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O DISPOSITIVO DA SEXUALIDADE

No documento ILRISMAR OLIVEIRA DOS SANTOS (páginas 135-140)

3. POLÍTICAS CURRICULARES PARA A EDUCAÇÃO DO CAMPO NA

4.5 O DISPOSITIVO DA SEXUALIDADE

Vimos que os dispositivos são mecanismos que atravessam as relações dxs sujeitxs e que ninguém lhes escapa. Com efeito, isso não seria diferente no que tange a sexualidade, uma vez que a vigilância e a regulação em torno dos múltiplos comportamentos não driblam os olhos de uma sociedade que, em sua maioria, entende a heterossexualidade como um comportamento padrão e aceitável entres os indivíduos.

De acordo com Colling (2018),

A heterossexualidade compulsória consiste na exigência de que todos os sujeitos sejam heterossexuais, isto é, se apresenta como única forma considerada normal de vivência da sexualidade. Essa ordem social/sexual se estrutura através do dualismo heterossexualidade versus homossexualidade, sendo que a heterossexualidade é naturalizada e se torna compulsória (COLLING, 2018, p.45).

Ainda para o autor, a naturalização da heterossexualidade existe quando buscamos explicar as razões que levam um indivíduo a ser homossexual. Feito isso, estamos tentando dar respostas para um suposto desvio de conduta tido como antinatural.

Mesmo que não consideremos que a homossexualidade seja anormal ou patológica, cada vez que tentamos achar um momento ou ocasião que a origina, nós naturalizamos a heterossexualidade e ocultamos um dos mecanismos de produção da anormalidade, isto é, a naturalização da sexualidade (COLLING, 2018, p. 45).

Naturalização que é vista em discursos LGBTfóbicos, que suprimem e rechaçam pessoas que burlam as regras impostas pelo sistema binarista, onde mulher e homem se completam. Fora isso, xs sujeitxs são lançadxs na periferia de suas sexualidades. Ribeiro (1999) diz que

A confissão, o exame da consciência, foi o modo de colocar a sexualidade no centro da existência. O sexo, nas sociedades cristãs, tornou-se algo que era preciso examinar, vigiar, confessar e transformar em discurso. Podia-se falar de sexualidade, mas somente para proibi-la (RIBEIRO, 1999, p. 359).

Tal vigilância não cessa, não descansa, e condiciona xs jovens com sexualidades dissidentes não heteronormativas a um jogo de poder que favorece a ala conservadora da moral e os bons costumes. Para César (2017, p. 244), “a nominação e classificação dos sujeitos da sexualidade se deu a partir de uma engenharia conceitual e institucional que escrutinou os corpos e descreveu minuciosamente práticas sexuais, hierarquizando a ambos entre normais ou anormais”.

A sociedade heterossexual é a sociedade que não oprime apenas lésbicas e homossexuais, ela oprime muitos diferentes/outros, oprime todas as mulheres e muitas categorias de homens, todas e todos que estão na posição de serem dominadas(os). Para constituir uma diferença e controlá-la é um “ato de poder, uma vez que é essencialmente um ato normativo. Todos tentam mostrar o outro como diferente, mas nem todos conseguem ter sucesso a fazê-lo. Tem que ser socialmente dominante para se ter sucesso a fazê-lo” (WITTIG, 1980, p. 7-8).

Ainda para a autora,

o matriarcado não é menos heterossexual do que o patriarcado: só o gênero do opressor é que muda. Além disso, não apenas tal concepção está ainda aprisionada nas categorias de gênero (mulher e homem), mas se prende à ideia de que a capacidade de parir (biologia) é o que define uma mulher (WITTIG, s/a, p.84).

Na concepção de Wittig, quando os discursos que marcam as práticas tidas como masculinas e femininas são postos em evidência, separando as identidades, há uma concordância na construção dos mecanismos que tendem a reforçar a subalternidade do ser mulher. No entanto, Wittig desmonta e remonta essa mulher subserviente e dominada e a reconstrói livre. Nas palavras da autora,

O que é a mulher? Pânico, alarme geral para uma defesa ativa. Francamente, este é um problema que as lésbicas não têm por causa de uma mudança de perspectiva, e seria incorreto dizer que as lésbicas se associam, fazem amor, vivem com mulheres, pois "mulher" tem significado apenas em sistemas de pensamento heterossexuais e em sistemas econômicos heterossexuais. As lésbicas não são mulheres (WITTIG, 1980, p. 11).

No mais, as pessoas que borram a sociedade com a distorção entre sexo/gênero são reguladxs e manipuladxs, para que abandonem o que é controverso. Para César (2017),

No interior do dispositivo da sexualidade não se pode tolerar qualquer dubiedade na determinação do sexo, de modo que se não houver perfeita correspondência entre o sexo e uma anatomia definida, então será necessária a produção de uma verdade médica que estabeleça a correta definição. Além disso, tornou-se fundamental a constituição de hábitos e vestimentas condizentes com a condição daquilo que passou a ser entendido como o sexo verdadeiro e, por fim, a determinação da união com o sexo oposto, única e exclusiva união matrimonial, também ela a única verdadeira (CÉSAR, 2017, p. 245).

Dito isso, o primeiro ponto é que o sexo biológico deve coadunar com o corpo que ocupa; o segundo, que os elementos que adornam o corpo devem se associar, uma vez que pode parecer “estranho” um homem de brincos, saia e batom. Entendemos, neste ponto, que há um poder tremendo na genitália, que segrega e traz estereótipos aos sujeitxs. Para tanto,

recorrem-se aos discursos biológicos e médicos para fundamentarem normalizações e normatizações para os indivíduos.

Sobre esse discurso, Foucault (1982) pontua que

Não obstante, a idéia de que se deve ter um verdadeiro sexo está longe de ser dissipada. Seja qual for a opinião dos biólogos a esse respeito, encontramos, pelo menos em estado difuso, não apenas na psiquiatria, psicanálise e psicologia, mas também na opinião pública, a idéia de que entre sexo e verdade existem relações complexas, obscuras e essenciais (FOUCAULT, 1982, p. 3).

Realmente, a ideia de um sexo engessado, e que atenda às necessidades do corpo biológico, é tema de inúmeros tensionamentos que estão engendrados no controle dos corpos por meio de um sistema biopolítico. Falamos em biopolítica, neste tocante, porque o corpo e sua constituição é um ato político. De acordo com César (2017),

O que está em jogo aqui é o estabelecimento de uma cadeia causal entre sexo- gênero-desejo, na qual os corpos e sexos opostos devem se atrair e os iguais devem se afastar. Portanto, as normas sociais que estabelecem e afirmam a continuidade necessária entre sexo, gênero, prática sexual e desejo são as mesmas que produzem e proíbem as quebras nessa cadeia de nexos sistemáticos (CÉSAR, 2017, p. 246).

Colling (2018) traz que

[...] só passamos a existir enquanto sujeitos no momento em que ou outros determinam que somos homens ou mulheres. Hoje em dia, quando a gestante realiza a ultrassonografia e a profissional de saúde identifica o sexo do bebê, a partir daquele momento, sem nenhuma liberdade, o bebê passa a ter um gênero e todas as normas de gênero passam a incidir sobre aquele ser que sequer nasceu (COLLING, 2018, p. 28).

Nesta perspectiva, a sociedade impõe o gênero por meio do sexo. Depois disso, age coercitivamente sobre os sujeitos, para que desempenhem as práticas que correspondam aos corpos que ocupam. O esquema extraído do módulo do curso de Especialização em Educação, Gênero e Sexualidade, da Universidade Federal da Bahia, traz como os sujeitos devem agir de acordo com o sistema de vigilância.

Figura 24 - Sistema sexo-gênero. Ilustração: Carlos Reis.

Diante disso, notamos que o dispositivo de sexualidade vai condicionar xs sujeitxs a assumirem uma postura que não são delxs, ou seja, pessoas que não se identificam com o corpo que ocupam passam a performatizar uma identidade alheia ao seu gênero, desejo e prática sexual. Essas pessoas ficam, por vezes, “sequestradxs”, por longos anos, ao sistema de vigilância. Essa situação deixa os indivíduos em um “não-lugar”.

Segundo César (2017, p. 246), “[...] transexuais e travestis apreendidos/as no interior dos dispositivos da sexualidade e da heteronormatividade são aqueles/as que Judith Butler chama de “corpos que não pesam” [...], isto é, corpos que não valem, que não importam, e que podem ser descartados sem mais”. E esse discurso de descarte é visto de forma pungente na sociedade, seja de modo velado ou, até mesmo, explícito.

A autora continua dizendo que

[...] para que haja sujeitos inteligíveis é também preciso que haja um domínio de abjeções a serem definidas. Toda formação social depende da existência de um vasto domínio bem povoado de abjeções contra o qual ela se defende e, assim, funda sua inteligibilidade e seus limites. Em outras palavras, não haveria circunscrição de um domínio inteligível de sujeitos sem a existência de zonas povoadas por abjeções. Para Butler, aqui distintamente de Foucault, o sujeito viável é aquele que expele para o exterior a abjeção que ele porta consigo, de modo que é por meio de um ato de auto-repressão e repúdio internos, socialmente regulados e induzidos por controles e discursos reiterados, que se exteriorizaria a abjeção que funda e delimita o contorno do sujeito normal (CÉSAR, 2017, p.246).

Com efeito, César (2017) corrobora com Butler, no que concerne às abjeções dxs sujeitxs, uma vez que, para a existência do ser inteligível, é preciso estabelecer uma dicotomia do que seria “certo” e “errado” para a efetivação da comparação. No mais, são as normas que

regem as relações entre as pessoas, e a construção do “eu” sempre levará em conta uma teia de conexões que se estruturam na sociedade por meio da constante vigilância.

O ‘eu’ que cada um é encontra-se, deste modo, sempre constituído por um conjunto de normas sociais das quais ele depende em suas relações com os demais, de modo que cada um é dependente dessas normas, ao mesmo tempo em que também se pode estabelecer uma distância crítica em relação a elas, suspendendo-as, negando-as ou buscando transformá-las quando a preservação da própria existência depende dessa desconstrução normativa (CÉSAR, 2017, p.248).

Diante do que fora pontuado nesta subseção, vale sabermos como a sexualidade opera nas vivências destxs jovens do campo. Sobre isso, Vinícius, 21, disse que

Hoje eu vejo que alguns pensamentos mudaram, percebo um pouco mais de respeito, ou será que fui eu quem me impus? De não me importar? De não ligar? Porque eu falo que ninguém paga as minhas contas. Então, eu não tenho que ficar dando ouvidos para opiniões que não acrescentam em nada (VINÍCIUS, 21).

Foi perguntado a EFG, 30, o seguinte: Como você enxerga essa forma de controle sobre os corpos?

É a dominação masculina de Bourdieu. É esse patriarcado. É esse pensamento arcaico ainda, entendeu? Principalmente sobre nós, sobre nossa comunidade. Também sobre a mulher, obviamente, mas um pouco mais conosco. Esse querer controlar a forma que a gente vive, querer controlar a forma que a gente se porta na sociedade. Pra mim, que já passei por tanta coisa, eu acho pequeno, a palavra pra mim é essa...é uma coisa pequena. Eu não posso me meter na vida de outras pessoas. Eu não posso julgar outras pessoas. Eu não posso querer que outras pessoas sejam iguais a mim (EFG, 30).

Diante de tais colocações, vimos que o controle dos corpos é algo pungente no contexto campesino, e isso se faz por meio de mecanismos de disciplinamento que se voltam para a heterossexualidade compulsória. Todavia, esses discursos não dão conta de normatizarem todos os corpos, uma vez que eles resistem às normas biologizantes.

4.6 O TERRITÓRIO COMO DISPOSITIVO BIOPOLÍTICO CAMPONÊS

Como já pontuei no decorrer da dissertação, as identidades que “destoam” no ambiente campesino são alvo de vigilância e normatização dentro de um processo de abjeção e estigmatização, e isso se faz em face de uma cultura conservadora e patriarcal. Tais mecanismos de controle são frutos de um sistema que ainda imputa nos sujeitxs a ideia binarista de que sexo-gênero deve seguir a estrutura biológica do corpo.

No documento ILRISMAR OLIVEIRA DOS SANTOS (páginas 135-140)