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"In-Between" - o mundo comum entre Hannah Arendt e Karl Jaspers : da existência política ao exemplo moral

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – IFCH

Igor Vinicius Basilio Nunes

“In-Between” – o mundo comum entre Hannah Arendt e Karl Jaspers: da existência política ao exemplo moral

CAMPINAS 2018

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IGOR VINICIUS BASILIO NUNES

“In-Between” – o mundo comum entre Hannah Arendt e Karl Jaspers: da existência política ao exemplo moral

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Orientadora: YARA ADARIO FRATESCHI

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO IGOR VINICIUS BASILIO NUNES, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA.YARA ADARIO FRATESCHI.

CAMPINAS 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – IFCH

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 10 de setembro de 2018, considerou o candidato Igor Vinicius Basilio Nunes aprovado.

Profa. Dra. Yara Adario Frasteschi (Presidente da Comissão Examinadora) Profa. Dra. Monique Hulshof

Profa. Dra. Bethania de Albuquerque Assy Prof. Dr. Helton Machado Adverse

Prof. Dr. José Sérgio Fonseca de Carvalho

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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DEDICATÓRIA

A Antônio José Nunes, meu pai, que, como canta a antiga moda caipira, é o “‘carreiro’ [ou bancário] que de mim fez um doutor”. E,

igualmente, a Elizabeth Batista Machado, minha mãe, que, pelo menos em meu reinado, não tem apenas o nome de rainha.

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AGRADECIMENTOS

Por cidades,

A Campinas e Barão Geraldo, agradeço pela estadia durante os sete meses iniciais do meu doutorado

e pela Unicamp – Universidade que me senti em casa desde a primeira visita (e espero continuar a visitar), muito por conta do meu feliz encontro com a professora Yara Frateschi, orientadora que conheci no dia da entrevista do processo seletivo no final do ano de 2012. Naquele dia não tive apenas uma entrevista, mas um intenso diálogo filosófico que se estenderia por todos esses anos. À Yara agradeço, portanto, o trabalho, a leitura, a parceria e a confiança empenhados e depositados em minha pesquisa. Agradeço imensamente pela pergunta imperativa em uma de nossas reuniões: “Igor, vamos ler o Jaspers?!”. Sem ela, não haveria Karl Jaspers em meus estudos. Para além do papel de professora, agradeço pelo exemplo de mulher que ela é – e se tornou para mim –, pela ação e subversão dentro do mundo acadêmico filosófico – uma pessoa em quem espero mirar na criação das minhas futuras filhas, ou filhos.

Em Campinas, agradeço também ao Grupo de Filosofia Política do IFCH, sem o qual esse texto não teria sequer estrutura digna de Tese. Agradeço a prática e a disposição de leitura que todos cultivam no grupo. É uma honra, e uma raridade, pertencer a grupos de pesquisa assim e ter o texto lido e relido por todos os colegas. Em especial, agradeço à Renata, ao Paulo e à Anita, pelas caronas, conversas, hospedagens, textos compartilhados, críticas, cervejas e amizade. Agradeço também ao Otávio, à Nathalia, ao Johnny, ao Leo e à Laissa. Agradeço também à professora Monique Hulshof, pela participação nas bancas de defesa e de qualificação deste trabalho, cuja leitura sei muito bem “meu Kant” não estar à altura. Agradeço ao trabalho e ajuda das secretárias do IFCH, especialmente Maria Rita, Daniela e Sônia.

Em Campinas, por fim, agradeço à Hulda, que me salvava de mim mesmo ao me visitar.

A São Carlos, cidade do apito do trem, cidade na qual escrevi a Introdução e a parte final da

qualificação deste trabalho, agradeço pela vista do entardecer interiorano que me inspirava do décimo andar de um apartamento gentilmente oferecido por Vanice Sargentini. Agradeço à Lívia pelas inúmeras hospedagens. Agradeço também ao Pedro, pelas conversas e pelos duetos de voz e violão.

Em São Carlos, por fim, agradeço à Hulda, pela companhia de sempre, pela revisão de todo o texto e por ter cuidado de mim.

A Berlim, onde o outono, o inverno e os corvos faziam sentir-me em um conto de Allan Poe, cidade

na qual escrevi o primeiro tópico deste trabalho, agradeço pela experiência do primeiro lar no exterior e pela belíssima biblioteca de filologia da Freie Universität. Em Berlim, agradeço a Wolfgang Heuer, pela recepção e pelas dicas de leituras. Agradeço a Kirima, pelos incentivos e pelo curso intensivo de alemão. Agradeço também à família amiga do restaurante italiano que, além de nos salvar da comida alemã, nos salvou do inverno ao oferecer carona para a estação de trem num domingo deserto e gelado.

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Em Berlim, por fim, agradeço à Hulda, que viveu comigo toda essa aventura.

A Paris, cidade que não sei dizer se é mais charmosa à noite ou pelo dia, onde escrevi sobre o amor mundi, agradeço pela experiência única de viver na majestosa Cidade Universitária Internacional e

pelo absurdo e inspirador catálogo da BNF. Em Paris, agradeço ao Pedro Labaig pela bela companhia, pelo apê emprestado durante um mês e pelo “brunch” dominical. Agradeço pela companhia de seus colegas parisienses, especialmente à Fantine. À Casa do Brasil em Paris, agradeço por ter conhecido Gui e Mari, um casal que me tocou o coração.

Em Paris, por fim, agradeço à Hulda, que viveu o sonho dela ao lado do meu.

A Goiânia, cidade natal, cerrado no qual o horizonte se põe mais avermelhado, agradeço por me

esperar e me acolher de todos os meus regressos, com cheiro de feijão, pequi, frango caipira e jiló. Em Goiânia, agradeço a todos os meus familiares, meus pais, meus irmãos, minhas avós, meus primos – meu lugar nesse mundo. À família da Hulda, pelo apoio. Agradeço ao Adriano Correia, pois sem ele não me haveria Hannah Arendt, e por sua valiosíssima participação na qualificação desta Tese. Agradeço à UFG, ao IFG e ao Instituto Santa Cruz, pelas experiências como docente nesses anos. Agradeço também aos amigos João, Thiago e Zé, pois sem eles o caminho seria mais árduo e mais sóbrio. Ao Samuel, agradeço pelas inúmeras cópias. Não poderia deixar de fazer menção ao Barack (in memoriam), fiel companheiro, encarnação do melhor amigo do homem. Em Goiânia, por fim, agradeço à Hulda, por nosso casamento.

Em Brasília, cidade das conexões, agradeço à Nádia pelo companheirismo na vida e na academia, e

por tudo o mais.

Em Belo Horizonte, de onde partiam meus “amigos azuis”, agradeço ao André por me fazer pensar

de outras perspectivas. Também em Belo Horizonte, agradeço à Marcela pelos livros do Jaspers emprestados por quase dois anos, por nossas conversas e pelo carinho de sempre.

Em São Paulo, outra cidade de conexões, agradeço à Eveline, por me reconhecer nela.

Por todo o Brasil e por algumas cidades na Argentina, agradeço pelo intenso diálogo e amizade arendtianos que travei e criei nesse período, nossos encontros deram ânimo ao meu estudo. Em particular, Lucas Barreto, Mariana Rubiano, Thiago Dias, Alexandrina, Samuel Dias, Tony, Aline Soares, Paula Hunziker, Ricardo George, Odílio Aguiar. Agradeço também à professora Bethania Assy, ao professor Helton Adverse, ao professor José Sérgio, por aceitarem participar da banca de defesa e por suas produções sobre Arendt.

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Sua vida e sua filosofia nos oferecem um

modelo do tipo de diálogo que os seres

humanos podem travar, apesar das condições

dominantes do dilúvio.

(Hannah Arendt, Dedicatória a Karl Jaspers).

Uma filosofia chega a ser objetivamente clara

somente por sua obra (escrita). Mas seu

humor e seus motes talvez se façam notar

unicamente por meio de um informe pessoal.

(Karl Jaspers, Mein Weg zur Philosophie).

Quando você for para o céu – e se as coisas lá

são tais como Sócrates as pintou, com

todos nós continuando nossas conversas, só

que agora com as melhores mentes de todos os

tempos – então, o velho Kant vai se levantar

do seu assento para honrá-lo e abraçá-lo.

Ninguém o compreendeu como você.

(Carta de Hannah Arendt a Karl Jaspers).

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RESUMO

Este trabalho reestrutura os principais conceitos políticos e morais do pensamento de Hannah Arendt ao aproximá-los argumentativamente da filosofia existencial de Karl Jaspers. A tese se divide em dois eixos que formam a sua centralidade problemática. No primeiro eixo, defendo que a formação política de Arendt, a partir dos anos de 1930, bem como a consequente criação de seus próprios termos teóricos e filosóficos na década de 1950, entram em comunicação privilegiada com as reflexões jasperianas para a definição do que representaria, para a autora, por exemplo, a existência política dos homens no mundo. Nesse contexto, destaco e desenvolvo os significados das experiências humanas e mundanas da pluralidade, da natalidade, da liberdade e as disposições afetivas envolvidas e caracterizantes do emblema político arendtiano do amor mundi. No segundo eixo, defendo que os conceitos morais utilizados por Arendt a partir de 1960, desde o julgamento e a punição do burocrata nazista Adolf Eichmann, podem ser iluminados por meio da figura pessoal de Jaspers. Assim, apresento Jaspers como um modelo exemplar nos textos arendtianos, sobretudo nos escritos em que a figura pessoal e a filosofia jasperianas aparecem vinculadas às categorias do pensamento subversivo e da mentalidade

alargada, tais como são definidas por Arendt com recorrência a Sócrates e a Kant, respectivamente.

Durante as discussões presentes nos dois eixos, faço interligações entre o âmbito da ética e o da política na teoria arendtiana, além de debater os motivos pelos quais Jaspers é um legítimo kantiano para ela. Dessa maneira, a hipótese cardeal elaborada e disposta nesta tese de doutorado é a de que, tendo em conta a comprovação do diálogo contínuo entre as filosofias de Jaspers e de Arendt – isso somado à constatação da escassa produção bibliográfica de fontes secundárias sobre esse tema –, seria possível demarcar novas perspectivas de interpretação e novos contornos de sentidos e significados às preocupações políticas e morais arendtianas. De modo geral, portanto, proponho explicar de quais maneiras e em quais medidas a teoria existencial de Jaspers preparou Arendt para os temas políticos e a provocou para imaginar exemplos éticos, sem, no entanto, fazer dela uma simples discípula dele. De modo mais específico, num primeiro momento, o trabalho rastreia a gênese da preocupação com a pluralidade humana nas obras de Arendt e, ao discutir sobre isso, revela uma semelhante noção de humanidade nas teorias de ambos os autores. Essa concepção peculiar de humanidade, por sua vez, orienta o trabalho até a tese sobre o conceito de amor em Agostinho, de Arendt, e se finca como um elemento central para interpretar esse escrito de 1929. Uma vez inserido nos temas da tese de doutorado de Arendt, sustento em sequência que as filosofias de Jaspers e de Arendt são teorias sobre o tempo presente, tempo no qual se atualizam a natalidade e a liberdade humanas, seja esta última interpretada quer pelo espectro político quer pelo espectro existencial. Num segundo momento, argumento que existe um circuito de afetos vinculado a essas filosofias que lidam com o tempo presente, com o agora, e, não obstante, discuto e repenso o termo amor mundi pela via das disposições afetivas retiradas das obras de Arendt. Por fim, num terceiro momento, o trabalho estabelece uma conexão entre as reflexões morais e políticas arendtianas: que seria o método do pensamento vicário, ou seja, o modo de pensar sobre as experiências mundanas fazendo as vezes de um “quem”, de um alguém, visitando perspectivas alheias e diversas.

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ABSTRACT

This work restructures the main political and moral concepts of Hannah Arendt's thinking by approaching them argumentatively to the existential philosophy of Karl Jaspers. The thesis is divided into two axes that form its problematic centrality. In the first axis, I argue that Arendt's political formation beginning in the 1930’s, as well as the consequent creation of her own theoretical and philosophical terms in the 1950’s, enter into a privileged communication with the Jasperian reflections for the definition of what would represent, for Arendt, for example, the political existence of men in the world. In this context, I highlight and develop the meanings of the human and worldly experiences of plurality, natality, freedom and the affective dispositions involved and characterizing the Arendtian political emblem of amor mundi. On the second axis, I argue that the moral concepts used by Arendt since 1960, from the trial and punishment of the Nazi bureaucrat Adolf Eichmann, can be enlightened through the personal figure of Jaspers. Thus, I present Jaspers as an exemplary model in the Arendtian texts, especially in the writings in which the Jasperian personal figure and philosophy appears linked to the categories of subversive thinking and the enlarged mentality, as defined by Arendt with recurrence to Socrates and Kant, respectively. During the discussions in the two axes, I make interconnections between the scope of ethics and politics in Arendtian theory, as well as discussing the reasons why Jaspers is an authentic disciple of Kant for her. In this way, the cardinal hypothesis elaborated and arranged in this doctoral thesis is that, given the proof of the continuous dialogue between the philosophies of Jaspers and Arendt – this added to the fact of the scarce bibliographical production of secondary sources on this subject –, it would be possible to demarcate new perspectives of interpretation and new contours of meanings to Arendtian political and moral concerns. In general, therefore, I propose to explain in which ways Jaspers' existential theory prepared Arendt for political subjects and provoked her to imagine ethical examples, without, however, making her a mere disciple of him. More specifically, in the first place, the work traces the genesis of concern about human plurality in Arendt's works, and in discussing it, reveals a similar notion of humanity in the theories of both authors. This peculiar conception of humanity, in its turn, guides the work up to the thesis on Arendt's concept of love in Augustine, and is considered as a central element to interpret this writing of 1929. Once inserted in the themes of the doctoral thesis of Arendt, I maintain in sequence that the philosophies of Jaspers and Arendt are theories about the present time, at which time natality and human freedom are updated, whether the latter is interpreted either by the political spectrum or by the existential spectrum. Secondly, I argue that there is a circuit of affection linked to these philosophies that deal with the present time, with the “now”, and yet I discuss and re-think the term amor mundi considering the affective dispositions taken from the works of Arendt. Finally, in a third moment, the work establishes a connection between the Arendtian moral and political reflections: which would be the method of vicarious thinking, that is, the way of thinking about worldly experiences from the perspective of a "who", of a someone, visiting different and diverse perspectives.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...p. 12

O Karl Jaspers de Hannah Arendt: do diálogo filosófico à exemplaridade moral e pessoal ... p. 12

Parte I: O terreno político da Existenz: pluralidade, natalidade, liberdade e amor mundi ... p. 19 Parte II: “Lieber Verehrtester”: o caráter exemplar do “bloco de gelo do Norte alemão”... p. 25 Partes I e II: O mentor e amigo kantiano da garota trácia – a disputa por uma anedota ... p. 34

PARTE I – AEXISTÊNCIA POLÍTICA:

(“quão bem a sua filosofia me preparou para a política”) ...p. 44 CAPÍTULO1:A GÊNESE DA PREOCUPAÇÃO ARENDTIANA COM A PLURALIDADE HUMANA – AS REFLEXÕES DOS ANOS 1950 EM RETORNO À TESE SOBRE AGOSTINHO ...p. 45

1.1: O diferencial político e filosófico da noção de “humanidade” em Karl Jaspers ... p. 53 1.1.1: O significado político de um “Período Axial” na história dos homens ... p. 69 1.1.2: A “humanidade” em Jaspers como concretização de uma ideia kantiana ... p. 81 1.2: A Filosofia da Existenz na estrutura do texto doutoral de Arendt: as situações-limite como modo de resolução de uma contradição agostiniana ... p. 98 1.3: O radical ontológico da natalidade como uma filosofia do presente ... p. 118

CAPÍTULO2:OSIGNO DO AMOR MUNDI – O FENÔMENO POLÍTICO REPENSADO PELA VIA DAS DISPOSIÇÕES HUMANAS ...p. 140

2.1: A disposição humana para a política ... p. 142 2.1.1: Dois Noés e os anéis de Natã: amizade e respeito como abertura política de amor pelo mundo interpretados nas relações teóricas e pessoais de Arendt e Jaspers ... p. 153 2.1.2: “Ser mais do que a si mesmo”: coragem, abnegação e a defesa do sensus communis.. p. 169

PARTE II – OEXEMPLO MORAL:

(“alguém que realiza a existência humana exemplarmente”) ...p. 184 CAPÍTULO3:O PENSAMENTO VICÁRIO DE/EM HANNAH ARENDT: A EXEMPLARIDADE MORAL DE

KARL JASPERS COMO AÇÃO SUBVERSIVA E COMO “MENTALIDADE ALARGADA”...p. 185

3.1: Treinar o pensamento a sair em visita do “quem” político ... p. 188 3.2: O daímon jasperiano na esteira do daímon socrático: o “dizer não” como exemplaridade ... p. 198 3.3: Kant entre Eichmann e Jaspers: mentalidade alargada versus obediência cadavérica ... p. 220 CONCLUSÃO...p. 248

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INTRODUÇÃO

O Karl Jaspers de Hannah Arendt: do diálogo filosófico à exemplaridade moral e pessoal

A disposição dos movimentos argumentativos desenvolvidos neste trabalho possui sua gênese carimbada em um conjunto de três afirmações de Hannah Arendt que dizem respeito à pessoa e à filosofia existencial de Karl Jaspers. A primeira declaração selecionada da autora salienta, logo após o fim da II Guerra, que a teoria jasperiana a preparou para interpretar politicamente os acontecimentos do mundo contemporâneo1; a segunda frase é laudatória, consiste no enaltecimento moral e exemplar que não poucas vezes, durante toda a sua vida intelectual, Arendt revela sobre o caráter de seu antigo professor; e a terceira compreende o condicionamento necessário que a pensadora estabelece à filosofia de Jaspers em relação às obras de Kant. Reúno, desse modo, uma tríade esquemática e metodológica que sustenta as duas partes estruturais desta tese de doutorado e que estão organizadas a partir dessas proposições e de suas recorrentes discussões nas produções teóricas de Arendt – amiudadas também tanto em entrevistas concedidas publicamente como em suas correspondências privadas –, mas que, a rigor, não foram elaboradas conceitualmente em uma obra específica da autora nem tratadas com sistematicidade ao longo de suas reflexões. Ainda assim, cada um dos núcleos frasais e investigativos apresentados aqui ocupa o lugar de epicentro dos problemas a seguir ordenados. Parte I do trabalho: a demonstração da vitalidade do legado jasperiano no pensamento político de Arendt, rastreado desde a juventude da pensadora, antes mesmo da assunção do partido nazista ao poder na Alemanha, até às formulações de seus termos próprios, sobretudo nas obras de 1951 a 1963, com enfoque em A Condição

Humana. Parte II do trabalho: a elevação da personalidade de Jaspers como modelo exemplar nas

concepções morais arendtianas. Característica esta que é revelada principalmente após o caso Adolf Eichmann e as subsequentes controvérsias sobre o assunto, na década de 1960, de tal modo que a diferença qualitativa de perfis concretos e singulares, de uma perspectiva ética, proporcionariam uma revisão da filosofia prática da autora com bases nas atividades mentais do julgar, do querer e do pensar. E, em ambas, Parte I e Parte II da tese: oestabelecimento de um nexo entre Arendt e Jaspers por meio de uma mútua apropriação das teorias kantianas, uma vez que os dois autores contemporâneos se utilizam, em sentidos similares e paralelos, das expressões de Kant (com e contra o filósofo de Königsberg, como no caso específico do critério da “comunicabilidade” humana) para compreenderem as relações existenciais, morais e políticas que envolvem os homens no mundo.

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A primeira das três vias interpretativas, de modo mais preciso, encontra o seu enunciado emblemático na forma de uma carta de Arendt, endereçada a Jaspers e datada de 11 de março de 1949, na qual a pensadora diz, após ter lido um artigo dele dedicado a Sólon2, o seguinte: “tornou-se muito claro para mim novamente – ainda que eu estivesse completamente não consciente disso à época –

quão bem a sua filosofia me preparou para a política”3. Em posse dessa menção autorreferente de Arendt, na Parte I deste trabalho (composta pelo capítulo 1 e capítulo 2), desmembro aspectos basilares e cruciais do pensamento existencial de Jaspers, sobretudo os divulgados em quatro obras que cobrem os anos de 1919 a 1949 (Psychologie der Weltanschauungen, Philosophie, Die Geistige Situation der

Zeit, e Vom Ursprung und Ziel der Geschichte), que fomentaram diretamente a formação política e

filosófica de sua ex-orientanda de doutorado. O ponto inicial assumido nesse contexto é de fazer dialogar a noção de “humanidade” em Jaspers com o significado político da “pluralidade humana” na teoria arendtiana – aspecto nevrálgico às concepções políticas da autora desde os anos 1950, mas que, como desenvolvo no primeiro capítulo, vem a lume inclusive durante o processo de redação da tese sobre O Conceito de amor em Santo Agostinho, finalizada e publicada por Arendt em 1929. Neste olhar retrospectivo ao trabalho doutoral arendtiano, duas outras categorias conceituais muito caras a Arendt são recuperadas em abordagem junto aos termos da psicologia de Jaspers: a natalidade e a liberdade humanas. Pretendo com isso, na passagem para o segundo capítulo deste trabalho, demonstrar que tais conceitos recebem significados políticos no interior da obra de Arendt em consonância com a proposição de disposições humanas necessárias para o convívio plural e político entre os homens. Não obstante, há um manejo teórico semelhante de ambos os autores no debate com a tradições filosóficas sobre essas disposições humanas, a ponto de as duas filosofias terem a noção de “amor” como a sua insígnia maior – seja o amor mundi arendtiano, seja o amor comunicativo jasperiano.

Nesse percurso, portanto, tem-se como horizonte apontar a lucidez com a qual tanto Arendt quanto Jaspers constatam a insuficiência de se refletir sob a tutela dos conceitos e dos padrões tradicionais, erigidos pela história do pensamento ocidental, para lidar com o ineditismo dos fenômenos políticos e dos acontecimentos que marcariam as situações culturais e espirituais do século

2 Cf. JASPERS, K. “Solon”. In: HANS. E.F. Existentialism and Humanism: three essays, pp. 19-33; cf. também

JASPERS, K. “Solon”. In: Balance y Perspectiva (discursos y ensayos), pp. 55-63. Texto escrito por Karl Jaspers em 1948 em homenagem aos oitenta anos de Alfred Weber (irmão de Max Weber e professor em Heidelberg, coetâneo de Jaspers na Universidade), originalmente publicado em Synopsis: Festgabe fur Alfred Weber, Ed: Edgar Salin, pp. 177-190. Nesse texto, em resumo, Jaspers toma a figura de Sólon como exemplar de um modo de vida político, ou de um ethos político, para se pensar a noção de liberdade na pólis grega e, consequentemente, a importância da liberdade para as democracias ocidentais. O texto será abordado de modo mais detido posteriormente nesta Tese.

3 KOHLER, L.; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, Carta 87, p. 133. Tradução e

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XX. Com isso em vista, em resumo, o primeiro exame aqui realizado acompanha o esforço intelectual arendtiano, em consonância e confronto com Jaspers, na tentativa de ressignificar a existência humana à luz do prisma de determinadas noções teóricas, com ênfase no “amor pelo mundo”, na humanidade enquanto condição política real, na capacidade livre dos homens de gerarem algo novo mundanamente e também na dignificação do pluralismo ativo e comunicacional constitutiva do espaço público.

A Parte II deste trabalho, composta pelo capítulo 3, ancora-se em uma passagem retirada do discurso fúnebre que Arendt pronunciou por ocasião da morte de Jaspers, na Universidade da Basiléia, no dia 4 de março de 1969, um dia após o enterro de seu ex-professor. Ali, na última vez que a autora comentou publicamente sobre o pensador alemão, ela expressa que Jaspers seria a “encarnação corporal” de algo que se conhece apenas enquanto conceito e ideal: “ele queria e pode ser um exemplo para os outros. Mas, por isso, eu não me refiro a escrever livros. Os livros [dele] são expressão e símbolo de um modo único de ser no mundo, de ser um homem entre homens. De vez em quando

alguém que realiza a existência humana exemplarmente emerge entre nós”4. Ressalta-se que mesmo a

um oceano Atlântico de distância, o intenso contato com Jaspers, reatado e reinventado com o fim da Segunda Grande Guerra e a consequente derrocada do hitlerismo, fez com que a refugiada judia encontrasse um “oásis” de humanismo em meio às falências das integridades individuais na realidade desértica de uma Europa devastada política e moralmente. Nesse contexto, as questões morais trabalhadas por Arendt, temática que a absorve principalmente durante os quinze últimos anos de sua vida, podem ser interpretadas a partir da exaltação da figura pessoal de Jaspers à posição de uma exemplaridade humana. Em outras palavras, Jaspers influencia e interessa às mobilizações e preocupações teóricas arendtianas não apenas enquanto um filósofo, não apenas mediante suas obras e pensamentos, mas também enquanto uma pessoa, enquanto uma aparência pública, um “cidadão do mundo” capaz de juízo e pensamento representativo, ou seja, não menos por sua biografia de vida do que por sua bibliografia filosófica produzida. A reboque dessa discussão encontra-se aqui o argumento de que os âmbitos da ética e da política em Arendt dificilmente estão em divórcio definitivo, sobretudo se analisados pela abertura da atividade humana de julgar, traduzida nesse caso por “alargamento espiritual”. Tal atividade se define como a particular capacidade de levar os demais seres humanos em conta, em potencial ou real comunicação com os outros, sempre que alguém se põe a tomar uma determinada decisão individual – tema, contudo, que fora deixado incompleto em seus desdobramentos devido à morte de Arendt, em 1975.

4 KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, p. 684. “Speech given by

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Antecipo que essa posição de leitura se coloca em contraste com a recepção dessa fase inacabada da obra de Arendt feita por alguns intérpretes, estes que estabelecem uma divisão de contornos rígidos entre a ação especificamente política e a ação moral, nos argumentos da autora. Talvez a formulação mais recorrente dessa visão interpretativa um tanto incômoda esteja no exame fenomenológico proposto por Seyla Benhabib, em Situating the Self, que confunde a justificada ausência de uma teoria ética em Arendt com uma suposta ausência de valor moral conferido à faculdade do juízo pela autora alemã5. Para Benhabib, em resumo, o peso político do juízo se confirma, nas proposições de Arendt, em detrimento do peso ético desta capacidade humana. No quarto capítulo da primeira parte de sua obra, de 1992, com o pano de fundo dos debates da filosofia prática entre neoaristotélicos e neokantianos, Benhabib se propõe a discutir, “com e contra Arendt”6, sobre os

enigmas da faculdade de julgar nos termos arendtianos. A autora turca parte de dois pontos principais em seus argumentos, um que seria crítico e outro que seria sequencial ao pensamento de Arendt: este se refere ao desenvolvimento de uma análise fenomenológica do juízo com ênfase em seu aspecto moral; aquele se refere à conjectura de que haveria uma problemática disjunção entre moralidade e política, ou “uma radical separação entre considerações morais e ação política”7

, por parte de Arendt. De todo modo, a par dessa dificuldade, é importante chamar atenção para a contramão deste último argumento, pois no mapa conceitual arendtiano, embora os critérios do cuidado humano com a moralidade sejam realmente distintos dos critérios do cuidado político, não há uma radical e nem permanente ruptura entre essas duas esferas de considerações. Nesse contexto, concordo com a posição de Bethania Assy: “Em direção contrária a vários intérpretes da obra de Arendt, que asseveram uma cisão no pensamento da autora entre a vida do espírito e as noções de ética, ação e responsabilidade [...] argumento que há uma dimensão ética fundamental na produção intelectual de Arendt pós-1960, estreitamente articulada a seus escritos políticos”8

. Ao colocar Jaspers como exemplo prático da mentalidade alargada, percebo ser possível relacionar, inclusive em suas tensões, o respeito com o self moral e o cuidado com o mundo político a partir dos textos arendtianos9, como será observado em

5 Cf. BENHABIB, S. Situating the Self: Gender, Community and Postmodernism in Contemporary Ethics.

Assume-se aqui que o intuito Assume-sequencial oferecido por Benhabib é de extrema valia não só para a discussão e compreensão da atividade do juízo nessa querela entre Arendt e Kant, mas também para a interessante apropriação que Benhabib realiza atualmente a respeito da noção de “pensamento alargado” em suas últimas obras, válida, segundo a autora, para um papel crucial de alteração procedimental daquilo que se entende tradicionalmente por princípio de universalização na ética. Cf. também BENHABIB, S. The Claims of Culture: Equality and Diversity in the Global Era, p. 142, e sobretudo capítulo 5. Do outro ponto de vista, contudo, é possível ponderar a crítica de Benhabib.

6 BENHABIB, S. Situating the Self: Gender, Community and Postmodernism in Contemporary Ethics, p. 123. 7 BENHABIB, S. Situating the Self: Gender, Community and Postmodernism in Contemporary Ethics, p. 139. 8 ASSY, B. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt, p. XXIX.

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Algumas questões de filosofia moral – texto cuja edição é de 2003 e que Benhabib provavelmente não

teve acesso antes da publicação de Situating the Self, nem esteve presente como aluna na época em que Arendt o ministrou na New School for Social Research em 1965.

Por fim, subjazem a esses dois momentos de análises, que serão realizados neste trabalho, alguns breves e despretensiosos apontamentos de Arendt sobre o fato de ser Jaspers o seguidor legítimo e “convicto de Kant”10, “o único discípulo de Kant”11, “o único sucessor que Kant teve até hoje”12.

Embora jamais desenvolvidas em seus pensamentos, as questões que se impõem diante de tais afirmações são basilares e imediatas: cumpre entender por qual ou quais motivos, segundo a autora, coube a Jaspers a sucessão genuína do intento filosófico de Kant e, além disso, por que esse testamento se daria de forma singular, exclusiva, como se nenhum outro pensador fosse merecedor do mesmo papel. Se há alguma direção privilegiada de respostas para isso, portanto, ela transita pelo exercício de desvelar o que permanece implicitamente a essas alegações. A saber, se Kant só encontrou um herdeiro teórico com o raiar do século XX, isso denota que a leitura jasperiana, para Arendt, possui algum tipo de diferencial em relação tanto às denominações pós-kantianas anteriores a Jaspers – cujo exponencial se apresenta nas vertentes tardias do “idealismo alemão” – quanto uma certa originalidade distinta do neokantismo despontado e presente nas academias alemãs na época de Arendt. Sem a pretensão de fazer uma defesa desse elogio dispensado pela pensadora ao seu ex-orientador, interessa-me simplesmente trazer à tona a visão política que Jaspers apresenta sobre a totalidade do pensamento kantiano. Eis o que chama atenção e é tão caro a Arendt: a força política do filósofo de Königsberg não se restringe aos textos que tratam especificamente sobre temas políticos, mas se espalha e se deixa entrever continuamente em seus textos considerados maiores. Segundo a autora, Jaspers reconhece isso muito bem. E essa postura jasperiana pode ser constatada em alguns dos seus comentários sobre Kant, como em Die grossen Philosophen: “Uma filosofia na qual a primeira e a última questão tratam dos homens, é uma filosofia profundamente preocupada com política [...] que aspira ensinar aos homens como ocupar o lugar atribuído a eles no universo”13. Nesse sentido, se Arendt retirou e reelaborou elementos kantianos, presentes sobretudo na Crítica da Faculdade do Juízo, em suas próprias

10 ARENDT, H. “O interesse pela política no recente pensamento filosófico europeu. In: A Dignidade da Política, p.

84. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 457. Ver também: ARENDT, H. “O que é a filosofia da existência?”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 200.

11 ARENDT, H. Lições sobre a filosofia política de Kant, p. 13.

12 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em tempos sombrios, p. 90.

13 JASPERS, K. Kant, tradução minha. Para utilizar os termos arendtianos, uma proveitosa interpretação da filosofia

política de Kant deve começar por perceber que “os ensaios que compõem On History ou a recente coletânea chamada Kant’s Political Writings não se comparam aos outros escritos kantianos quanto à qualidade e à profundidade [...] certamente não constituem uma quarta crítica” (ARENDT, H. Lições sobre a filosofia política de Kant, p. 13.).

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reflexões, há contribuição de Jaspers para o modo pouco ortodoxo como isso foi efetivado. No interior dessas discussões, não se pode perder de vista a alegação crucial de Arendt em um dos seus primeiros artigos de posição filosófica, O que é a filosofia da Existenz?, no qual ela diz que, de todos os filósofos modernos que seguiram o caminho aberto pela teoria kantiana, nenhum conseguiu dar um passo além de Kant. A autora afirma: “Na verdade [...] eles até ficaram alguns passos atrás, pois todos, com a única e grande exceção de Jaspers, em algum momento abriram mão do conceito kantiano básico da liberdade e dignidade humana”14

. A partir de fortes declarações como a selecionada acima, esta tese de doutorado se ocupa, durante as suas duas partes centrais, como pano de fundo de todos os seus três capítulos, de características do empenho teórico jasperiano fundamentais para essas interações pretendidas com Kant. Destaco cinco aspectos pelos quais Jaspers pode ser considerado um kantiano único para Arendt, sendo que cada um desses aspectos se relaciona e se remete diretamente a um conceito específico do pensamento prático arendtiano. Apenas os anuncio aqui em sequência.

Primeiro: a adição de um procedimento comunicativo e intersubjetivo à razão prática kantiana realizada por Jaspers, aqui destacada pelo diagnóstico jasperiano de que o gênero humano se tornou uma realidade política unificada e globalizada contemporaneamente – vinculo isso, então, ao fato da pluralidade humana em Arendt (tópico 1.1, especificamente o 1.1.2). Segundo: a assunção do filosofar de Jaspers como compreensão do “presente”, do “agora”, do “hoje”, do contemporâneo, o que se aproxima de uma leitura política do texto kantiano Was ist Aufklarüng – conecto esse desdobramento à noção da natalidade dos homens como radical ontológico da teoria política arendtiana (tópico 1.3). Terceiro: a tentativa de tornar público os temas filosóficos e, na mesma medida, tornar filosófico os temas públicos – tomo isso, na perspectiva de Arendt, como uma postura de ruptura com os modelos tradicionais de pensamento ocidental a partir da defesa do senso comum (parte final dessa Introdução, e também tópico 2.1.2). Quarto: a aposta de Jaspers na liberdade do homem diante do fracasso e dos limites de seus conhecimentos em relação à existência, que é inspirada na aposta de Kant, depois de ter investigado os limites do conhecimento metafísico, sobre a liberdade enquanto um postulado ao sujeito da ação prática – coloco isso em paralelo com a dignidade da política e a dignidade do homem livre nos termos de Arendt (tópico 1.3). E quinto: a defesa por parte da filosofia da Existenz de uma necessária justaposição entre teoria e prática, que seria concretizada por meio de uma vivência (um

ethos15, como o próprio Jaspers afirma) livremente escolhida e, ao mesmo tempo, filosófica, política e

14 ARENDT, H. “O que é a filosofia da existência?”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 200 15 Cf. JASPERS, K. “Mi camino a la filosofia”. In: Balance y Perspectiva (discursos y ensayos), p. 241. Cf. também:

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existencial – desenvolvo essa questão por meio da exemplaridade comunicativa e da mentalidade alargada nos termos de Arendt (tópico 3.2).

Diante disso, no modo da apresentação, este trabalho parte da procura pela voz da filosofia de Jaspers nos textos e nas obras políticas arendtianas, e caminha, enfim, para o exame da importância da pessoa de Jaspers no pensamento de cunho moral produzido pela autora. Em uma palavra: lanço luz à filosofia de Arendt com recurso à fonte existencial jasperiana. Embora a teoria de Jaspers apareça fragmentada nessas discussões, não sistematizada, não se trata de um problema grave para um autor que coloca o seu modo de “pensar” explicitamente contrário a sistemas totalizantes. Nesse contexto, o fio condutor que acompanha toda essa tese de doutorado é justamente a cronologia das publicações de Arendt. A saber, do período que pode ser entendido como pré-político da pensadora, entre o fim dos anos 1920 e início dos 1930, com atenção especial ao ensaio sobre Agostinho; passando pela formação política de Arendt nas décadas de 1940 e 1950, com destaque sobretudo à Condição Humana; até chegar ao enfoque das questões morais que, apesar de não estarem de modo algum desconectadas de seu pensamento político, são compreendidas tardiamente, entre 1960 e 1975. Durante esse trajeto, torna-se nítido que a personalidade e a filosofia de Jaspers se justapõem, ou melhor, que a concepção existencial do autor se realiza ética e politicamente nele mesmo e que, da perspectiva de Arendt, isso se daria por Jaspers ser um seguidor teórico e prático da concepção de mentalidade alargada kantiana. Em outros termos, pretendo desenvolver o que Paul Ricoeur apenas indica na abertura à edição francesa de A Condição Humana, no sentido de que “somente em K. Jaspers ela reconhece o homem cuja coragem no plano ético e no político se iguala ao poder de concentração no plano do pensamento”16. Em linhas gerais, este é o esboço apresentado nas duas partes que compõem esta tese de doutorado, intitulados respectivamente de “A Existência Política” e de “O Exemplo Moral”.

O título da tese, “In-between” – o mundo comum entre Hannah Arendt e Karl Jaspers: da

existência política ao exemplo moral, a propósito, toma de empréstimo um conceito arendtiano que

representa, para ela, o espaço que o mundo coloca entre nós, homens e mulheres, espaço que nos afasta e nos aproxima a um só tempo e que possibilita, por conseguinte, as relações políticas e éticas entre dois ou mais indivíduos. É nessa esfera mundana que são afirmadas e narradas a si e aos outros as singularidades políticas e as personalidades morais dos homens; é nessa esfera também que estórias são entrelaçadas e que as amizades políticas são constituídas. Interessa-me apresentar, de acordo com essa imagem, o mundo intersubjetivo criado e cultivado entre esses dois amigos, pensadores do século XX, cujas teorias e conceitos filosóficos se comunicam em nome desse domínio público. De maneira

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propositadamente ambígua, também utilizo dessa concepção de “espaço-entre” para sugerir que, no meio dessa relação, de modo algum encerrada apenas na intimidade dos dois envolvidos, como veremos, insere-se e pulsa um outro autor: Kant.

Parte I: O terreno político da Existenz: pluralidade, natalidade, liberdade e amor mundi

As definições de “homem” e de “humanidade” oferecidas por Jaspers em sua teoria existencial representam o ponto inicial para uma reflexão que pretende abarcar as relações entre ele e Arendt. Mesmo que o pensador alemão se expresse majoritariamente através do singular, “o homem”, o que seria um ponto negativo aos olhos de Arendt, vale ressaltar que a pluralidade humana é, para Jaspers, sempre antecipada e presente para qualquer realização individual, pessoal e existencial no mundo. Segundo ele, nenhum homem e nenhuma mulher bastam a si mesmos nem diluem o seu ser em algum tipo de conhecimento, objetivado ou não. Cada um de nós “ultrapassa o estado em que é dado a si mesmo. O homem nasce em condições novas”17

. No artigo O que é a filosofia da Existenz?, originalmente publicado por Arendt em 1946, em uma idiossincrática interpretação que mais parece um acerto de contas com as raízes de sua formação filosófica desde a década de 1920, Arendt considera que contemporaneamente somente o escopo do pensamento existencial jasperiano se abre às preocupações políticas, porquanto sua noção de Existenz, “que em Jaspers é tão somente uma outra palavra mais explícita para ser um homem”18

, faz-se dependente do convívio e da comunicação com os outros seres humanos. É justamente isso que é destacado no tópico 1.1 do primeiro capítulo deste trabalho. Isto é, a apropriação de teor político que Arendt realiza em praticamente todos os seus textos que retratam ou dialogam com a teoria jasperiana – diálogo cuja gênese se encontra na tese arendtiana sobre Agostinho. Nesse sentido, antes de trazer a público os seus estudos sobre as origens e os elementos cristalizadores do totalitarismo, em 1951, e antes de reconsiderar a condição humana moderna à luz da dignidade própria do espaço público mundano, em 1958, a autora já admitia textualmente a perspectiva de que a Existenz em Jaspers é fortemente política. Ora, apresento a partir disso uma hipótese interpretativa: durante os anos de elaboração de suas obras políticas magnas, a filosofia da existência de seu ex-professor estava reavivada e reatualizada nas leituras, nas palestras oferecidas em Universidades e nas discussões de Arendt feitas com o próprio Jaspers por correspondências ou pessoalmente, fatos que deixariam as suas marcas nos textos da autora. O primeiro

17 JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico, p. 47.

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capítulo desta tese, particularmente, apresenta a gênese do interesse arendtiano pela questão da pluralidade humana em debate prioritário com a noção de humanidade em Jaspers – por meio desse conceito jasperiano, ademais, é possível vincular as preocupações políticas inicias de Arendt em olhar retrospectivo ao seu trabalho doutoral sobre Agostinho, cujos desdobramentos são apresentados no tópico 1.2.

Que essa exposição não possa evitar uma órbita que entre em rota de colisão com algumas leituras interpretativas que aproximam Arendt de Martin Heidegger19, é um efeito colateral do próprio teor do escrito arendtiano sobre a filosofia da Existenz, bem como de outros textos dela que se situam no mesmo período, como, por exemplo, Dedicatória a Karl Jaspers, de 1948; A imagem do Inferno, de 1946; Heidegger, a Raposa, de 1953; e Karl Jaspers: uma laudatio, de 1958. Não se pode negar a relevância de que nesse conjunto de artigos, sobretudo depois do fim da Segunda Grande Guerra até meados de 1950, o trato arendtiano em relação ao seu ex-professor de Freiburg se pauta por críticas mordazes e agudas ao pensamento ontológico heideggeriano. A autora chega a afirmar que a filosofia de Heidegger seria o tipo mais genial – leia-se mais ingênuo20 – de armadilha contra a responsabilidade

política e que, ironicamente, só poderia ser levada a sério pelo perigo de corroborar a antiga hostilidade do modo de ser filosófico frente à suposta “inautenticidade” do convívio plural no domínio público. Ainda que esse criticismo arendtiano seja suavizado com o passar dos anos, como bem nota André Duarte em O pensamento à sombra da ruptura21, os elogios que a autora presta a Heidegger no texto

em homenagem ao octogésimo aniversário dele, datado de 1969, continuam carregados com a visão tragicômica dele como o exemplo moderno de uma deformação profissional típica dos filósofos, qual seja: uma queda pela tirania, a de recorrer a ditadores quando se engajam nos afazeres mundanos22.

Nesse sentido, em qualquer “duplo movimento de aproximação e distanciamento crítico”23 entre as

reflexões arendtianas e as obras heideggerianas, não se pode descuidar do fato de que, praticamente a cada censura que ela faz em relação a Heidegger, subjaz aí um elogio público a Jaspers, e vice-versa; mas quase nenhuma crítica a Jaspers significa um elogio a Heidegger. Afinal, para ela, “Jaspers não

19 Nessa linha de interpretação, mencionam-se as excelentes contribuições de: VILLA, D. Arendt and Heidegger: The

fate of the political (sobretudo o capítulo IV); DUARTE, A. O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt (In: apêndice I); CANOVAM, M. Socrates or Heidegger? Hannah Arendt’s reflections on philosophy and politics; e TAMINIAUX, J. The Thracian maid and the professional thinker: Arendt e Heidegger.

20 Cf. ARENDT, H. “Heidegger a Raposa” e nota 2 de “O que é a filosofia da existência”. In: Compreender: formação,

exílio e totalitarismo, pp. 381 e 465.

21 Cf. DUARTE, A. O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt, p. 321.

22 Cf. ARENDT, H. “Martin Heidegger faz oitenta anos”. In: Homens em tempos sombrios, p. 196. Ela diz na última

página do texto: “Pois a tendência ao tirânico pode se constatar nas teorias de quase todos os grandes pensadores (Kant é a grande exceção)”. Arendt poderia adicionar Jaspers, nessa passagem, como outra grande exceção.

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reagiu aos acontecimentos políticos desse tempo (que não previra, como ninguém os previu, e para os quais talvez estivesse ainda menos preparado do que muitas outras pessoas) nem refugiando-se na sua filosofia, nem negando o mundo, nem soçobrando na melancolia”24

. Não que Arendt não tenha restrições ou reticências também com a filosofia jasperiana, e isso precisa ser devidamente demarcado, mas o recorte temático proposto nesta tese é fazer ouvir o filósofo de Heidelberg, Jaspers, mesmo que em detrimento do contato pontual com Heidegger, e depreender disso rupturas e continuidades que Arendt estabelece com essa referência da filosofia existencial.

Para evitar confusões, não se coloca aqui a questão de medir a importância de cada tradição professoral para o conjunto do pensamento de Arendt25. No livro The Hidden philosophy of Hannah

Arendt, de certo modo, Margaret Betz faz essa comparação ao dizer que, no geral, a balança penderia

para a influência de Jaspers26. Contudo, acredito que a pensadora judia jogava concomitantemente em diferentes tabuleiros filosóficos e, justamente por isso, a sua teoria se constrói de modo independente e a partir de contrastes, sem signatário único. Todavia, tem-se em conta que as graduais divergências de perspectivas entre Jaspers e Heidegger, instigadas com o aparecimento de Ser e Tempo em 1927 e que apenas se intensificam com os anos nazistas, também são realocadas nas produções da autora. Por exemplo, no percurso metodológico da tese arendtiana sobre o conceito de amor em Agostinho é latente a pretensão da autora em discutir um modo de ser do homem que não exclua, por definição e por princípio, a autenticidade existencial contida nas relações interpessoais, na interação de cada homem com os seus próximos. Nesse sentido, inspirada por uma suposta contradição das obras agostinianas, ao tentar resolver o problema da paradoxal intenção cristã de amor ao próximo – que deve se dar entre pares no mundo concomitante ao imperativo abandono das coisas mundanas e terrestres em prol da relação do fiel com Deus –, não bastou a Arendt lançar mão unicamente da definição heideggeriana de

ser-no-mundo (In-der-Welt-sein). À autora coube também expor um rico diálogo com a filosofia do

24 ARENDT, H. Karl Jaspers: uma laudatio. In: Homens em tempos sombrios, p. 94.

25 Trata-se aqui de um problema de pesquisa similar a um dos problemas da própria Arendt em sua tese de doutorado

sobre O Conceito de amor em Santo Agostinho, uma vez que a autora se vê entre a disputa das interpretações neoplatônicas e as puramente cristãs referentes à obra agostiniana. Arendt afirma na introdução de sua tese: “À primeira vista, grosso modo, nunca pusemos aqui a questão de saber quem surge primeiro, se helenismo ou o cristianismo. As diferentes análises mostrarão não tanto quem levou a melhor, mas sim em função de quem se orientou o interesse original” (op cit., p. 12). De modo análogo, portanto, o enfoque nas influências jasperianas ao pensamento político de Arendt não representa, necessariamente, a refutação das alegadas e cabíveis influências de Heidegger à pensadora, ainda que contrastes estejam envolvidos nesse trajeto. Nesse sentido, ao apresentar o problema nesses termos, esta tese se reveste de um método ao estilo de Nietzsche: “[...] que tenho eu a ver com refutações! – mas sim, como convém num espírito positivo, para substituir o improvável pelo mais provável, e ocasionalmente um erro por outro” (NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral, p. 10).

26 BETZ-HULL, M. The Hidden philosophy of Hannah Arendt, p. 76. A autora da obra defende que o anti-solipsismo

arendtiano vem da leitura de Jaspers e Sócrates, estes que ajudaram-na a combater alguns problemas que a pensadora percebia na fenomenologia de Heidegger, embora fosse devedora deste último também.

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englobante (das Umgreifende) jasperiana que estava no prelo naquele momento, na qual o esclarecimento da multidimensionalidade do ser que nós somos abre espaço para uma autenticidade existencial do homem propositadamente distinta da concepção de Heidegger. “Através de nossas obras, nosso estranhamento oculto saiu à luz”27

, afirma Jaspers sobre a ontologia fundamental heideggeriana. Será possível retirar dessas contradições assumidas, no contexto pré-1930, a gênese das preocupações arendtianas com os conceitos de pluralidade, de natalidade e de amor mundi, que mais tarde receberiam uma feição carregadamente política nas obras teóricas da autora. É nesse diapasão que o tópico 1.2 do primeiro capítulo desta tese se constrói. Espero tornar claro que, em sua pontual interpretação de Agostinho, ao cindir a condição de ser dos homens em uma dupla origem – uma proveniente de sermos criaturas criadas por/em Deus; e outra como co-pertença ao gênero humano no mundo (generatione), pelo nascimento, em função de um passado histórico adâmico em comum – Arendt começa a conceder propostas teóricas para a vinculação semanticamente política entre o mundo, a esfera pública/comum e a natalidade humana.

Com efeito, a precoce concepção arendtiana de que o convívio entre os homens está submetido “ao constrangimento do parentesco que partilhamos [...] e ao seu irrevogável encadeamento pelo nascimento”28

, mesmo a partir de uma visão cristã, possibilitaria à pensadora a rearticulação das disposições afetivas humanas relevantes para se refletir sobre as experiências políticas. Em poucas palavras, a interação do homem com o mundo não deveria se sustentar pelo medo ou pela angústia diante da incontornável mortalidade existencial, nem tampouco pela expectação em uma vida eterna pós-mundana, mas fundamentalmente pela esperança intrínseca ao caráter da natalidade humana e pela coragem de afirmar a novidade, o imprevisível e a impresciência que subjazem à liberdade de ação e escolha dos homens. Exatamente como interpreta Adriano Correia, em uma tentativa de não ignorar o valor político/romano da contribuição teológica agostiniana, “o que Hannah Arendt encontra em Agostinho, com e contra ele, é um modo de compreensão da existência humana que desloca a centralidade da relação do homem com o mundo da mortalidade para a natalidade”29

. Todavia, é importante não ignorar também que durante esse deslocamento operado por Arendt, que se traduziria sob o signo de amor pelo mundo, a autora está em diálogo com a definição jasperiana do “amor” enquanto abertura comunicacional ao próximo, nas palavras dele, “[...] abertura total, da exclusão de

27 YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 101. 28 ARENDT, H. O Conceito de amor em Santo Agostinho, pp. 170-171.

29 CORREIA, A. “O significado político da natalidade: Arendt e Agostinho”. In: CORREIA, A (org). Hannah Arendt:

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qualquer poder ou superioridade, da liberdade (Selbstein) do outro tanto quanto da própria”30. Seja pelo

nome de “atitude entusiástica”, “comunicação”, “luta”, “amizade” ou “abertura”, é importante trazer à reflexão que desde a obra Psicologia das Visões de Mundo, publicada em 1919, o pensamento de Jaspers reveste o amor como uma força vital que perfaz a existência possível humana não apenas em um sentido transcendente, mas explicitamente em sentidos políticos e morais. Para o filósofo alemão, que nesse contexto também está em um ponto junto a Agostinho (embora suas conclusões sejam distintas), entre os afetos básicos da vida humana “o amor não reconhece instância que lhe esteja acima”31

. O amor, para Jaspers, seria o eixo principal de julgamento a respeito de como os seres humanos se singularizam em razoabilidade e convivência política e moral com os outros, mas isso não quer dizer que seja critério para justificar condutas e ações pessoais. “Por ignorarmos o que é o amor, não podemos empregá-lo para a realização de operações racionais. E, apesar disso, toda justificação racional e qualquer vida conforme à lei moral [...] nada serão se não se realizarem através do amor e no amor irão encontrar o melhor apoio”32. Tanto em Jaspers quanto em Arendt, tratar desse tema é lidar com ambivalências e paradoxos, pois, embora o amor não seja um fenômeno objetivamente mundano, ambos os autores tentam liberá-lo do ranço místico e da reclusão religiosa em prol de um simbolismo político e comum que capacite contemplar a pluralidade humana. A questão é que o amor é uma disposição humana integradora, e não segregadora ou individualizante. Não é sem isso em mente, portanto, que Arendt se utilize da filosofia jasperiana como ferramenta conceitual para compreender as disposições afetivas e espirituais humanas que são condições de possibilidade para a existência dos fenômenos políticos e que, não obstante, tenha escrito em 1957 o seguinte a Jaspers: “Eu comecei muito tarde, apenas nos últimos anos, de fato, a amar o mundo verdadeiramente. Por gratidão, quero denominar Amor Mundi meu livro sobre teorias políticas”33. Tal gesto nunca fora efetivado, uma vez que o livro apareceu sob o título de A Condição Humana, mas o mote da importância do amor pelo mundo – em certa medida tão alheio a Agostinho quanto a Heidegger – permaneceu como marca de suas reflexões. A partir disso, já no segundo capítulo deste trabalho, investigo por meio de quais disposições afetivas, nos termos arendtianos, abrimo-nos ao mundo e aos outros, por meio de quais disposições o amor pelo mundo pode ser afirmado e realizado publicamente. Ou seja, exploro a política nos termos de Arendt pelo espectro crítico da questão das disposições subjetivas que podem ser comunicadas entre os homens, daquilo que mobilizaria internamente o

30 JASPERS, K. Philosophie II, p. 467.

31 JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico, p. 91. 32 JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico, p. 91.

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engajamento em ações públicas, e, para esse intuito, estabeleço assim eventuais aproximações com a denominada “psicologia” jasperiana.

No horizonte da prioridade política que Arendt passou a conceder à vida ativa e às disposições afetivas condicionantes da existência dos homens, grosso modo, jamais se perde de vista a certificação da autora de que a sua época seria herdeira de um movimento de ruptura entre aquilo que liga o passado e o futuro. Ou seja, de que a sua realidade histórica seria determinada factualmente pela crise profunda dos modos de pensar constituídos pelas tradições greco-romanas no mundo ocidental. A pensadora indica de forma tímida em alguns trechos argumentativos, como no texto Karl Jaspers: cidadão do

mundo?, que o seu ex-orientador a antecipou nesse diagnóstico crítico da situação espiritual e política

moderna. Mas, na verdade, uma aproximação um pouco mais generosa nos detalhes, para além do que Arendt deixa entrever, revela que os termos e as referências que os dois autores utilizam são praticamente as mesmas. No início de Razão e Existência, por exemplo, a proposta jasperiana é trabalhar de que modo Kierkegaard e Nietzsche foram filósofos que promoveram, no plano do pensamento, uma verdadeira rebelião contra a tradição ao perceberem a urgência de não mais se operar com as antigas palavras e doutrinas, “pois, na realidade do homem ocidental se operou, ainda que silenciosamente, algo monstruoso: a desintegração de todas as autoridades”34. Arendt, trinta anos depois, no início de Entre o Passado e o Futuro, retoma Kierkegaard e Nietzsche e complementa essa lista de filósofos com o nome de Marx ao afirmar que esses três pensadores “são para nós como marcos indicativos de um passado que perdeu sua autoridade”35. Trata-se de uma das etapas do que Arendt denomina de esfacelamento sem precedentes das categorias tradicionais do pensamento político e moral. Algo que pode ser traduzido e medido tanto no plano intelectual quanto, sobretudo, a partir das experiências retiradas dos próprios acontecimentos mundanos. Seria o caso específico do totalitarismo, que, para ela, escaparia a quaisquer metragens compreensivas usuais, uma vez que a novidade de tal dominação é o fato acabado de que “a corrente subterrânea da história ocidental veio à luz e usurpou a dignidade de nossa tradição. Essa é a realidade em que vivemos”36

.

Esta tese acompanha, no tópico 1.3 de seu primeiro capítulo, o matiz da influência de Jaspers para esse debate que atravessa toda a obra arendtiana, com o seguinte enfoque: uma filosofia política centralizada na concepção da “natalidade humana” é, visceralmente, preocupada com a discussão do “presente”, pois não sobrevaloriza nem o futuro nem o passado, mas o instante atual, o contemporâneo,

34 JASPERS, K. Reason and Existenz: five lectures, p. 23; JASPERS, K. Razon y Existencia, p. 13.Tradução minha. 35 ARENDT, H. “A tradição e a época moderna”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 44.

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as ações do agora que fazem nascer sempre algo novo. Perante o silêncio e a lacuna de significados que desconectariam o presente do passado, Arendt assume já na epígrafe de sua primeira obra, frase retirada de um trabalho de Jaspers, que não se deve “almejar nem os que passaram nem os que virão. Importa ser do seu próprio tempo”37

. Essa tentativa de viver, pensar e compreender o próprio tempo, sobre “o que estamos fazendo” aqui e agora, envolve não apenas o grande esforço teórico arendtiano de mobilizar e ressignificar os conceitos políticos e filosóficos com os quais trabalhava, mas o esforço jasperiano de entender o homem na atualidade, pois, como o próprio autor afirma, a filosofia é levada pela “preocupação com nós mesmos, pelo homem atual”38

.

Parte II: “Lieber Verehrtester”: o caráter exemplar do “bloco de gelo do Norte alemão”

Karl Jaspers nunca foi um filósofo por formação clássica e nem pretendia ter seu nome incluído “entre aqueles que Kant, não sem ironia, chamou de Denker von Gewerbe (pensadores profissionais)”39

. Ainda que seu interesse pelos temas filosóficos o acompanhasse desde os seus anos no ginásio de humanidades em Oldenburgo40, no norte da Alemanha, cidade em que nasceu em 1883,

o jovem Jaspers não se dedicou posteriormente a um grau estudantil em filosofia, ou qualquer ciência do espírito, como ele mesmo denominava. “Minha trajetória não foi a normal dentre os professores de filosofia. Não aspirava o doutorado nesta disciplina pelo estudo de filosofia nos cursos universitários [...] e um certo temor me vedava fazer dessa área minha profissão [...] a decisão de querer ser um filósofo me parecia tão absurda como a de querer ser poeta”41. Em vez disso, ao ingressar na Universidade em 1901, decidiu pelo bacharelado em direito com vistas à carreira de advogado. Três semestres depois, insatisfeito com a jurisprudência, transferiu-se para as classes de medicina e, sem mais interrupções, formou-se como médico. Dedicando bastante tempo à prática laboratorial e clínica, então assistente em um hospital psiquiátrico em Heidelberg, a partir de 1909 já era reconhecido por

37 JASPERS, K. apud ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, epígrafe.

38 JASPERS, K. “Condiciones y possibilidades para um nuevo humanismo”. In: Balance y Perspectiva (discursos y

ensayos), p. 187.

39 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 17. Cf. também KANT, I. Crítica da Razão Pura, B871, p. 676.

40 Em relação ao seu caminho de “pesquisa filosófica, cujo o germe estava presente desde os anos de escola“

(JASPERS, K. “Texto Necrológico escrito por Karl Jaspers”. In: HERSCH, J. Karl Jaspers, p. 105), ver também JASPERS, K. “On my philosophy”. In: Existentialism from Dostoyevsky to Sartre“; e “Mi camino a la filosofia”. In: Balance y Perspectiva (discursos y ensayos), p. 237.

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suas investigações em psicopatologia42. Após doutorar-se com uma tese em psiquiatria, conseguiu

habilitação como Privatdozent em psicologia na Faculdade de Letras da Universidade de Heidelberg, em 1913. Sua chegada até à produtividade filosófica, portanto, aconteceu pela via indireta das inquirições científicas sobre a psique humana e, não obstante, seus passos não foram guiados pelo contato direto com algum mentor teórico, nem foram tão convencionais como os de muitos outros pensadores e acadêmicos ilustres que lhe eram contemporâneos, como Martim Heidegger, Heinrich Rickert, Ernst Cassirer, Franz Brentano, Edmund Husserl43, entre outros. Certamente, esse histórico mestiço de Jaspers explica um pouco da reação suspeitosa e negativa de parte do metiê filosófico alemão da época diante de sua candidatura à cátedra de filosofia em Heidelberg. Teve, afinal, de “vencer uma oposição formidável”44. Como confessa Jaspers em um texto de 1951, trinta anos após

ocupar de fato uma cadeira de filosofia: “Era inevitável que, desta maneira, entrasse em conflito com a filosofia profissional e de que em seu círculo me sentiria como um estranho e, para muitos, sigo

42 Cf. JASPERS, K. Psicopatologia Geral. Como resultado de artigos publicados em revistas e pesquisas realizadas

em grupo na Clínica Psiquiátrica de Heidelberg, da qual Jaspers fez parte entre 1908 e 1915, e com recomendação do chefe da equipe, o neuropatologista Franz Nissl, Jaspers lança a obra Allgemeine Psychopathologie (Psicopatologia Geral), em 1913. Grosso modo, apenas a título de comentário, trata-se, segundo o próprio autor, de uma visão completa dos fatos psicológicos e dos pontos de vista metodológicos multifacetados que compõem a área da psicopatologia – o estudo do homem em sua enfermidade psíquica e psiquicamente condicionada. Na época, Jaspers se sentia incomodado sobretudo com os critérios de objetividade científica impostos pelos diagnósticos psiquiátricos, no sentido de que se estabelecia prioridade às “conexões causais” mensuráveis e quantitativas que explicavam os fenômenos psíquicos a partir de leis e categorias às quais vincular e estudar os dados coletados em cada caso. “A intenção da minha obra era liberar [a psicopatologia] do pseudoconhecimento dogmático para fomentar a aberta visão investigadora [...] dos métodos e dos seus limites” (JASPERS, K. “Sobre mi filosofia”. In: Balance y Perspectiva – discursos y ensayos, p. 270, tradução minha). Nesse sentido, por um lado, Jaspers expõe (sem sistematicidade unitária) todos os sistemas de métodos e teorias desenvolvidas na área psicopatológica, sem se prender a nenhum desses sistemas; e, por outro lado, defende a importância de se contrapor a “psicologia explicativa” com ajuda da “psicologia compreensiva”. Sobre isso, cf. TEIXEIRA, J. A (org). 100 anos da ‘Psicopatologia Geral’ de Karl Jaspers; Também: HERSCH, J. Karl Jaspers, pp. 11 e 57; também: CARVALHO, J. M. Filosofia e Psicologia: o pensamento fenomenológico existencial de Karl Jaspers. BORMUTH, M. Freedom and mystery: An intellectual history of Jaspers’ General Psychopathology.

43 Embora Husserl tenha se doutorado com uma tese em matemática, a sua carreira filosófica foi abertamente

influenciada pelo contato e pelas aulas tidas com Brentano. Foi nesse contexto histórico que Jaspers conheceu as obras de Husserl, em 1909, mas, mesmo tendo aplicado o método fenomenológico para descrever as vivências dos enfermos mentais, não se considerava um discípulo da teoria fenomenológica. Como ele mesmo narra: “[...] nos encontramos pessoalmente em 1913. Como psiquiatra eu havia publicado alguns trabalhos fenomenológicos sobre ilusões sensoriais e alucinações. Husserl se inteirou de que eu estava em Gotinga e me fez um convite para que o visitasse. Fui recebido amavelmente, com lisonjeio e – para minha grande surpresa – tratado como seu discípulo. Perguntei-o, com alguma impertinência, o que era realmente a fenomenologia, porque eu não sabia com claridade. Husserl me replicou: ‘você realiza excelente fenomenologia em seus escritos. Você não precisa saber o que [a fenomenologia] é quando a realiza tão bem. Siga você adiante’. Depois disse [...] de como [se] deprimia quando lhe comparavam com Schelling; Schelling não era um filósofo para ser tomado a sério. Calei-me e mais tarde pensei: o homem maravilhoso sabe tão pouco o que é filosofia que sente como uma ofensa que seja comparado a um grande filósofo”. JASPERS, K. “Mi camino a la filosofia”. In: Balance y Perspectiva (discursos y ensayos), p. 241, tradução minha.

44 YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 79. Há um erro de cronologia nessa passagem da

obra de Elisabeth Young-Bruehl, pois a cátedra de Filosofia foi assumida por Jaspers apenas em 1921, e não em 1913 como a autora afirma. Em 1913, na verdade, como já dito, ele assume uma cadeira de Psicologia.

Referências

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