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e II: O mentor e amigo kantiano da garota trácia – a disputa por uma anedota

No segundo capítulo de A Vida do Espírito, com finalidade crítica e imagética, Hannah Arendt recupera a famosa anedota que conta sobre o tombo de Tales no poço: enquanto o antigo filósofo grego observava os movimentos celestes, caiu no buraco e, ao propiciar tal cena, restou-lhe apenas ouvir a consequente e inevitável gargalhada de uma camponesa trácia que o acompanhava em sua caminhada. Muito ansioso por ser conhecedor dos mistérios das coisas dos céus, a Tales “permaneciam escondidas as que se encontravam diante do seu nariz e sob os seus pés”73, teria dito a criada ao seu senhor. Essa singela historieta, ao ser relatada pela primeira vez por Platão, no diálogo Teeteto, passa a escancarar o medo secreto e enrustido dos filósofos de serem expostos ao ridículo em função de suas preocupações pouco naturalizadas ao senso comum, afinal, na frase do personagem Sócrates: “Qualquer pessoa que dedique sua vida à filosofia está vulnerável a esse tipo de escárnio (...). Toda a ralé se juntará à camponesa, rindo dele. (...) pois, em seu desamparo, ele parece um tolo”74

. Para Arendt, a seriedade com a qual Platão comenta essa atitude da “decidida e espirituosa rapariga da Trácia”75, justamente por

aquele temer “o ridículo que há em todo o riso”76, ecoou na tradição do pensamento ocidental como

uma pretensa necessidade que os filósofos têm de abandonar o campo dos assuntos humanos a fim de evitar constrangimentos públicos – mesmo que isso lhes custe o senso de humor. Assim instaurava-se, sobretudo após o evento emblemático do julgamento e da morte de Sócrates, diz a autora, uma acentuada demarcação entre o modo de vida dos homens em comunidade e o modo de vida do filósofo em solitude, este que passa a compreender o âmbito político como um hospício ao qual impor ordem77. Contudo, nessa linha de raciocínio exemplificada pelo conto sobre Tales, o mais curioso é que Arendt apresenta Kant como uma exceção a essa e várias outras posturas tradicionais que caracterizam a história da filosofia. “[...] singularmente livre de todos os vícios especificamente filosóficos [...] Kant parece ter sido um caso único entre os filósofos: revelou-se suficientemente seguro para juntar-se ao riso do homem comum”78

. A partir dessas discussões é possível colocar em disputa argumentativa algumas fronteiras significativas e ressignificativas dessa anedota, com o esclarecimento dos motivos

73 PLATAO apud HEIDEGGER, M. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais, p. 15. 74 PLATAO apud ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 101.

75 PLATAO apud HEIDEGGER, M. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais, p. 15. 76 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 101.

77 Cf. ARENDT, H. “O recente interesse pela política no pensamento filosófico europeu”. In: A dignidade da política,

p. 74.

pelos quais Arendt pode ocupar, metaforicamente, a posição da garota trácia perante a tradição filosófica, num sentido não pejorativo, ao lado de Kant e, por tabela, junto à teoria jasperiana.

Na introdução do livro The Thracian maid and the professional thinker, como o próprio título já deixa claro, Jacques Taminiaux estabelece uma criativa reconfiguração dessa estória que envolve os confins da filosofia. Ao narrar sobre a “história de uma ironia”, o autor aproxima a imagem de Tales à postura do “pensador profissional”, que também seria representada por Heidegger e, por conseguinte, demarca a posição de Arendt com bases na relação ao mesmo tempo conflituosa e irônica que ela possui com o seu mestre de Freiburg. Segundo a leitura de Taminiaux, dois pontos são fundamentais. Primeiro, o fato de que Heidegger, no curso Que é uma coisa?, ministrado em 1935 e publicado em 1962, o qual Arendt não menciona diretamente, retoma a anedota de Tales na mesma esteira da interpretação platônica, com condescendência ao personagem do filósofo “que não necessita da ‘ralé’ para informá-lo sobre sua tolice”79. E, além disso, o fato de que o eventual senso de humor arendtiano

sobre essa temática é melhor compreendido pela constatação de uma gradual alteração no trato individual da autora com Heidegger, que se alterna de uma fascinação intelectual para um sentimento subsequente de amargura80, e isso refletiria o panorama maior da autocrítica da autora com a própria atividade filosófica. Sem tornar o processo analítico dessa anedota muito rigoroso, a recepção de Taminiaux permite avançar um pouco mais nessas interconexões, para além daquilo que ele próprio delineia. Afinal, reverter as perspectivas do modo de contar a estória e colocar Arendt, enquanto uma pensadora, no lugar da outra personagem (a garota que ri), faz com que a empatia sobrevalorizada desde Platão ao personagem Tales seja deslocada à camponesa Trácia, que, ao contrário do famoso pensador de Mileto, nem nome e nem história parece possuir e cuja voz foi originalmente hostilizada pela tradição filosófica. Ora, esse exercício se reveste de importância na medida em que se percebe que uma vertente da educação filosófica de Arendt a preparou para lidar muito mais com a perspectiva da Trácia do que propriamente com a da Grécia. Isto é, não apenas o descompasso diante das teorias heideggerianas é crucial para ressignificar o papel de Arendt nesse contexto, mas também a persistente afirmação que a autora faz da defesa jasperiana de que há necessidade de comunicação filosófica com o senso comum, pois, para Jaspers, por mais claudicante que possa parecer esse contato, “é notório que não se pode filosofar sem conviver na realidade do mundo, sem fazer algo”81. Quando resenha sobre a

vida do Papa João XXIII, em Homens em Tempos Sombrios, a título de curiosidade, Arendt comenta

79 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 101.

80 Cf. TAMINIAUX, J. The Thracian maid and the professional thinker: Arendt e Heidegger, p. 02. 81 JASPERS, K. “Mi camino a la filosofía”. In: Balance y Perspectiva (discursos y ensayos), p. 239.

que foram as perguntas simples de uma “criada romana”82 que inspiraram-na a compreender e escrever

a respeito da importância política daquele personagem, que ocupara o Trono de S. Pedro de 1958 a 1963. Desse ponto de vista, se Kant é a única exceção à regra de incompreensão filosófica a respeito da serva Trácia, como afirma Arendt, é importante dizer que a legitimidade kantiana de Jaspers começa nesse aspecto. Discuto a respeito disso a seguir, para além do que realizou Taminiaux, a partir de um breve comentário sobre a utilização da anedota de Tales por parte de Heidegger.

Ao iniciar o curso Que é uma coisa?, Heidegger diz que esta antiga pergunta, repetidamente colocada no caminho fundamental do pensamento metafísico, “deve determinar-se como uma daquelas de que as criadas se riem”83

. Logo em seguida, com o pano de fundo da anedota sobre a camponesa Trácia enquanto origem histórica dessa interrogação filosófica em particular, o autor alemão adiciona o seguinte trocadilho: "E uma verdadeira criada deve ter sempre qualquer coisa de que se possa rir”84. É inevitável que pulse nesta passagem alguma coisa similar com o livro X da República e com o livro VII das Leis de Platão, nos quais a comédia e o riso são rechaçados pela seriedade da verdade filosófica, à qual caberia estabelecer os critérios para a constituição de “uma cidade bem governada”85. Isto é, nenhum desses dois pensadores profissionais citados se juntam à gargalhada da garota. Em termos mais precisos, como antecipa Taminiaux, a leitura heideggeriana da estória entre o filósofo e a pessoa comum frisa ainda mais a distância entre os personagens envolvidos, principalmente no sentido de que à sobriedade taciturna filosófica não se misturam a indiscrição e o falatório da cotidianidade. Heidegger complementa sua apresentação ao afirmar agora que a “filosofia é aquele modo de pensar [...] acerca do qual as criadas necessariamente se riem”86; e, não obstante, para evitar muitos risos com a sua

própria ironia, faz questão de finalizar assim: “Esta determinação conceitual da filosofia não é uma

mera brincadeira, mas deve ser meditada. Oportunamente, faremos bem em nos recordarmos de que,

no decurso do nosso trajeto, talvez nos aconteça cair num poço, de que não consigamos, durante muito tempo, encontrar o fundo”87. Pois bem, ainda que Heidegger contextualize sua abordagem a partir das

diferenças entre a atitude própria da mentalidade científica (que acessa seus objetos imediatamente e que está ligada ao modo de pensar cotidiano), por um lado, e a atitude própria da filosofia (que sempre opera deslocamentos e desorientações, colocando em pauta questões como “que é uma coisa?”), por

82 ARENDT, H. “Angelo Giuseppe Roncalli: um Cristão no Trono de S. Pedro de 1958 a 1963”. In: Homens em

Tempos Sombrios, p. 73.

83 HEIDEGGER, M. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais, p. 15. 84 Idem., grifo meu.

85 PLATÃO. A República, p. 469.

86 HEIDEGGER, M. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais, p. 15. 87 HEIDEGGER, M. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais, p. 15.

outro lado, restaria talvez questionar com Arendt “se a filosofia de Heidegger não tem sido geralmente levada muito a sério, simplesmente porque lida com as coisas mais sérias”88. Ao advertir sobre o perigo

de “cair no poço” que todo filosofar possui intrinsecamente à sua própria atividade, talvez Heidegger estaria admitindo, também, com autocrítica, o perigo da adesão política e ideológica por parte daqueles que filosofam. De qualquer modo, parece haver uma pequena – porém importante – distinção entre a recepção heideggeriana da anedota em questão e a precursora recepção platônica. No Teeteto, a aparente cólera de Platão inverte o sentido do gracejo da mulher comum: o que era para ser um comentário inocente, transforma-se em um insulto pessoal que se estende a uma determinada classe e, consequentemente, a estória é esvaziada do seu caráter humorístico. No caso de Heidegger não há irritação, cólera, e nem inversão de sentido do fato: a metáfora é explicada ao ser submersa nos próprios conceitos teóricos do pensador e, desse modo, o senso de humor (comum) mais original e palpável da narrativa também se perde, justamente por ser teorizado.

É importante ressaltar que quando Arendt narra essa anedota em A Vida do Espírito o que está em jogo para ela é demonstrar que há uma luta interna a todo filósofo, que se traduz em uma disputa entre pensamento e senso comum, pois é “o fato de ser ele ‘um homem como você e eu [...] que o torna consciente de estar ‘fora de ordem’ quando se empenha em pensar. Ele não está imune à opinião comum, pois, afinal, compartilha a ‘qualidade do ser comum’ [commonness] a todos os homens”89. Isto quer dizer que a mania persecutória que os filósofos têm em relação à comunidade e às mais diversas opiniões componentes do espaço público, como se fosse necessário levantar uma vigília suspeitosa perante as reais intenções da multidão de infamar e prejudicar a atividade filosófica, não encontra sustentação na realidade histórica. Do ponto de vista arendtiano, assim como do ponto de vista jasperiano, o senso comum não é, e nem será, exterior ao próprio homem que reflete filosoficamente. É por isso que a autora, ao contar a estória da garota trácia, não assume os preconceitos platônicos, pois os exercícios de pensamento político arendtiano, como ela mesma diz, não prescindem “da concretude de acontecimentos [...] e meu pressuposto é que o próprio pensamento emerge de incidentes da experiência viva e a eles deve permanecer ligado, já que são os únicos marcos por onde pode obter orientação”90

. Existe, portanto, um paralelo (que se tornará uma imbricação) entre o modo como Arendt narra uma estória e o modo como ela compreende um fenômeno político, de sorte que em ambos os casos permanece a expectativa de reconciliação dos homens com a realidade, para que se

88 ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existenz”. In: A Dignidade da Política, p. 180 (nota de rodapé 9). 89 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 100.

sintam em casa e em paz com o mundo. “Todas as mágoas são suportáveis se as colocamos em uma estória [story] ou contamos uma estória sobre elas”91 diz a epígrafe que abre o principal capítulo de A

Condição Humana e que indica o caráter narrativo, espontâneo, intersubjetivo e plural das ações

humanas, bem como a função redentora daquilo que pode ser comunicado entre os homens. Como uma boa “contadora de estórias”, ao estilo da escritora dinamarquesa Isak Dinesen (cujo significado do nome é: “aquele que ri”92), Arendt percebe que “o contar estórias revela o sentido sem cometer o erro de o definir, suscita o assentimento e a reconciliação com as coisas tais como são na realidade”93. Ou como ela diz em A Condição Humana: “Aquilo que o contador de estórias narra deve necessariamente estar oculto para o próprio ator, pelo menos enquanto este último estiver empenhado no ato ou enredado em suas consequências, pois, para o ator, a significação do ato não está na estória que dele decorre [...] não é o ator, e sim o contador de estória que percebe e ‘faz’ a estória”94. É também desse aspecto específico que a prosa filosófica de Arendt está a um mesmo tempo distante tanto de Platão quanto de Heidegger95, pois o ato de compreender em Arendt é profundamente devedor não apenas da faculdade de pensamento – esta que os filósofos tomaram como profissão –, mas também da estreita relação com as capacidades humanas da imaginação e do juízo. Diferentemente da fantasia, diz a autora, “A imaginação, ao contrário [...] ‘não passa de um novo nome para... a visão mais clara, a amplidão de espírito, / e para a Razão em seu humor mais exaltado”96. A seguinte passagem depõe sobre a leveza

do modo de pensamento, de narrativa e de compreensão por parte de Arendt:

Somente a imaginação nos permite ver as coisas em suas perspectivas próprias; só ela coloca a uma certa distância o que está próximo demais para que possamos ver e compreender sem tendências ou preconceitos; e só ela permite superar os abismos que nos separam do que é remoto, para que possamos ver e compreender tudo o que está longe demais como se fosse assunto nosso. Esse ‘distanciamento’ de algumas coisas e aproximação de outras pela superação de abismos faz parte do diálogo da compreensão, para cujas finalidades a experiência direta estabelece um contato próximo demais e o mero conhecimento ergue barreiras artificiais. Sem esse tipo de imaginação, que na verdade é compreensão, jamais seríamos capazes de nos orientar no mundo. Ela é a única bússola interna que possuímos97.

91 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 219.

92 ARENDT, H. “Isak Dinesen”. In: Homens em tempos sombrios, p. 115.

93 ARENDT, H. “Isak Dinesen”. In: Homens em tempos sombrios, p. 126. Alteração na tradução minha. 94 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 240.

95 É interessante notar que no §2 de Ser e Tempo (em um contexto diferente, portanto, mas que vale apenas a menção)

Heidegger cite O Sofista de Platão para afirmar que “o primeiro passo filosófico na compreensão do ser consiste em não contar estórias” (HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, p. 41).

96 ARENDT, H. “Compreensão e política”. In: A Dignidade da Política, p. 53, grifo meu. 97 ARENDT, H. “Compreensão e política”. In: A Dignidade da Política, p. 53, grifo meu.

Qualquer juízo de sentido retirado de uma estória deveria emergir da própria narrativa, portanto, que jamais se encerra em uma perspectiva apenas. Pois, para Arendt, política e narrativamente falando, a realidade mundana “só vem a ser se existem perspectivas; só existe como ordem de coisas mundanas se é vista ora de um jeito, ora de outro, a qualquer dado momento”98, e que, nesse contexto, dissolve-se quando apreendida somente sob um aspecto ou quando não se torna objeto de diálogo e de imaginação. “Nenhuma filosofia, nenhuma análise, nenhum aforismo, por muito profundos que sejam, podem comparar-se, na intensidade e na riqueza de sentidos, a uma história bem contada”99; ou, em outra passagem: “Todo relato feito pelos próprios atores, ainda que, em raros casos, constitua versão fidedigna de suas intenções, finalidades e motivos [...] nunca se equipara à sua estória em significância e veracidade”100. Seguindo esse raciocínio, esta tese de doutorado incide no pensamento político e

moral arendtiano sob o ângulo da filosofia da existência de Jaspers; e, nesse movimento específico, acrescenta-se aqui um novo personagem – ou um novo olhar imaginativo – à anedota-narrativa guia desses apontamentos e também ao enfoque dos estudos sobre a obra de Arendt, que seria: o professor kantiano da garota Trácia. Em algumas entrevistas publicadas e em várias correspondências distintas enviadas a Jaspers, por exemplo, a autora reitera que ele era o único professor que ela reconhecia, “o maior educador de todos os tempos”101

, alguém que, nas expressões dela, retirou-a filosófica, intelectual e paternalmente da qualidade de órfã102. Sem quaisquer possibilidades de dúvidas, o que

mais impressionava Arendt era a capacidade da razão comunicativa jasperiana, o fato de que ele se expressava “sem reservas”, com desenvoltura e liberdade hábeis para fazer do pensamento algo experimental103, sem procurar por determinados resultados, mas de modo a esclarecer os mais variados temas e objetos de exame em seus sentidos também variados.

No primeiro capítulo do texto intitulado Einführung in die Philosophie, traduzido como

Iniciação Filosófica, Jaspers é mais um dos autores que se apropriam da anedota da garota trácia ao

afirmar que a única moral dessa estória, que resta à filosofia compreender, seria: a necessidade de comunicação, sem quaisquer discriminações, com todos os homens e todas as mulheres. Em outras palavras, mesmo que diante dos valores da vida cotidiana, diante do equilíbrio do senso comum, a

98 ARENDT, H. “Introdução na política”. In: A promessa da política, p. 237.

99 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: sobre Lessing”. In: Homens em tempos sombrios, p. 33. 100 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 240.

101 KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, Carta 69. Cf. também cartas

número 140 e número 216.

102 Cf. “O que resta? Resta a língua: uma conversa com Gunter Gaus”. In: Compreender: formação, exílio e

totalitarismo, p. 52. “E, se posso dizer assim – cresci sem pai –, aquilo [a razão em Jaspers] me educou”.

filosofia não consiga justificar-se pelo espectro de sua utilidade, ainda assim não compete aos filósofos lutar para impor, provar ou demonstrar a importância do pensamento filosófico, mas, para Jaspers, a filosofia “pode comunicar-se”104. O desafio, portanto, para usar os termos arendtianos, é abandonar a torre de marfim enquanto morada do pensador profissional e compartilhar da linguagem e do diálogo com os outros. Segundo Arendt, é justamente a linguagem popular que dá início ao processo de compreensão humana, seja uma compreensão preliminar ou filosófica. O senso comum “deve sempre permanecer como conteúdo da verdadeira compreensão, para não se perder em meio às nuvens da mera especulação – um perigo sempre presente”105. Para Jaspers, a filosofia “não opõe resistência quando é repudiada, não triunfa quando é atendida. Vive equânime no fundo de humanidade que permite que todos se liguem com todos”106. Não se trata de fazer o método filosófico aprazível a todos os ouvidos,

mas, o que é diferente, realizar filosofia em comunicação. “A razão que não quer comunicar-se já não é ‘racional’”107

. Há dois pontos que merecem destaque nesses comentários entre Arendt e Jaspers. Primeiramente, a perda do senso comum atestada por Arendt em diferentes textos, sobretudo em

Compreensão e Política, desemboca na perda da capacidade mínima de compreensão entre os homens,

aí incluso os filósofos, e na completa desorientação diante dos fenômenos mundanos que não são mais subsumidos em significados gerais, o que gera uma realidade não mais diluída em nossos sentidos comuns. Isso explica por que Arendt diz, então, que “sob muitos aspectos, isso ganhou a aparência de uma crescente estupidez”108. Na ausência da atividade de julgamento, em seu modo determinante, que

nada mais é do que a subsunção de algo particular compreendido sob uma regra geral, o que ocupa o seu espaço é o que Kant “definiu com tanta eloquência como ‘estupidez’, ‘uma doença incurável’”109

. No lugar de senso comum, tem-se, em um mundo desordenado à capacidade compreensiva, estupidez em comum – “e isto não significa que se trata de um sintoma da sociedade massificada ou que as pessoas ‘inteligentes’ estejam poupadas dessa doença”110

. À postura kantiana de que não é raro encontrar, entre a erudição, homens obtusos aos quais falte o grau conveniente de juízo111, Arendt

104 JASPERS, K. Iniciação Filosófica, p. 21.

105 ARENDT, H. “Compreensão e política”. In: A Dignidade da Política, p. 43. 106 JASPERS, K. Iniciação Filosófica, p. 21.

107 ARENDT, H. “O interesse pela política no recente pensamento filosófico europeu”. In: A Dignidade da Política,