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O MEU MIDAS

No documento ILRISMAR OLIVEIRA DOS SANTOS (páginas 52-54)

No primeiro semestre de 2019, um amigo me mostrou um edital de mestrado em Ensino e Relações Étnico-Raciais, promovido pela Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB. Ele estava muito empolgado, e me animou para que construísse um projeto. Lembro- me de ter sentado em frente ao computador e pensado que falar sobre as religiões de matrizes africanas e a educação do campo seria uma excelente proposta de trabalho.

Então, construí um projeto intitulado “Desconstrução da demonização das religiões de matriz africana no contexto escolar da educação do campo”. No fundo, desejava que o meu trabalho fosse aprovado, mas tinha receio de como seria minha vida após a aprovação, pois trabalhando no interior do Prado, como ficariam as idas e vindas para Teixeira de Freitas? Então, uma parte minha queria estar dentro do mestrado, outra receava pelas dificuldades que viriam. Não antecipei nada; aguardei.

O primeiro resultado saiu e, nele, constei que fui selecionado. Meu amigo, que escreveu sobre gênero e sexualidade, não teve a mesma sorte. Ele ficou muito feliz por mim. Foram nítidas as vibrações e a boas energias vindas dele. Na realidade, este amigo sempre me motivou a buscar novos caminhos. Mas nem tudo era motivo de festa. Com a primeira aprovação, teria que passar pela entrevista, e coloquei na cabeça que não iria. Já era demasiado suficiente ter chegado na seleção do projeto.

Tomei coragem e contei para meu amigo que não iria para a segunda fase. Ele não aceitou, e disse que eu teria a obrigação de comparecer. Não sei se o destino marca as coisas ou se é alguém enviadx por uma força superior quem faz isso, mas o dia e horário da entrevista coincidiam com uma consulta médica de sua mãe. Então, como correr da entrevista, se, pela manhã, o amigo buzina em sua porta e lhe carrega?

Ele me deixou no portão da universidade. Eu estava muito tenso. Via-me na reponsabilidade de passar por conta dele. Em nenhum momento pensei na aprovação em

nome da vaidade, mas ele tinha me levado até ali, literalmente. Minha responsabilidade era grande. Tentei me acalmar, pois sabia que o “Não” já existia, teria que correr atrás do “Sim”.

Ao chegar à sala, deparei-me com três homens. Logo pensei: “Estes são os fodões que vão acabar comigo; os doutores bem informados sobre tudo”. Tinha certeza de que iria gaguejar e falar muita besteira. Mas as aparências enganam. Os homens que estavam à minha frente me trataram com respeito e cordialidade. Em nenhum momento senti-me menor.

O microfone tremia nas mãos, a sudorese invadia o corpo. Pensei que teria um troço, mas tudo aquilo passou. Ao sair da sala, meu amigo já esperava com sua mãe. No retorno a Itamaraju, disse-lhe que já tinha cumprido tudo, e que fui mal, mas que outras oportunidades viriam. Do retrovisor, ele sorriu: “Já pensou onde vai fazer sua prova de proficiência? A UESC é bacana, mas prefira UFSB”. Eu ri. “Eu não fui bem, amigo”.

No dia do resultado final, pela manhã, olhei o site da universidade por duas vezes, e nada. À tarde, ferrei no sono. Acordei por voltas das 16h e entrei no site novamente. Ao lado do meu nome estava escrito “APROVADO”. Baixei o arquivo e mandei para meu amigo. De imediato, recebi um áudio: “viaaaaadaaaaaaa, você será mestra querriiiida! Eu sabia!”.

Ainda estava tomado pelo sono, não acreditava que havia passado por todo aquele processo. Estava trabalhando em Corumbau, mas assim que cheguei a Itamaraju, meu amigo foi à minha casa. Ao abrir o portão, ele se aproximou com um sorriso tão verdadeiro que pensei: “Se algum dia pedirem para que eu defina evolução espiritual, ele me será lembrado. Direi que o bem reside em um homem alto, professor de Matemática, enfermeiro e amigo- irmão”.

Quando vi seus olhos vermelhos, tomados pelas lágrimas, sabia que chorava por ter me guiado, por ter acionado minha força motriz há tempos perdida. Ele ansiava que eu desbravasse novos mundos. Meu amigo chorou por ter sustentado sua crença em mim. Desmanchou-se por ter tido a fé que me faltava. O meu gigante chorava.

Ele foi meu Midas. Seu toque abriu as portas de um mundo mágico, onde ser desigual é que fazia sentido. Meu amigo não me fez mestrando, fez-me perceber que havia respostas para a selvageria que sofri; que a caixa de Pandora era real e poderia ser aberta por mim. Foi o modo de ele dizer que pecaminosa não fora a saia, o batom ou as bonecas usadas na tenra infância, mas a coerção de uma criança.

Neste ponto, corroboro com Borba (2015), quando diz:

O gênero é tomado como efeito de uma sofisticada maquinaria discursiva mantida por instituições como o direito, a medicina, a família, a escola, e a língua, que produzem corpos-machos e corpos-fêmeas, obscurecendo outras possibilidades de

estruturação das práticas generificadas e sexuais. Teóricos e teóricas queer têm como alvo direto de investigação e crítica a construção da heteronormatividade, ou seja, as regras que normatizam e naturalizam a heterossexualidade como modo “correto” de estruturar o desejo (BORBA, 2015, p. 96).

Com isso, pude entender que o meninx viadx e fateirx, que suprimia seus trejeitos e afetações em face de uma família conservadora, estava se libertando de muitos discursos simbólicos que o fizeram carregar uma culpa que nunca fora delx. Elx passou grande parte da infância e da adolescência se condenando por ser a abjeção de seu pai; por se sentir isoladx e constantemente insultadx na escola e no próprio lar.

Porém, aquele salto na passadeira de casa, a saia que lhe cortou a carne, o cabelo que nunca fora delx, os lábios vermelhos e todas as bonecas de argila construídas no barreiro foram seu modo de dizer quem era. Elx estabeleceu um estilo de vida que duelava com o disciplinamento imposto ao seu corpo, e, mesmo diante de todos os cerceamentos, deixou uma mensagem para sua família e amigxs: não há limites para os sonhos de uma criança viadx.

1.13 O VERDADEIRO DOUTOR FEZ O DIAGNÓSTICO

A minha primeira aula no Mestrado foi no componente curricular de Políticas Públicas. Cheguei atrasado. Quando abri a porta e vi os colegas, senti o primeiro medo. Afirmava-me que aquelas pessoas deveriam ser extremamente inteligentes; teria que analisar como me apresentaria. Não deveria parecer soberbo e nem ingênuo. Todavia, não demorou e tudo foi se tranquilizando.

À tarde, conheci o professor do componente de Arte na Diáspora. O cara era de uma extrema simpatia. Mostrou-nos que por estarmos ali nunca seríamos melhores que o outro do Ensino Superior. Fez-nos perceber que o curso só seria bem aproveitado se tivéssemos a plena certeza que estávamos ali pela vontade plena do conhecimento, e não por mostrar mais uma titulação.

Depois de uma semana, tive aula do componente de Fundamentos, que foi ministrado pelo meu professor-orientador. Antes de conhecê-lo pessoalmente, trocamos um e-mail, e tive medo de ele ser um cara que não se importaria com minhas opiniões no processo da escrita. Na primeira aula, observei-o atentamente. Tinha que saber sobre seu temperamento e modo de tratar x outrx. Não queria que fôssemos estranhos, mas também não poderia forçar nada. Teria que saber se ele era brincalhão, se gostava de bichos, se vivia em Teixeira, se preferia manter

No documento ILRISMAR OLIVEIRA DOS SANTOS (páginas 52-54)