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A GÊNESE DA PREOCUPAÇÃO ARENDTIANA COM A PLURALIDADE HUMANA – AS REFLEXÕES DOS ANOS 1950 EM RETORNO À T ESE SOBRE A GOSTINHO

PARTE I: A EXISTÊNCIA POLÍTICA

CAPÍTULO 1: A GÊNESE DA PREOCUPAÇÃO ARENDTIANA COM A PLURALIDADE HUMANA – AS REFLEXÕES DOS ANOS 1950 EM RETORNO À T ESE SOBRE A GOSTINHO

Em um diálogo de correspondência com Heinrich Blücher, em 1º de agosto de 1952, Hannah Arendt questiona retoricamente ao marido se caberia a Karl Jaspers a tarefa fundamental e urgente de reestruturação da relação entre filosofia e política na contemporaneidade do pós-guerra. Ela mesma responde à indagação em sequência: “Não, Jaspers seria esmagado entre os velhos cabeças duras [die

Plattköpfe] e os embusteiros modernos”125. Ora, o questionamento arendtiano em si já denuncia o que viria a ser a maior preocupação da autora durante esse período estrutural de sua teoria política. A saber: ao ter em conta que as recentes findadas dominações totalitárias – nazista e stalinista – demonstraram o esfacelamento e a insuficiência completa dos modos tradicionais de se pensar os fenômenos políticos e os valores morais no Ocidente, como textualmente assume Arendt desde a escrita de The Origins of

Totalitarianism126, em 1951, restaria tentar compreender tais temas sem recorrer a corrimões

conceituais. Isto significa, portanto, exercitar a capacidade de compreensão a partir de um pensamento original e desdoutrinado que se desvencilhasse da tutela e do testamento filosóficos usuais. Para tanto, com efeito, seria imprescindível redefinir a importância da reflexão filosófica para os assuntos políticos à luz constante das experiências mundanas que marcaram o mundo no qual foi possível a existência do horror totalitário, por exemplo. Desse modo, com o mesmo teor da dúvida sobre o papel de Jaspers nesse projeto de pensamento político contemporâneo, porém formulada de maneira mais estendida, encontra-se a interrogação final de Arendt ao se referir sobre “o atual interesse pela política”127 por

parte da filosofia produzida na Europa durante a primeira metade do século XX. Trata-se de um texto de conferência ministrada pela autora em 1954 na American Association of Political Science, que

125 Apud YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por amor ao mundo, pág. 364. Alterações minhas.

126 No prefácio à primeira edição de Origens do Totalitarismo, Arendt já anuncia os desafios epistemológicos e

históricos que os elementos constitutivos e cristalizados na dominação totalitária deixaram como herança para os filhos do pós-guerra. Ela afirma nesse contexto: “A análise histórica e o pensamento político permitem crer, embora de modo indefinido e genérico, que a estrutura essencial de toda a civilização atingiu o ponto de ruptura [...] essa estrutura não autoriza antever a futura evolução do que resta do século XX, nem fornece explicação adequada aos seus horrores [...] Este livro [...] foi escrito com a convicção de serem passíveis de descoberta os mecanismos que dissolveram os tradicionais elementos do nosso mundo político e espiritual num amálgama, onde tudo parece ter perdido seu valor específico, escapando de nossa compreensão e tornando-se inútil para fins humanos” (op. cit., pp. 11 e 12). Essa constatação arendtiana a respeito da ruptura totalitária com todas as tradições de pensamento ocidentais pode ser remontada a textos anteriores, ainda que preparatórios, à publicação de Origens do Totalitarismo. Cf, por exemplo, Abordagens sobre o problema Alemão, de 1945, In: ARENDT, H. Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 137, em que Arendt alega que, desde o seu início, o totalitarismo originalmente não deve em nada a nenhuma tradição, seja esta católica, protestante, cristã, grega ou romana. Com isso, Arendt pretende chamar atenção para o completo caráter de novidade, sem paralelos, que os governos totais impuseram ao nosso mundo.

discutia, entre outros assuntos, em primeiro plano, a viabilidade do pensamento filosófico naqueles tempos. Arendt resume o seguinte desfecho nessa ocasião:

[...] o interesse pela política se tornou uma questão de vida ou morte para a própria filosofia [...] a filosofia política só pode nascer de um gesto original de thaumadzein, cujo impulso de curiosidade e, portanto, de questionamento agora (isto é, ao contrário dos ensinamentos dos antigos) deve se dedicar diretamente ao âmbito dos assuntos e das ações humanas. Sem dúvida, os filósofos, com seu consagrado interesse em não ser perturbados e sua experiência profissional com a solidão, não estão propriamente muito bem preparados para esse gesto. Mas,

se eles nos faltarem, quem mais haveria de conseguir?128.

Neste ensaio citado, Arendt comenta que entre os pensadores alemães como Jaspers e Martin Heidegger, ao contrário do que acontece com os nomes do existencialismo francês, o interesse pelos assuntos públicos se mostra sutil e de difícil rastreamento. Para a autora, que vinha de uma recente visita a Paris e a algumas cidades na Alemanha durante a primavera de 1952129, as principais vertentes do pensamento filosófico francês (“Malraux e Camus, de um lado, Sartre e Merleau-Ponty, de outro”130

) expressavam sentido ao engajamento ativista político na medida em que, para eles, as perplexidades filosóficas só seriam respondidas no campo da prática política. A consequência positiva dessa postura é o tratamento explícito dado às questões políticas no cerne das obras desses autores. Impulsionados pelas experiências do ambiente pós Segunda Grande Guerra, nas quais interpretam severas crises humanas no seio de civilizações bem-educadas, eles refletem uma radical separação com a filosofia acadêmica e, por conseguinte, renunciam o papel de sábio que o filósofo costuma ocupar apartado da vida comum. Por outro lado, ao focar no contexto alemão, ainda que a ruptura dos pensadores com o academicismo também esteja presente em menor grau pelo menos desde os anos vinte do século passado, Arendt diz que qualquer contribuição de Heidegger ou de Jaspers à filosofia política deveria ser procurada muito menos “nos livros ou artigos em que assumem posições explícitas diante de acontecimentos contemporâneos”131

, e mais propriamente em suas teorias filosóficas como um todo. Isto porque, para ela, a produção eminentemente teórica deles trabalha aspectos e conceitos politicamente mais importantes e ricos do que os textos de engajamento público de tais autores. Todavia, de todos esses nomes, quando se pergunta sobre quem de seus coetâneos seria um pensador

128 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In: Compreender: formação,

exílio e totalitarismo, pp. 460 e 462, grifos meus.

129 Cf. YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por amor ao mundo, pág. 339.

130 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In: Compreender: formação,

exílio e totalitarismo, p. 452.

131 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In: Compreender: formação,

minimamente hábil para erguer uma nova filosofia política, não é sem importância que apenas o nome de Jaspers seja cogitado realmente por Arendt, ainda que a resposta dela não seja positiva. Young- Bruehl comenta que “por seu turno, Karl Jaspers sabia que a filosofia deveria ser reavivada e reorientada, não cedendo mais a argumentações infrutíferas; ele tomou essa necessidade como um desafio”132

. Embora os frutos do caso específico jasperiano não fossem suficientes para alimentar todo o âmbito filosófico,como aponta a perspectiva de Arendt, importa ao desenvolvimento desta tese de doutorado discutir o quanto a autora considera que há uma aguda potência política nos estudos de seu ex-orientador a respeito do “esclarecimento da existência humana”133, precisamente por se tratar de uma existência que é realizada somente em meio à pluralidade de outros homens no mundo.

Ao introduzir suas lições sobre a Existenzphilosophie, em um curso de 1937, Jaspers afirma que o objetivo geral dessa matéria é agarrar a realidade “por meio do caminho no qual eu, em pensamento, lido comigo mesmo – em ação interior”134. Para começar a perscrutar o filosofar jasperiano, é imprescindível notar que essa “ação interior”, não relegada somente aos filósofos, é a própria prática de acesso à Existenz (Existência), este modo de ser que é pessoal e intrasferível, mas que não é empírico, uma vez que não está dado no mundo acessível aos sentidos humanos. Pelo menos desde 1931, na obra Philosophie, as reflexões de Jaspers se apresentam a partir de uma distinção entre aquilo que existe empiricamente (como os mais diversos objetos e animais; o mundo e os homens135) e aquilo que possui outras formas de existir (como a Existenz, própria a cada um de nós, homens e mulheres, que recebe esse nome para se diferenciar da “existência empírica” à qual também pertencemos enquanto criaturas aparentes). Dessa distinção vêm as noções jasperianas de “orientação no mundo” e de “existência possível”: a primeira se refere à ordem dos fatos que nos circundam, à realidade factual à qual pertencemos enquanto seres valorativos e de conhecimento; a segunda se refere a algo inobjetivo que só pode ser esclarecido e atualizado pelo pensamento humano. A enorme empresa teórica que Jaspers propõe, portanto, em resumo, tenta esclarecer o que seria esse existir não empírico dos homens. Contudo, isso não seria possível sem o exame das relações entre os dois âmbitos, pois eles não são senão na dependência um do outro. Não há acesso a uma Existenz humana isolada do mundo sensível e sem contato com o que compõe este mesmo mundo. Não é incorreto afirmar que, para Jaspers, as coordenadas iniciais através das quais se pensa a Existenz são: ela é no mundo e ela é

132 YOUNG-BRUEHL, E. Freedon and Karl Jaspers Philosophy, p. ix, tradução minha. 133 Apud ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existenz”, In: A Dignidade da Política, p. 34. 134 JASPERS, K. Philosophy of Existence, p. 03, tradução minha.

135 Jaspers nomeia esse modo de ser empírico de “Dasein”. Esse tema será retomado duranteo texto desta tese. Cf, por

com os outros136, embora ela não seja empírica, pois, sem os fatos mundanos e sem vínculo com os

outros homens, não haveria conteúdo algum para a atualização dessa personalidade existencial. Diz o autor: “Pois o homem se transforma em uma personalidade somente ao se ocupar das coisas e ao produzir algo no mundo com suas atividades e atos”137. Isso significa que a Existenz é um modo possível de ser dos homens que, somente a partir do campo de experiência mundano, encarna-se na existência empírica que nós somos – sem se confundir com esta138. O que interessa reter, no momento, é que as principais exigências empíricas que possibilitam o vislumbre e a realização do que o autor denomina por Existenz se encontram nos fatos advindos e retirados das relações humanas, isto é, da vida em distintas culturas e sociedades, das formulações e dos limites de saberes e crenças, além do “inevitável trato político”139 entre concidadãos. Para Young-Bruehl, “política, nos termos de Jaspers,

é parte da orientação no mundo, por assim dizer, na qual nós agimos no mundo. É o espaço onde a

Existenz aparece, onde os homens se encontram e se comunicam [...] onde um mundo é criado”140. Arendt, por certo, tinha plena consciência desse aspecto da filosofia jasperiana.

Na literatura secundária sobre a obra de Arendt é muito comum o reconhecimento da grandeza jasperiana como uma das fontes sustentadoras da teoria arendtiana. Como exemplos, Adriano Correia comenta de passagem que Arendt “pensava que a filosofia da comunicação de Jaspers anuncia uma profunda abertura para a dignidade da política”141

. Margaret Canovan desenvolve pontos de encontros entre os dois autores a fim de demonstrar um “existentialism politicized”142 em Arendt, cujo modo de

refletir foi “profundamente influenciado por Karl Jaspers”143

. Jerome Kohn diz que Jaspers nunca deixou de ser um mentor a Arendt, “quer concordassem ou não sobre determinada questão”144

. Gerson Brea, em seus estudos sobre Jaspers, defende que o pensamento arendtiano é também fruto da confrontação com a filosofia existencial e comunicativa jasperiana, e sugere sem desenvolvimentos posteriores: “e isso desde sua tese de doutorado sobre O conceito de amor em Santo Agostinho?”145.

As editoras de Love and Saint Augustine, Joanna Scott e Judith Stark, afirmam que na trajetória intelectual arendtiana “a orientação [de Jaspers] de afirmação da vida se sobrepõe à visão ‘rumo-à-

136 Cf. PERDIGAO, A. “A Filosofia Existencial de Karl Jaspers”. In: Análise Psicológica, p. 545. 137 JASPERS, K. Razon y Existencia, p. 118; JASPERS, K. Reason and Existenz, p. 122 e 123. 138 Cf. JASPERS, K. Filosofia, livro I, pp. 391-393.

139 JASPERS, K. Filosofia, livro I, p. 505.

140 YOUNG-BRUEHL, E. Freedon and Karl Jaspers Philosophy, p. 37.

141 CORREIA, A. Hannah Arendt e a Modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira, p. XIV. 142 CANOVAN, M. Hannah Arendt: a reinterpretation of her Political Thought, p. 190.

143 CANOVAN, M. Hannah Arendt: a reinterpretation of her Political Thought, p. 179. 144 In: ARENDT, H. Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 18.

145 BREA, G. “Amizade e comunicação: aproximações entre Karl Jaspers e Aristóteles”. In: Revista Archai: Revista

morte’ do Dasein heideggeriano”146. Todavia, em maior ou menor grau, essas constatações e insights

interpretativos são esparsos e, por assim dizer, eclipsados pelo volume de produções que abordam no detalhe a relação Arendt e Heidegger. Com isso em vista, a contribuição pretendida neste capítulo é apresentar a apropriação de sentido político que Arendt faz de Jaspers em três vieses cruciais. No primeiro tópico (1.1), ao aproximar a definição de humanidade jasperiana à progressiva centralidade teórica que a pluralidade humana passa a receber no pensamento arendtiano do pós-guerra, o que a colocaria em posse de um critério para refletir politicamente. No segundo tópico (1.2), ao voltar a discussão à estrutura e aos conceitos extraídos da tese de doutorado de Arendt, de modo a destacar como a filosofia da existência jasperiana, de feição política, cooperou para que ela encontrasse respostas a uma suposta contradição interna no conceito de amor em Agostinho. No terceiro e último tópico (1.3), ao compreender o eixo da filosofia da natalidade de Arendt enquanto pensamento radicado politicamente no tempo presente, no “agora”, assim como o filosofar existencial jasperiano.

Para voltar às reflexões arendtianas em Concern with politics in recent european philosophical

thougth, então, tal escrito está em consonância com grande parte da produção teórica arendtiana

durante a década de 1950. Logo após a publicação de Origens do Totalitarismo, Arendt se envolveu com dois projetos textuais que permaneceram inacabados, mas que deram fôlego a diversos cursos ministrados em universidades, artigos publicados em jornais e revistas, além de amparo à escrita de futuros livros, como A Condição Humana, Entre o Passado e o Futuro, e Sobre a Revolução, terminados entre 1958 e 1962. O primeiro projeto não findado dessa época procurava respostas aos motivos pelos quais o stalinismo totalitário pôde se apropriar do pensamento de Marx, e se intitulava, inicialmente, como “Elementos totalitários no Marxismo”, mas que posteriormente se desenvolveu sob a designação geral de Karl Marx e a tradição do pensamento político ocidental147. Nesse percurso,

Arendt assume como pressuposto que as obras de Marx marcariam o fim do modo tradicional de se refletir sobre a política no Ocidente e, por essa razão, para compreendê-lo seria necessário definir o seu lugar histórico na nossa tradição filosófica, iniciada desde os ensinamentos de Platão e Aristóteles – estes autores que pautaram a primazia do abandono do filósofo diante da cidade148

. Arendt se

146 SCOTT, J; STARK, J. “Jaspers, Arendt and Existenz philosophy”. In: ARENDT, H. Love and Saint Augustin, p.

198.

147 Cf. CORREIA, A. “Apresentação à nova edição brasileira”, In: ARENDT, H. A Condição Humana, pp. XX e XXI.

Cf. também KOHN, J. “Introdução”, In: A Promessa da Política, p. 07.

148 Cf. ARENDT, H. “A Tradição e a época moderna”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 43. Em resumo, quando

Marx, por exemplo, articula algumas proposições-chave que acompanham toda sua obra, desde os primeiros escritos até o último volume de O Capital, para Arendt, ele está desafiando e contradizendo conscientemente algumas verdades aceitas a partir da tradição de pensamento político ocidental. Arendt elenca e oferece como exemplos certas frases atribuídas a Marx ou presentes em suas obras aqui e ali em diversas variantes. A começar: “O trabalho criou o homem”

empenha, a partir daí, a compreender a relação usualmente combativa entre o modo de ser político e o modo de ser filosófico, isto é, em averiguar as consequências e os limites teóricos da oposição entre pensamento e ação, ou da postura do espectador ao confrontar o palco público de atores. Assim, ela já poderia concluir que “[n]ossa tradição [...] começou quando Platão descobriu que, de alguma forma, é inerente à experiência filosófica repelir o mundo ordinário dos negócios humanos; ela terminou [em Marx] quando nada restou dessa experiência senão a oposição entre pensar e agir”149

. É na esteira dessas preocupações que surge o outro projeto inconcluso da autora judia nos anos de 1950. Tratava- se de um texto a respeito do campo de experiência básico da percepção política e que versaria, entre outros temas, sobre a pluralidade, a liberdade e a ação humanas enquanto realidades e fenômenos dignos do interesse e da admiração filosóficos, ainda que para isso fosse preciso prescindir da tradição filosófica. Em suma, a proposta era comunicar às pessoas, familiarizadas ou não com o debate político, os significados mais elementares da vida pública entre-os-homens. Daí vinha o título, originalmente escrito em alemão, de Einführung in die Politik (Introdução na Política)150, cuja inspiração latente era oferecer sequência ao já publicado Einführung in die Philosophie de Jaspers, uma série de doze conferências radiofônicas pronunciadas pelo pensador alemão, em 1950, a fim de divulgar a filosofia aos mais diversos círculos sociais. Pelo menos desde as lições sobre Razão e Existência, de 1935, Jaspers explicitava que o seu modo de filosofar só se legitimaria se fosse “capaz de ser traduzido à

– que desafia o Deus tradicional, uma vez que pressupõe que não foi uma força divina que teria criado o homem, mas, sim, uma atividade humana que teria proporcionado ao homem a criação de si mesmo; que também desafia o juízo tradicional sobre o trabalho e a tradicional glorificação da razão humana, visto que o que passa a distinguir o homem dos outros animais não é mais a característica de ser definido como um animal rationale, mas como um animal laborans, ou seja, a razão perde seu estatuto de capacidade máxima e a atividade outrora desprezada, o trabalho, passa a conter a humanidade do homem em si mesma. Outra proposição: “A violência é a parteira de toda velha sociedade prenhe de uma nova”, isto é, a violência seria a parteira da História, e toda a esfera da ação política seria caracterizada pelo uso e posse de meios violentos – isso representa uma negação do logos, do discurso, como forma tradicional de relacionamento da pólis antiga e, não obstante, transpõe a violência do posto de “último recurso vergonhoso” nos assuntos públicos para o posto de elemento constituinte do Estado, este que seria o instrumento de uma classe dominante opressora e exploradora. A última frase se refere à tese final sobre Feuerbach: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”, que, em outros termos, para Arendt, quer dizer que a filosofia só pode ser abolida na sua realização – isso seria uma contradição em termos para a filosofia tradicional que, de Platão a Hegel, separa teoria, de um lado, e mundo comum, de outro lado; ou melhor, coloca o próprio plano filosófico como sendo distinto e separado da realidade comum a todos. Desse modo, portanto, “realizar a filosofia” seria um absurdo, uma vez que isso seria como identificar o senso comum que nos guia no plano real com o domínio das ideias no qual o filósofo se movimenta. Por essas questões determinantes, Arendt diz crer que a tradição de nosso pensamento político, além de um começo, também possui um fim completamente definido: fim este que viria com as teorias de Karl Marx.

149 ARENDT, H. “A Tradição e a época moderna”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 52. Complemento meu. 150 Datam desse período, por exemplo, as seguintes palestras e textos: “The problem of Action and Thought after the

French Revolution”, pronunciada na Notre Dame University em 1954, da qual foram extraídos os textos editados “Filosofia e Política” (ARENDT, H. A Dignidade da Política, p. 91) e “Sócrates” (ARENDT, H. A Promessa da Política, p. 45); History of Political Theory, de 1955; “Compreensão e Política (as dificuldades da compreensão)”; “Religião e Política”, entre outros.

realidade de muitos”151, pois “a filosofia se destina ao homem e a todos diz respeito”152. Arendt

admirava bastante a tentativa jasperiana de comunicar os assuntos filosóficos ao público leigo em geral e, não obstante, passou a acompanhá-lo na defesa de que tanto a filosofia quanto a política deviam interessar a todos os homens. Ela diz, em um discurso sobre Jaspers em 1958: “A afirmação do domínio público por parte de Jaspers é única porque vem de um filósofo e porque nasce na convicção fundamental que subjaz a toda a sua atividade de filósofo: a de que tanto a filosofia como a política