• Nenhum resultado encontrado

Dispositivo de Análise

No documento Tese Erly Maria (páginas 116-123)

Capítulo 4 Do Dispositivo Teórico ao Dispositivo Analítico

4.4 Dispositivo de Análise

«Para ser analista do discurso é preciso ser mais que linguista», com esta afirmação, Courtine (1991, p. 157)56, se refere ao fato que a língua do analista do discurso possui singularidades que afetam tanto sua atividade como seu trabalho de interpretação, uma vez que o analista se deixa contaminar pelo funcionamento da ideologia.

Ao se analisar um discurso, é preciso refletir, portanto, sobre a natureza do material analisado via AD, já que esta possui instrumentos teóricos e metodológicos para trabalhar com objetos de análise, materiais de análise, corpora. Uma questão importante é saber que a língua não é o objeto primordial da análise, mas um pressuposto para se analisar a materialidade do discurso. E este é um ponto que o analista não pode perder de vista.

O «corpus» na AD refere-se “a um conjunto determinado de textos ou de sequências discursivas retiradas por um processo de extração ou isolamento de um campo discursivo de

56 “Vouloir analyser les discours, c'était alors vouloir faire bien plus que simple ouvre de linguiste.” Courtine, J.J. (1991) Le discours introuvable: marxisme et linguistique. Histoire, épistémologie, Langage, 13/II,153-71. Acedido em 28 de Fevereiro de 2014 em

referência” (Sargentini, 2005, p. 2). Distingue-se inicialmente o «corpus» empírico – totalidade dos discursos – objeto do estudo –, do «corpus» discursivo – sequências ou recortes discursivos. No estudo em questão, enquanto o primeiro é constituído pela totalidade dos pronunciamentos oficiais da Presidente, nos anos de 2011 e 2012, sobre o segundo recai a análise que a priori não tem seu campo delimitado, uma vez que é a postura teórica do investigador que vai definindo, à medida que processa a análise, sobre quais campos desse universo referencial discursivo ela incidirá.

No que diz respeito à constituição do «corpus» discursivo, Courtine (2009), referindo- se aos critérios usados em AD para tal, observa que eles necessitariam atender às exigências de “exaustividade, de representatividade e de homogeneidade” (p. 56). A exaustividade busca abranger todos os fatos discursivos que o analista reconheça como pertinentes ao «corpus»; a representatividade diz respeito à constatação de um fato, uma espécie de lei geral, em várias sequências; a homogeneidade liga-se ao preestabelecimento das condições de produção e aos aspectos sincrônicos ou diacrônicos dos discursos. Na prática, como observa Sargentini (2005), esse último critério, apresentou-se mais como um obstáculo à análise, e foi então abandonado, até por que:

“As bases ideológicas e historiográficas que antes encerravam as entidades discursivas em blocos homogêneos como o discurso da burguesia, o discurso dos comunistas etc., e que consideravam os discursos como definidos a priori, neutralizando o exterior discursivo, não resistem às novas reflexões que aproximam a noção de formação discursiva [...] à noção de acontecimento.” (Sargentini, 2005, pp. 2-3).

Na formação do «corpus», em obediência aos princípios da exaustividade e da representatividade, as sequências discursivas vão sendo reunidas segundo as dimensões envolvidas, estruturando-se, então, o «corpus» discursivo, constituído a partir de diversas coletas. Dessa forma, longe de ser um conjunto de «dados fechados», decorrentes de certa organização; a estruturação proposta faz do «corpus» discursivo, um «conjunto aberto de articulações» o que torna possível a constituição do «corpus», não no estado inicial do procedimento de análise, mas apenas em seu final (Courtine, 2009).

Dentro do universal de discursos passíveis de serem objetos de análise, a extração do material de análise é feita a partir do discurso político, proferido por um só locutor, alojado em uma instância oficial e ocupando uma posição legitimada. No campo referencial dos discursos que compõem o «corpus» discursivo a ser tratado, estão os recortes que aludem às vozes

enunciadas, isto é, as proposições e manifestações em que a Presidente é o sujeito da enunciação; especialmente em relação ao empoderamento feminino que enuncia como acontecimento. No espaço temporal, essas enunciações são a priori aquelas sequências proferidas pelo sujeito enunciador – a Presidente –, nos anos de 2010 – por ocasião da eleição –, 2011 e 2012, respectivamente primeiro e segundo anos de governo.

Nesse trabalho de extração, o analista do discurso não busca em seu objeto «o sentido», mas vai sempre à procura de sentidos outros, que emergem de vários lugares, que se desdobram e se transformam. Na análise, o papel do pesquisador é o de um espião que se propõe a desvendar o dito e o não dito, procurando construir (ou encontrar) uma interface entre linguagem e sociedade. A esse respeito é importante lembrar as observações de Orlandi (2001, p. 65):

“A construção desse dispositivo resulta na alteração da posição do leitor para o lugar construído pelo analista. Lugar em que se mostra a alteridade do cientista, a leitura outra que ele pode produzir. Nesse lugar, ele não reflete, mas situa, compreende [...]. Por isso é que dizemos que o analista do discurso, à diferença do hermeneuta não interpreta, ele trabalha os níveis de interpretação. Ele se coloca em uma posição deslocada que lhe permite contemplar o processo de produção de sentidos em suas condições”.

Desse ponto de vista, o analista do discurso não ocupa uma posição de neutralidade, tão cara e desejável ao enfoque positivista, mas ele se coloca como ator envolvido no processo de interpretação, que de acordo com Orlandi (2001), aparece na análise em dois momentos: ao considerar que a interpretação já é um traço constitutivo da análise, uma vez que “o sujeito que fala interpreta”, o analista deve descrever esse gesto de interpretação, o que implica em outra interpretação; ao interpretar, o analista descreve, ato esse que implica em outra interpretação para a qual é necessário introduzir um dispositivo teórico que possa fazer a mediação entre o analista e os objetos simbólicos que analisa. Esse entremeio teórico – analista/teoria/objeto – permite ao analista atravessar a superfície da língua, a literalidade do sentido, a onipotência do sujeito, chegando até à ideologia, por meio do descentramento do sujeito, do efeito metafórico, do equívoco e/ou do silenciamento.

O percurso metodológico a ser seguido na AD está intimamente ligado à questão- problema e às hipóteses de trabalho que mobilizam o pesquisador e as características do «corpus» a ser analisado. Aliás, como bem destaca Orlandi (2001, p. 63), “decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca das propriedades discursivas”. É conveniente destacar que

na seleção dos discursos referenciais que compõem o «corpus» levou-se em consideração o seu caráter de representatividade e de exaustividade em consonância aos objetivos da investigação pretendida. Deve-se ressaltar ainda que a AD não estabelece uma metodologia de análise, dadas as diversas possibilidades de utilização do arsenal teórico, contudo, podem ser encontrados parâmetros orientadores que delineiam o caminho analítico a ser seguido pelo pesquisador.

Como se faz em qualquer outro processo analítico, na AD é preciso seguir etapas para passar do texto ao discurso, do material empírico ao «corpus». Essas etapas se correlacionam, conforme se pode observar na Figura 2, formatada a partir do apresentado por Orlandi (2001, p. 77):

1ª Etapa

Passagem da Superfície Linguística para o

Texto (Discurso)

2ª Etapa

Passagem do Objeto Discursivo

para o

Formação Discursiva

3ª Etapa Processo Discursivo Formação Ideológica

Figura 2: Procedimentos da AD e suas correlações

Fonte: Orlandi, 2001, p. 77 (com adaptações de formatação)

A primeira etapa compreende a passagem da superfície linguística para o objeto discursivo. Parte-se, pois, do material bruto coletado que se quer analisar a fim de lhe dar um primeiro tratamento. No estudo em questão, arrolou-se a universalidade dos discursos, proferidos pela Presidente, nos anos de 2010 – discurso de oficialização de sua candidatura –, 2011 e 2012, já investida do cargo, totalizando-se 347 pronunciamentos. Tais discursos encontram-se publicados na integra no sítio oficial da Presidência da República57.

Feita a leitura de todo esse material, foram recortados, na superfície textual, fragmentos inscritos nas seguintes categorias/dimensões relacionadas à questão de gênero: valores e atributos, consolidação da mulher nos espaços de Poder, interpelação de gênero e em uma categoria que marca o lugar do sujeito – porta-voz das mulheres –. A Figura 3 exemplifica esse primeiro passo.

Discurso Data Valores e Atributos Porta voz das Mulheres Consolidação da Mulher nos Espaços de Poder Interpelação de Gênero 1. Cerimônia de Diplomação 01/01/2011 “É uma grande emoção, tanto do ponto de vista da minha trajetória política, como também da minha situação como mulher brasileira.”

“Esse fato rompe com os preconceitos, desafia os limites e enche de esperança um povo sofrido e, também, de orgulho as mulheres brasileiras.” Brasileiros e brasileiras “Quanto orgulho temos, os brasileiros e as brasileiras, de ver um homem do povo conduzindo o país para um momento de tão extraordinário avanço social e econômico!”

“Foi esse mesmo sentimento de mudança e avanço

que fez o povo eleger agora uma mulher presidenta, uma mulher presidenta.” 2. Compromisso Constitucional - Congresso Nacional 01/01/2011 “Para assumi-la, tenho comigo a força e o exemplo da mulher brasileira. “ “Abro meu coração para receber, neste momento, uma centelha da sua imensa energia.”

“Venho para abrir portas para que

muitas outras mulheres também possam, no futuro, ser presidentas; e para que – no dia de hoje – todas as mulheres brasileiras sintam o orgulho e a alegria de ser mulher.” “Pela decisão soberana do povo, hoje será a primeira vez que a

faixa presidencial cingirá o ombro de uma mulher.” Brasileiros e brasileiras Meu compromisso supremo – eu reitero – é honrar as mulheres, proteger os mais frágeis e governar para todos!”

“Mas mulher não é só coragem. É carinho também.”

Figura 3: Categorização dos discursos proferidos pela Presidente em 2011 e 2012 Fonte: Elaboração própria

Após esse procedimento, cuidou-se de trabalhar com a desnaturalização da relação palavra-coisa, levando-se em consideração o esquecimento número 2, – a ilusão referencial – que diz respeito à enunciação: «o que foi dito só pode ter sido dito daquela maneira». Como por exemplo, a interpelação de gênero, presente em muitos outros discursos presidenciais de

locutores distintos: senhoras e senhores – Presidente Fernando Henrique Cardoso, – companheiras e companheiros, – Presidente Lula, – moços e moças –, Presidente Itamar Franco, – e brasileiros e brasileiras, – Presidente Dilma –.

Essa etapa possibilita ao analista o início da percepção das formações discursivas, em suas múltiplas configurações, como caracterizadoras de formas específicas do dizer de um sujeito enunciador nas quais deixa transparecer aspectos que irão dominar o funcionamento discursivo em questão.

Na segunda etapa – do objeto discursivo para o processo discursivo – o analista passa a questionar sobre a relação das diversas formações discursivas com as formações ideológicas presentes no «corpus», ou ainda se há uma formação ideológica que serviu de base sobre a qual se constituíram distintas particularidades das formações discursivas. É nessa fase que se procuram os deslizamentos de sentidos, observam-se as paráfrases e polissemias e em que se articulam estrutura e acontecimento.

A terceira etapa consolida o funcionamento discursivo ligado à ideologia em que se exige do analista o papel de interpretação em relação aos jogos simbólicos nos quais os sujeitos se significam e ideologia e inconsciente podem se manifestar.

Deve-se ter presente que nenhuma interpretação ou análise é neutra. Ao coletar – recortar – e descrever os dados, o analista, de alguma forma, já está contaminando-os com sua interpretação. Assim, à medida que se procede à análise, o pesquisador vai assumindo posições perante o discurso, respaldado nos princípios e fundamentos da teoria que lhe serve de fundo, mas ciente de que a leitura que faz é uma das leituras possíveis frente ao processo de produção de sentidos.

Como proceder, então, de forma a garantir a validade científica em um trabalho de AD? Para responder a esse questionamento, é preciso considerar que:

- a validade de uma investigação diz respeito à capacidade que o método utilizado possui de direcionar a obtenção fidedigna dos objetivos propostos, isto é, se ele produz o tipo de informação perseguida –validade aparente –, e se a teoria na qual se apoia legitima os procedimentos adotados –validade teórica;

- a pesquisa, especialmente na área de ciências sociais e humanas, visa apreender representações dos indivíduos em determinada situação, que para tal fazem uso do discurso e este permite, por meio da de-superficialização, atingir contextos mais profundos, plenos – e também vazios – de significação que permitem identificar o sujeito histórico, a posição ocupada, as formações ideológicas que o constituem. Neste caso, há a confluência dos

pressupostos teóricos da AD, dos mecanismos operacionais sugeridos e a pertinência de seu uso nesse tipo de pesquisa;

- o analista do discurso, ciente de sua não neutralidade diante do objeto investigado vê-se compelido a repensar seu próprio lugar, bem como o comprometimento ético-político- ideológico que deve fundamentar seu trabalho.

Assim, a validade científica da análise efetuada repousa não na certeza dos resultados obtidos, mas nas possibilidades de suscitar questionamentos que desestabilizem as «verdades» temporárias, que ao mesmo tempo, fragilizam e enriquecem o caminhar da ciência.

Nos estudos e pesquisas sobre o discurso é mister reconhecer uma formulação específica que teve em Michel Pêcheux um de seus fundadores. Na publicação Análise Automática do Discurso, na recém-lançada revista Langages – final da década de 1960 –, organizada por Jean Dubois, Pêcheux propunha fornecer às ciências sociais um instrumento científico do qual elas andavam carentes, pois em sua visão, o «status» dessas ciências, de certa forma, ainda era pré-científico e, por outro lado, se ele pretendia lançar as bases de uma nova ciência, ela precisava de instrumental e esses instrumentos deveriam ser procurados (e reinventados) onde eles pudessem ser encontrados, nas práticas científicas já sedimentadas e ainda nas “práticas ligadas ao processo de produção” (Henry, 1997, p. 17).

Pêcheux estava certo de que esse instrumento necessário não poderia ser «criado» independentemente da teoria, pois esta teria que se apropriar do que já existia e vesti-lo com a roupagem da teoria a ser concebida. Além disso, como observa Henry (1997, p. 18), Pêcheux desejava “uma transformação da prática nas ciências sociais, uma transformação que poderia fazer desta prática um prática verdadeiramente científica.”

A análise automática do discurso marcou a primeira fase da AD pelo esforço de teorização de uma máquina estrutural-discursiva automática, tendo como apoio o método introduzido pelo linguista norte-americano, Harris (1952). Ao trabalhar a noção de formação discursiva com base na arqueologia de Foucault (2004a), Pêcheux deu passagem à segunda fase da AD e trouxe à discussão, não um método, mas uma teorização mais amadurecida, a respeito de interdiscursividade, que se revela como base para se pensar o processo discursivo.

No documento Tese Erly Maria (páginas 116-123)