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A SÍNDROME DA JULIETA SEM O ROMEU

No documento ILRISMAR OLIVEIRA DOS SANTOS (páginas 39-42)

Fiz o Ensino Médio em Magistério. Na época, realizei uma prova, pois seria o último ano deste ensino técnico na minha cidade. Fui aprovado, mas o meu amigo Danilo preferiu estudar o Científico, na cidade de Itabuna. Desde então, nunca mais nos vimos. A vida tem destas coisas, destas partidas ingratas e injustas.

Meu pai deixou de me obrigar a vender bananas na feira; minha mãe já trabalhava, em regime de contrato, na limpeza de uma creche. Como a cidade não oferecia muitas oportunidades de trabalho, decidi alfabetizar algumas crianças, em um espaço de minha casa, por uma mensalidade de R$ 5,00 reais. A diretora me forneceu carteiras e um velho quadro de madeira. Alfabetizava pela manhã e pela tarde; à noite, estudava o primeiro ano Magistério.

Em meados de 1999, comecei a olhar diferente para um garoto chamado Roberto. Ele tinha os olhos azuis, e me deixava estranho quando me dava um “oi”. Sondei sua vida até decidi me aproximar. Ele gostava de jogar futsal no ginásio da cidade. Então, descobri os horários, e ficava vendo-o jogar. Seu corpo suado e o odor doce que exalava, quando passava próximo a mim, inebriava-me. Pronto, já estava apaixonado de novo; e eu tinha que declarar esse amor.

Passei dois dias bolando uma maneira de falar, até que decidi por uma linda carta de amor; mas teria que ser inesquecível. Pintei em uma folha de sulfite uma trilha de árvores com folhas secas sobre o chão. Escrevi o texto da carta à parte e, junto com o desenho, levei à casa de um rapaz que fazia serviços de digitação na cidade. Ele fez o que solicitei, imprimiu o texto sobre o desenho. Pedi que colocasse a letra R no início.

Fiquei pensando em um modo de entregar a carta. Então, optei por esperá-lo sair do futsal. Por volta das 22h, deixei a escola e fui direto para uma esquina próxima à sua casa. Lá, aguardei por mais uma hora. Para minha desgraça, começou a chover. Encostei-me na parede, o que fez diminuir a chuva sobre mim. A rua estava vazia, quando ouvi alguém correndo.

Sob a chuva e os trovões que clareavam o céu, vi a forma estilizada de um corpo na penumbra dos postes. Era ele. Estava sem camisa, de short de futebol e chuteira. Não precisei gritar. Só levantei o braço e o chamei. Seu corpo estava quente e molhado; pude senti-lo ofegante. Ele sorriu para mim e perguntou o que eu fazia ali. Somente disse: “esperava por você”.

Ele sorriu meio sem jeito e perguntou o que eu queria. Então, abri a mochila e apanhei a carta. Alguns pingos de chuva caíram sobre o papel e uma parte da aquarela mostrou-se verde oliva. Nada lhe disse, somente pedi que a lesse e que me encontrasse naquele mesmo lugar, no dia seguinte. Contudo, alguém burlou o combinado, pois, no dia seguinte, somente o vazio das 2:00h da madrugada me fez companhia.

Depois de dois dias, quando cheguei ao colégio, boa parte das pessoas riam para mim. Alguns apontavam, outrxs zombavam sem modéstias. Ouvi palavras como: “a bicha quer dar para Roberto”, “Vira homem, desgraça”, “Ah, uma surra de umbigo de boi”. Tremi sem querer acreditar no que poderia ter ocorrido. Uma amiga me chamou de canto e me mostrou uma cópia da carta que havia entregado ao Roberto.

E, como diz Louro (2017),

A escola é um dos lugares mais cruéis para se viver formas não hegemônicas de sexualidade. A discriminação, o repúdio e o deboche se esgueiram e se infiltram nas piadas, no recreio, nas paredes dos banheiros, nas escolhas de parceiros e parceiras dos jogos, das brincadeiras ou dos grupos de estudo. Suas marcas nem sempre são imediatamente visíveis, como costumam ser as marcas da violência física, mas podem ser particularmente persistentes e duradouras. As violências do cotidiano, por vezes miúdas e consentidas, se diluem, se disfarçam e se propagam exponencialmente. (LOURO, 2017, p. 67)

Cópias da carta foram distribuídas na escola. Eles sabiam o que eu tinha feito. Passei por dias terríveis, e isso me faz lembrar o que pontuam Couto Junior, Pocahy e Oswald (2018, p. 68): “O “armário” não é uma simples escolha inofensiva adotada pelos jovens para manter sob sigilo determinadas sexualidades, mas é uma forma de lutar contra a “zoação” praticada em espaços fortemente marcados pelas normas regulatórias de gênero”.

Por sorte, meus pais nunca souberam. Procurei o Roberto, ele me disse que a namorada tinha encontrado a carta e feito algumas cópias, mas descobri que não. Fora ele.

Nunca entendi o porquê, mas continuei alimentando um sentimento solitário e sem retorno. Passava horas e noites em frente a uma máquina de escrever criando histórias e poemas para um amor solitário.

Comecei a segui-lo nos finais das festas, a presenteá-lo, a convidá-lo para assistir a filmes em minha casa. Era um amor que saía pelos poros, e só teve fim quando, ao conversarmos na esquina da casa dele, toquei sua genitália. Até aí, tudo bem, o clima esquentou, mas quando peguei em seu pescoço e encostei meus lábios nos dele, fui empurrado com violência, ouvindo-o dizer: “Tá louco? Pegar pode; beijar, não”.

Diante do que houve, não sabia com quem desabafar, e mais uma vez me voltei para os papéis. Escrevi um pequeno conto, com personagens fictícios de uma história real. Queria entender-me; queria buscar uma resposta para a não aceitação do beijo.

Figura 9 - Arquivo pessoal: A longa espera para a entrega da carta.

Figura 10 - Arquivo pessoal: Final do conto.

Toda a história vivida com Roberto foi escrita em uma ficção mentirosa. Em seu final, tentei aliviar meu sofrimento pela segunda vez. Não era Ingrid quem morria, era eu; sempre fui eu; eu quem perecia.

No documento ILRISMAR OLIVEIRA DOS SANTOS (páginas 39-42)