha conceitual não é mera trivialidade. É instigante que a autora persista em dizer que a relação dos homens com o mundo tenha de ser pautada pelo “amor”. Por que não “amizade mundi” ou “respeito mundi”, “por amizade ao mundo” ou “por respeito ao mundo”, já que, como discutido até aqui, ela confere papel político e mundanidade a tais sentimentos? Na década de 1950, a própria Arendt se mostra intranquila com esse tema em seu Denktagebuch ao escrever: “Amor Mundi – por que é tão difícil amar o mundo?”515

. Talvez valha a pena notar que, quando trabalha especificamente desse amor ao mundo em suas anotações de pensamentos, Arendt sempre utiliza a grafia no latim, ao passo que o sentimento usual do “amor” íntimo entre duas pessoas, ou do “amor” do fiel a Deus, ou do “amor” do cidadão a uma nação, enquanto puro sentimento, em suas obras, é grafado ou pelo “love” em inglês ou, em alemão, pelo “liebe”. Ou seja, pode-se afirmar que há um marcador que diferencia o amor

mundi de uma interpretação que o vincule simplesmente a um sentimento, como uma paixão privada e

intimista, que não poderia jamais se tornar comum a todos os homens. Por certo, então, o que Arendt entende por “amor”, nesse conceito, não pode se confundir com uma noção romantizada entre duas pessoas ou com qualquer sorte de sentimentalismo que nos remeta somente a nós mesmos ou que misture todos os homens numa indistinção patriótica cega rumo a um nacionalismo ufanista.

Grosso modo, defendo que o amor mundi arendtiano pode ser lido enquanto uma disposição

humana para a política. Parece-me claro que essa disposição continua sendo sentimental, mas sem se resumir a isso. Trata-se de algo não natural, diferentemente de um sentimento (que, para a autora, não se diferencia muito das emoções, do pathos, das paixões que afetam a alma, daquilo que nos toma,

513 ARENDT, H. Cf. “Só permanece a língua materna”. In: A Dignidade da Política, p. 138, tradução alterada. 514 ARENDT, H. Cf. “Só permanece a língua materna”. In: A Dignidade da Política, p. 138, tradução aletrada. 515 ARENDT, H. op. cit. p. 522.

como dados biológicos, a despeito de nós mesmos516), uma vez que o amor ao mundo necessita de

desenvolvimento e de cultivo regular e cotidiano. O amor mundi simboliza uma disposição própria dos homens em partilhar com os outros – de maneira discursiva e ativa – das coisas, dos fatos, dos interesses comuns e mundanos. É a disposição para um modo de vida, modo político, que se opõe frontalmente tanto à vida do filósofo ermitão quanto à vida dedicada ao consumismo que nos prende ao nosso próprio corpo. Ou seja, é sair de si mesmo, sair da “morada do ser” individual, ou do meramente biológico, em busca da ação em conjunto. Mais do que tomar o mundo como um objeto, significa se responsabilizar por ele sem nunca perder o vínculo de pertencimento que une os homens ao mundo, pois só somos humanos, só desenvolvemos uma vida humana, no sentido estrito do termo, para Arendt, se coabitamos o espaço mundano517. Nas anotações de um curso de 1963, a autora escreve:

“Amor Mundi: amor ou o máximo de dedicação possível ao mundo no qual nascemos”518

. Em suma, significa “cuidado”: cuidado com aquilo que existe antes de nós e que deve permanecer para além de nós mesmos, cuidado que se baseia pela salvaguarda em conjunto da pluralidade, do poder e da liberdade humanos. Com isso em vista, pode-se dizer que só existe política, nas palavras de Arendt, se há homens disponíveis para a ação sob o signo do cuidado com o mundo. No interior de Sobre a

Revolução, por exemplo, a fundação da liberdade por meio da constituição de um novo corpo político,

que sustenta e ao mesmo tempo é sustentado pelo poder, “o único atributo humano que se aplica exclusivamente ao entremeio mundano onde os homens se relacionam entre si”519, como no caso da

Revolução Americana, sem recorrência a nenhuma esfera além da política, é um sintoma de amor pelo mundo. Em uma nota de 1955 presente nos seus registros de pensamento, Arendt diz: “Amor mundi: aspecto do mundo que se forma como espaço-tempo na medida em que os homens existem no plural – não com os outros, não uns-perto-dos-outros, a pluralidade pura basta!”520

. E esse termo não poderia ser “amizade mundi” ou “respeito mundi”, a propósito, porque, senão, seria algo que requereria reciprocidade. Não existe amizade sem que ambas as partes concordem com o sentimento; e até o mais egoísta dos homens reconheceria que deve respeito a quem o respeita, pelo menos no sentido de respeitar aquela parte do outro que o respeita. Como diz uma frase de Nietzsche, que Arendt cita em algumas ocasiões, “quem despreza a si próprio não deixa mesmo assim de se respeitar como desprezador”521

. Enfim, com o amor é diferente. O mundo não precisaria amar o homem de volta para

516 Cf. ARENDT, H. A Vida do Espírito.

517 Cf. ARENDT, H. A Condição Humana, p. 221.

518 ARENDT, H. apud ASSY, B. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt, p. XXXVI. 519 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 228.

520 ARENDT, H. apud CORREIA, A. “Apresentação à nova edição brasileira”. In: A Condição Humana, p. XXII. 521 NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal: ou o prelúdio de uma filosofia do futuro, p.78.

que o cuidado político humano se sustente pelo e no amor mundi – podemos, sem equívocos, nesse caso, amar o que é inanimado. Todavia, é justamente pelo amor mundi humano que o próprio mundo