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Ideologia

No documento Tese Erly Maria (páginas 92-99)

Capítulo 3 Poder, Crença e Ideologia

3.3 Ideologia

Como se lê em Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado – Notas para uma investigação de Louis Althusser (1996, p. 123), o termo ideologia aparece inicialmente na obra

Elementos de Ideologia, escrito por Cabanis, Destutt de Tracy e amigos, no início do século XIX (1801), com o propósito de elaborar uma teoria da gênese das ideias. Esses ideólogos franceses eram considerados materialistas e rechaçavam a explicação da origem espiritual das ideias, atribuindo-lhes apenas as causas naturais físicas (Chauí, 2008).

Ainda na França, o termo adquiriu um sentido pejorativo com Napoleão, que em discurso ao Conselho de Estado, em 1812, atribuiu à ideologia as desventuras pelas quais a França passava, considerando os ideólogos “tenebrosos metafísicos”, como assevera Chauí (2008, p. 30), e entendendo as ideias como ilusórias e abstratas.

No caminhar desse percurso histórico, o sentido original do termo foi em parte recuperado pelos positivistas, com o duplo significado de “atividade filosófico-científica que estuda a formação das ideias” e como “conjunto das ideias de uma época” (Chauí, 2008, p. 30- 31).

A retomada do termo por Marx, 50 anos após o seu surgimento, aparece revestida do sentido de “sistema de ideias e representações que domina a mente de um homem ou de um grupo social” (Athusser, 1996, p. 123). No entanto, o sentido ilusório atribuído ao termo por Bonaparte, não é descartado por Marx, uma vez que para ele, a ideologia é uma visão de mundo, uma construção imaginária, com diversos níveis de representação da realidade social – presente na consciência das pessoas ou instituída nas superestruturas – e fabricada por determinado poder ou ainda pela alienação da divisão do trabalho. Na concepção marxista a ideologia é um instrumento de dominação de classe à medida que essa classe dominante faz com que suas ideias passem a ser de todos, prescrevendo-lhes o que devem pensar, valorizar, sentir e fazer.

Na marcha do tempo, o termo ideologia foi se expandindo e abrangendo tudo, correndo o risco de esvaziar-se, pois conforme afirma Eagleton (1997), “qualquer palavra que abranja tudo, perde o seu valor e degenera em um só vazio” (p. 21). Assim, alguns teóricos como Foucault abandonam o termo ideologia e colocam em seu lugar o «discurso», enquanto Bourdieu a substitui por «dominação simbólica» ou «violência simbólica». Não há uma definição adequada de ideologia e o termo assume uma feição camaleônica, dependo do lugar onde aparece. Eagleton, em seu livro Ideologia. Uma introdução (1997), lista 15 definições de ideologia tão díspares como “ideias que ajudam a legitimar um poder político dominante” até “oclusão semiótica”, ressaltando que não há compatibilidades de formulações entre as múltiplas definições e mesmo entre as que podem ser compatíveis há o que o autor chama de “implicações curiosas” (p. 16).

Um dos conceitos de Ideologia, vindo da Psicologia Social, refere-se ao fato das ideologias como representações sociais, concentrarem-se em um sistema de ideias genéricas e serem usadas como justificativas ao se adotar uma posição, mais ou menos antagônica, fundada sobre valores irredutíveis e esquemas de conhecimento tidos por universais (Charaudeau, 2008). Ao se tornar mais rígida, tende a converter-se em doutrina. “Quando é fluída, permanece um simples sistema de crenças” (Charaudeau, 2008, p. 201). Quanto ao sistema de valores, na doutrina, ele se configura em um texto imutável, dogmático; na ideologia, a configuração recai sobre “a massa de discursos de geometria variável quanto à sua configuração.” (p. 201). Neste caso, como arrisca dizer Charaudeau (2008), “trata-se de um processo de ideologização que constrói um conjunto de crenças mais ou menos teorizadas sobre a atividade social e que tem por efeito discriminar as identidades sociais” (p. 201).

Na concepção de Eagleton (1997), ideologia deixa de ser uma maneira conveniente e confortável de “classificar em uma única categoria uma porção de coisas diferentes que fazemos com signo” (p. 167), ou ainda, deixa de ser uma forma de enfeixar uma rede de características sobrepostas, à falta de uma «essência» constante entre elas. É impulsionada também a perder usos tradicionais formulados em termos de «consciência» e «ideias».

Refletindo sobre uma terceira via entre pensar, de um lado, na ideologia como «ideias sem corpo» e, de outro, na ideologia como «questão de certos padrões de comportamento», Eagleton (1997) sugere pensá-la como um fenômeno «discursivo ou semiótico», não apenas considerando que «consciência» não deixa de ser uma forma efetiva de prática discursiva, mas, sobretudo, preservando o sentido de que ela remete essencialmente a «significados», ao mesmo tempo em que enfatiza sua materialidade no campo dos signos e discursos.

Zizëk (1996) observa que a ideologia aparece quando se tenta evitá-la e se esconde quando se pensa encontrá-la, uma vez que ela “pode designar qualquer coisa, desde uma atitude contemplativa [...] até um conjunto de crenças voltado para a ação” (p. 9). Nesse último sentido reside imanente a noção de doutrina, que se destina, na aparência, ao convencimento de uma verdade, mas na essência está servindo a algum interesse em especial. A existência material da ideologia é percebida por meio da ritualização de suas práticas, como por exemplo, na fé religiosa, cujos rituais além de serem “externalização secundária da crença íntima, representam os próprios mecanismos que a geram” (p. 18), dito de outra forma: o ritual seguido expressa sua crença, mas ao ser executado “gera sua própria base ideológica” (p. 18).

Em conversa com Bourdieu, Eagleton (Bourdieu & Eagleton, 1996) elenca razões pelas quais há redundância e vazios na conceituação de ideologia. Argumenta que “a teoria da

ideologia parece depender de um conceito de representação” e que mais importante ainda é o fato que “para identificar uma forma de pensamento como ideológica, seria preciso dispor de uma espécie de acesso à verdade absoluta” (p. 266) e uma vez que o conceito de verdade absoluta é contestado, o conceito de ideologia não se sustenta. Bourdieu, por sua vez, alega que considera mais útil e mais adequado o conceito de «doxa», pois ao se usar a «doxa» aceitam-se “muitas coisas sem conhecê-las, e é a isso que se chama ideologia” (p. 268).

A ligação entre ideologia e Estado é feita por Althusser (1996) ao propor a distinção entre Aparelho Repressivo do Estado, que funciona pela violência e Aparelho Ideológico de Estado, que funciona pela ideologia (p. 46), embora se possa compreender que no funcionamento do Aparelho Repressivo do Estado, a ideologia não deixe de existir. Dito de outra forma, ideologia e repressão estão funcionalmente imbricadas, destacando-se uma ou outra, de maneira dominante ou secundária, quer se trate do Aparelho Repressivo ou do Aparelho Ideológico.

Dentre as diferenças que se podem reconhecer entre os Aparelhos está a que se refere ao caráter múltiplo dos Aparelhos Ideológicos, cuja pluralidade vai se desdobrando em especificidades, consoantes às práticas que ocorrem em seu interior e de acordo com os sentidos políticos e econômicos que lhe são atribuídos. Assim, a ideologia pode ser pensada como «uma experiência das multiplicidades».

Outra diferenciação refere-se ao campo de pertencimento dos aparelhos: o repressivo «unificado» diz respeito ao domínio público; os ideológicos «dispersivos» concernem à esfera privada. Nessa separação entre público e privado, o que deve ser levado em consideração, como bem destaca Althusser (1996), é o funcionamento das instituições, sejam públicas ou privadas, uma vez que as instituições privadas podem também funcionar como Aparelhos ideológicos de Estado.

Althusser (1996) propõe três teses para entendimento da ideologia: a primeira diz respeito ao fato que «a ideologia não tem uma história própria», ela perpassa toda a história e não passa de um devaneio consciente, comparado ao que Freud propôs sobre o inconsciente; a segunda refere-se ao fato de as ideologias possuírem existência material, uma vez que são formadas pelas práticas indispensáveis para a reprodução das relações sociais de produção; a terceira revela que a ideologia transforma «os indivíduos em sujeitos», pois operam dentro dos indivíduos, por meio de mecanismos ideológicos cujas funções são a de fazer com que os indivíduos se submetam às exigências da produção social e de suas relações, reconhecendo-as como naturais e vendo nessas relações um lugar que deve ser ocupado pelo indivíduo, já sujeito.

Na visão althusseriana, a ideologia é formada pelos valores e ideias que são tidos como naturais em uma sociedade, embora seja representação imaginária das reais condições de vida. Mas isto não representa uma falsa consciência, uma distorção da realidade, uma alienação. Trata-se de como essa realidade atinge cada pessoa, “sob a forma de uma experiência aparentemente espontânea” (Eagleton, 1997, p. 30).

Conforme esclarece Althusser (1996) “não existe prática, a não ser através de uma ideologia, e dentro dela; não existe ideologia exceto pelo sujeito e para sujeitos” (p. 131). Desse modo, "a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos” (p. 131), condicionando a existência social do indivíduo e a ele preexistindo. Assim, “os indivíduos são sempre já sujeitos” (p. 134), o que equivale dizer que o indivíduo já é sujeito mesmo antes de nascer, pois sobre ele já existe toda uma configuração «ideológica» específica.

A ideologia livra-se do passado de maior acorrentamento idealista abstrato, casual e conceitualmente poroso e adquire status de materialidade na linguística, uma vez que os signos são entidades materiais, em uma migração venturosa, aportada também no tempo, em face do que se pode chamar de revolução linguística do século XX, o direcionamento daí doravante estabelecido nos conceitos em termos de palavras.

Em vez de alicerçar seu objeto em uma vertente que poderia se dizer empírica, em que palavras remetem a conceitos, desde então, a linguística considera «ter um conceito» subjacente, a capacidade de usar palavras de maneiras particulares ou pessoais. Assim, discurso e ideologia se misturam, no momento em que conceito passa a representar mais uma prática que um estado mental, sem, no entanto, incorrer no risco de Althusser, em seu extremismo de reduzir conceitos a práticas sociais.

A teoria semiótica da ideologia já se vê lançada desde o final da década de 20, do século passado, em proclamação arrojada à época, de estudioso soviético, Voloshinov (1986), que em sua obra Marxism and the philosophy of language, postulava que «sem signos, não há ideologia»52, em uma coextensiva concepção de domínios de signos e domínios da ideologia. O estudioso visionário, já se antecipava ao dizer que a palavra «é o fenômeno ideológico por excelência»53 e que a consciência é apenas a internalização de palavras, uma espécie de «discurso interior» (Eagleton, 1997, p. 168).

As ideias de Voloshinov chamavam atenção para um ponto de vista ainda hoje contestado, de que “posições ideológicas contendoras podem articular-se na mesma língua

52 “Without signs there is no ideology” Op. cit. (p. 9)

nacional, cruzarem na mesma comunidade linguística” (Eagleton, 1997, p. 168), como atualmente o fazem os partidos políticos, significando que o signo não deixa de ser uma arena de embates. Na luta pela supremacia do recado, o poder ideológico “não é apenas uma questão de significado, mas de fazer o significado aderir.” (p. 169).

Uma formação discursiva constitui-se, portanto, «uma matriz de significados» (Eagleton, 1997, p. 169) e será parte de um conjunto estruturado de tais fenômenos, chamado de interdiscurso por Pêcheux, e cada uma dessas formações discursivas se vê encerrada no contexto de uma formação ideológica, que envolvem práticas discursivas e práticas não discursivas.

Para Eagleton (1997, p. 169) “cada processo discursivo, portanto, está inscrito em relações ideológicas e será internamente moldado pela sua pressão.” Na base comum de toda formação discursiva está a linguagem e justamente por ser compartilhada por todos é que ela se presta a gerar conflitos ideológicos.

Fragmentos de texto, uma vez ligados, formam processos discursivos relacionados a um contexto ideológico. No entanto, não raro, a posição de uma formação discursiva dentro de um conjunto complexo, em que seu contexto ideológico é, por vezes, ocultado do falante individual por um típico «esquecimento». E é devido a esse esquecimento que os significados dos falantes se lhes parecem autênticos e naturais. No fundo, o falante «esquece» que é apenas interlocutor e como tal, acaba se reconhecendo como autor do próprio discurso, muito embora, um fenômeno, chamado por Pêcheux de «desidentificação» com tais formações possa ocorrer, o que pode ser caracterizado como uma condição natural da transformação política.

O que está no cerne fundador da Análise de Discurso é o movimento constitutivo que permite relacionar língua e ideologia

A língua(gem) adquire tanta importância com o advento da Análise do Discurso que, antes considerada apêndice no estudo das Ciências Humanas, hoje, é sensato admitir que “nenhuma ciência se pensa sem pensar o discurso” (Orlandi, 2012, p. 40).

Dada a nova conjuntura da constituição da práxis da Análise do Discurso, impõe-se atualmente, como diz Orlandi (2012), «uma virada» na teoria, seja a respeito da conjuntura histórica em que opera, considerando-se os modos históricos do assujeitamento, a materialidade discursiva, a língua, o discurso etc.; seja acerca do tipo de análise e das noções que considera nucleares como a do interdiscurso e a da metáfora e metonímia. Ambas são fundamentais na análise do processo metafórico do discurso, a começar pelo seu objeto: o discurso. Neste cenário, em que pese a definição de discurso de Pêcheux – é efeito de sentidos entre

interlocutores -, a virada consiste em atentar para a distinção entre objeto teórico – o discurso, buscando o sentido entre seus locutores e o objeto de análise, comumente bastante variado em quantidade e natureza.

A ideologia é um dos elementos constitutivos dessa mudança ocorrida na década de 60. Hoje a ideologia adquire centralidade em uma nova virada. A Análise do Discurso toma empréstimos da ciência acerca da teoria da ideologia para análise da constelação dos processos discursivos. A ideologia possui uma materialidade específica – que Pêcheux chama de «materialidade ideológica», conforme ressalta Orlandi (2012): “Daí que as formações ideológicas comportam uma ou várias formações discursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada” (p. 45).

Orlandi (2012) observa que a língua é o lugar material em que se realizam efeitos de sentido, sendo que a “materialidade específica – particular- da ideologia é o discurso, e a materialidade específica -de base- do discurso é a língua” (p. 45). E complementando sua explicação, sublinha que:

“o político, ou melhor, o confronto do simbólico com o político [...] não está presente só no discurso político. O político, tal como o pensamos discursivamente está presente em todo discurso. [...] não há forma de estar no discurso sem constituir-se em uma posição-sujeito e, portanto, inscrever-se em uma ou outra formação discursiva que, por sua vez, é a projeção da ideologia no dizer”. (Orlandi, 2012, p. 55).

O mote central é que as relações de poder são simbolizadas e isso é político. Logo, “a maneira mais simples e direta de dizer do político presente no discurso é afirmar que os sentidos e os sujeitos são divididos e têm uma direção que não é indiferente à sua relação com a ideologia” (Orlandi, 2012, p. 55).

No documento Tese Erly Maria (páginas 92-99)