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DISTRITO FEDERAL/RIO DE JANEIRO

No documento Cidade: história e desafios (páginas 179-186)

SOBRE A FORMAÇÃO DO DISTRITO FEDERAL

DISTRITO FEDERAL/RIO DE JANEIRO

Passemos agora a examinar a resposta brasileira para a questão da organização do poder na sede do governo. No intuito de focar de forma mais precisa o nosso problema, deixemos de lado

o primeiro capítulo dessa longa história — o que diz respeito ao chamado Município Neutro dos tempos imperiais — e tratemos de nos concentrar no processo de formação do Distrito Federal repu- blicano, tomando como ponto de partida o exame de certos contrastes significativos entre a expe- riência norte-americana acima sumariada e a brasileira.

O primeiro desses contrastes refere-se à questão da transferência da capital. Nos EUA, como vimos, esse tema esteve no centro dos debates que deram origem ao Estado Federal norte- americano, tendo sido conduzido pelas principais lideranças políticas do país. Passados cerca de dez anos da aprovação dessa proposta pelos estados e consumada a transferência da sede do governo para Washington, finalmente pôde ser estabelecido o estatuto político do Distrito de Colúmbia.

Segundo ponto igualmente importante: todo esse conjunto de iniciativas se baseava em um princípio constitucional estrito: o governo da União exerceria a autoridade em sua sede. O con- junto de regras daí derivadas garantiu ao Congresso ampla liberdade para introduzir mudanças subs- tanciais no estatuto do Distrito, quando isso se fez necessário.

No caso brasileiro, a história assumiria cores bem diferentes. Em primeiro lugar, pelo simples fato de que, como também já fizemos menção, a transferência da sede do governo do Rio de Janeiro para o interior do país ficou somente na letra do texto constitucional (Roure, 1920). (Por sinal, há de se melhor estudar as razões que historicamente fizeram com que o cons- tituinte brasileiro, por sucessivas vezes, teimasse em aprovar esse dispositivo para logo em seguida esquecê-lo. No final deste texto, esta questão será retomada.) Ora, mantida a sede do governo no Rio de Janeiro, tornou-se tarefa das mais ingratas para a União estabelecer um regime político na “velha capital” nos moldes do modelo norte-americano, por maior que possa ter sido o interesse de alguns setores republicanos nesse sentido. Razões para tais dificuldades não faltaram. Vejamos algumas.

Desde o final do Império, crescera entre diferentes grupos políticos cariocas a tese de que a cidade do Rio de Janeiro deveria organizar-se de forma mais autônoma, em que fosse reduzida — ou mesmo extinta — a tutela do poder central sobre a então Corte imperial (Noronha Santos, 1945:19-21). Com a proclamação da República, essas teses ganharam ainda mais fôlego, na medida

em que o próprio regime fez crer que medidas nesse sentido deveriam ser adotadas em futuro pró- ximo. Para isso, sinalizou com o fechamento da Câmara Municipal do Império, sob a alegação de que aquele órgão não respondia às necessidades político-administrativas da cidade. Em seu lugar, deveria ser estabelecida uma estrutura “mais larga e autônoma” (Noronha Santos, 1945:25-26). Implantar um enclave da União no Rio de Janeiro também entraria em choque com a natureza dos princípios federalistas/descentralizadores que deram o tom das primeiras décadas repu- blicanas (Lessa, 1988).

Para dar conta desse universo de interesses, diferentes forças republicanas produziram, no âmbito dos trabalhos constituintes, um conjunto de regras de caráter geral que criaram um Dis- trito Federal que pouco lembraria o norte-americano. Ficou a cargo do Congresso Nacional, por meio da aprovação de uma Lei Orgânica, definir melhor o formato da administração da sede do governo.

No texto constitucional, ficou estabelecido, por exemplo, que, ao lado do princípio que assegurava ao poder central a autoridade sobre a sua sede, a administração do Distrito passaria a ficar a cargo de autoridades municipais. Com essa medida, a Constituinte criava um regime municipal na sede do governo, com as suas prerrogativas específicas. Isso significava simplesmente que o Congresso Nacional — o órgão encarregado de legislar sobre o estatuto do Distrito — não poderia atuar com plena liberdade de ação, uma vez que não poderia ferir o regime municipal.

Na Constituinte, também foi aprovado um dispositivo que assegurou ao Distrito uma prerrogativa exclusiva dos estados: a representação nas duas casas legislativas federais. A bancada carioca passou a ser composta por três senadores e dez deputados federais.3

Mas, afinal, o que era o Distrito Federal republicano? Que princípio deveria ordenar um ente federal assentado em bases municipais e com prerrogativas típicas de unidade federada? Várias respostas foram dadas a essas questões durante a discussão da Lei Orgânica do município da capital. Tratemos de acompanhar somente as mais importantes.

Para a bancada carioca no Congresso Nacional, a cidade do Rio de Janeiro era, antes de tudo, um quase-estado, um “estado em preparação”, na medida em que, consumada a transferência da capital, a Constituição havia determinado que ela seria transformada em cidade-estado. Foi com base nesse princípio que Tomas Delfino, líder da bancada carioca, apresentou um projeto de cunho marcadamente autonomista para o governo da capital, no qual as principais atribuições político- administrativas ficariam por conta de um órgão legislativo municipal eleito pela população. A exe- cução das decisões legislativas ficaria a cargo de um prefeito indicado pelo órgão representativo. Em tom afirmativo, Tomas Delfino registrou em seu pronunciamento:

Tratamos, nada mais, nada menos, de organizar um Estado dos mais importantes da União. Ainda que, ao primeiro aspecto, possa parecer que se decide apenas da vida e dos recursos de um Município, na realidade do que curamos e cuidamos é de fazer a lei para um Muni- cípio tão vasto e com interesses tão estreitamente ligados aos grandes interesses da União, que é um verdadeiro Estado.4

Esse projeto teve amplo apoio na Câmara dos Deputados, mas terminou barrado no Senado Federal. Para o senador fluminense Quintino Bocaiúva, a proposição era “radicalmente defei- tuosa”. Posta em execução, constituir-se-ia em verdadeira “calamidade nacional, que interessa, par- ticularmente, ao próprio poder federal”. Essa situação, continuou Bocaiúva, poderia colocar em risco o próprio governo da União, na contingência de um atrito contínuo e permanente, com autoridade até certo ponto subtraída por sua independência à sua ação direta; e esse poder ficaria quase constituído nas condições de um intruso ou de um hóspede inoportuno e tole- rado, que seria forçado a ver diminuído o seu prestígio, diminuída a sua autoridade por uma jurisdição autônoma e independente, criada também ao amparo do princípio eletivo, do princípio regulador, na democracia da constituição dos poderes, constituindo-se assim tam- bém, por seu turno, um poder em face de um outro poder.5

4 Anais da Câmara dos Deputados, sessão em 08/08/1891.

Frente a essa situação, a Municipalidade da capital não poderia, sob nenhuma hipó- tese, ser organizada segundo os princípios reguladores dos municípios em geral, e muito menos como um estado. Em outros pontos do mundo civilizado, lembra o orador, têm ocorrido conflitos “que têm de terminar fatalmente pela preponderância de um dos poderes em luta; e deve-se pre- sumir que ao poder da União resta ainda a efetividade da força suficiente para ganhar a vitória em qualquer litígio, ou em qualquer conflito, estabelecido com o poder municipal” (Quintino Bocaiúva, 1986:221-222).

Como essas observações encontraram eco na Câmara Alta, foram formuladas naquele órgão diversas emendas ao projeto original, todas elas transferindo do órgão local para instituições políticas federais o poder deliberativo no Distrito Federal. Além disso, previa-se a criação da figura de um prefeito nomeado pelo presidente da República, com a sanção do Senado. Depois de muitas idas e vindas, foi finalmente aprovado um texto que estabeleceu uma justaposição entre a proposta original e a formulada no Senado Federal, o que fez com que o Distrito Federal brasileiro passasse a ser governado pela seguinte estrutura política: 1) um prefeito nomeado pelo presidente da Repú- blica, com a anuência do Senado, com mandato fixo de quatro anos; 2) um órgão representativo local — o Conselho Municipal — com amplas atribuições político-administrativas, entre as quais a responsabilidade sobre assuntos como a votação do orçamento municipal, a aprovação de em- préstimos municipais e a desapropriação e venda de propriedades; 3) caberia ao Senado Federal, como instância política superior, apreciar os vetos apostos pelo prefeito às resoluções do Conselho Municipal.

Visto em seu conjunto, pode-se afirmar que o texto da primeira Lei Orgânica da capital da República procurou fugir da polarização entre projetos de cunho autonomista ou marcadamente centralista, produzindo um conjunto institucional complexo, formado por órgãos de diferentes níveis (federal e municipal) e, o que é mais importante, sem um claro centro de gravidade política. Tamanha foi a preocupação em impedir que fossem criadas maiores amea- ças ao poder central, ou que fossem de alguma forma atingidos os direitos políticos locais, que foi criado um ente político-administrativo que pouco teve condições de resistir às crises que aba- laram a República em meados da década de 1890. Na esteira da República de Campos Sales/

Rodrigues Alves, constitui-se uma sede de governo em novas bases, bem mais próximas do modelo Colúmbia/Washington.

***

Neste breve texto, não nos cabe avançar sobre o conteúdo da crise política que explo- diu durante a gestão do presidente Prudente de Morais. Fiquemos aqui somente com um breve e importante registro para os nossos objetivos: durante o ocorrido, estiveram em lados inteira- mente opostos o presidente da República e o prefeito por ele nomeado para a sede do governo, o médico Furquim Werneck, um dos próceres locais do Partido Republicano Federalista (PRF). Resolvido o embate, Prudente resolveu agir, forçando a exoneração de Werneck da prefeitura. (Pela legislação em vigor, o prefeito não poderia ser demitido por possuir mandato.) Ao mesmo tempo, começou a adotar uma estratégia que consistiu em minar a ação dos grupos políticos locais que dominavam amplamente o Conselho Municipal e a representação do Distrito nas casas federais (Abranches, 1973:261-272).

Nas duas administrações que se seguiram à de Prudente de Morais, respectivamente a dos presidentes Campos Sales e Rodrigues Alves, promoveu-se uma radical alteração no sistema de governo da capital. Entre os anos de 1899 e 1904, o Congresso Nacional aprovou um conjunto de proposições, a maioria delas originária de parlamentares ligados ao governo federal, que tiveram como objetivo fun- damental livrar o poder central dos óbices criados pela legislação anterior, sem que isso significasse a derrogação do regime municipal que havia sido implantado pela Constituição de 1891.

A fórmula adotada para isso consistiu em reduzir substancialmente as atribuições admi- nistrativas do órgão representativo local — o Conselho Municipal —, transferindo-as diretamente para a prefeitura. Ao mesmo tempo, consagrou-se nos novos textos legais a figura de um prefeito inteiramente subordinado à presidência da República, na medida em que passou a ser nomeado livre- mente (sem, portanto, a aprovação do Senado), tornando-se também passível de demissão a qualquer momento, “a bem do serviço público”.

É bom que se diga que Campos Sales e Rodrigues Alves não adotaram os mesmos pro- cedimentos para atingir os seus objetivos. O primeiro apostou todas as suas fichas em uma política

de estrangulamento político e financeiro da sede do governo. Diretamente, ou por meio de seus alia- dos no Congresso, tomou iniciativas no sentido de anular pleitos eleitorais; intervir no processo de reconhecimento de parlamentares do Distrito, além de corroborar com a tese de que a vida política na capital era o que de pior existia na República, ao se referir às fraudes e violências que constan- temente marcavam as eleições cariocas — como, de resto, costumava acontecer em todo o país. Não há de se imaginar, contudo, que o construtor da “política dos estados” tenha feito tudo isso sem encontrar resistências. Concentrado que estava em manter a “ferro e fogo” uma dura política financeira, Sales terminou por não assegurar instrumentos de governo a uma série de pre- feitos da capital, que pouco puderam fazer para gerir uma máquina à beira da insolvência. Sem qual- quer “agenda positiva”, abriu o flanco para inúmeras críticas da imprensa e dos meios políticos (Freire, 1996).

Na gestão de Rodrigues Alves, a situação foi outra. Em um primeiro momento, o novo presidente acompanhou os passos do seu antecessor ao promover uma nova reforma na Lei Orgânica, que resultou, entre outros pontos, na instauração de um regime ditatorial na capital por seis meses. (A literatura registra que essa foi uma condição apresentada pelo engenheiro Pereira Passos ao pre- sidente para assumir a prefeitura.) Logo depois de dar posse ao novo prefeito, Alves, ao contrário de Sales, saiu de cena. Com isso, permitiu que Passos realizasse, com iniciativa e desenvoltura, um cicló- pico programa de obras públicas que causou grande impacto nos meios políticos e jornalísticos (Brenna, 1985). Essa situação deu fôlego às proposições que defendiam a manutenção de um regime de exceção na sede do governo, por prazo indeterminado.

Seja por razões de ordem constitucional, seja por motivos políticos conjunturais, o fato é que, passado o período ditatorial, uma vez mais apostou-se na permanência de um sistema político, na sede de governo, constituído por órgãos federais e municipais. O enorme sucesso político e popu- lar da administração de Pereira Passos comprovou que era possível governar a capital por meio dos instrumentos que foram aprovados na nova legislação do Distrito, segundo a qual um prefeito forte do ponto de vista administrativo e subordinado diretamente à presidência passaria a ser a principal figura política em meio ao esvaziamento do papel administrativo e institucional dos órgãos legis- lativos (o Conselho Municipal e o Senado Federal).

Essa fórmula de governo, explicitamente inspirada na experiência norte-americana, per- durou até o fim da Primeira República. Depois de um intenso ciclo de mudanças promovido na Era Vargas, na qual entraram novamente em choque proposições autonomistas e centralistas, e resolvido pela vitória das últimas, essa fórmula seria em grande parte retomada durante a Era Democrática. Nas décadas de 1940 e 1950, porém, há de se registrar uma maior influência do Senado na admi- nistração dos negócios do Distrito Federal.

No documento Cidade: história e desafios (páginas 179-186)