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A “GEOGRAFIA CRÍTICA”

No documento Cidade: história e desafios (páginas 48-51)

A CIDADE DA GEOGRAFIA NO BRASIL:

A “GEOGRAFIA CRÍTICA”

O final da década de 1960 representa um marco temporal importante na história do pensamento sobre as cidades. E isto se deve muito mais à sua incapacidade de dar conta das trans- formações que aí vinham tendo lugar do que às suas qualidades preditivas e/ou explicativas. De fato, num mundo que vinha sendo questionado a partir de múltiplas frentes (movimentos ecológico, femi- nista, de emancipação de minorias, de afirmação da cidadania, movimentos reivindicatórios diver- sos), e que tinha nas cidades o seu maior ponto de ebulição, a “questão social”, amplamente definida, não apenas se projetou na ordem do dia, como acabou assumindo foros de verdadeira “questão urbana”.

As transformações que afetavam as estruturas sociais do mundo capitalista, especi- almente as suas cidades, puseram a nu a fragilidade das concepções teóricas que as sustentavam, e exigiram, por conseguinte, um novo e redobrado esforço de compreensão. Havia que repensar essas transformações e repensar as cidades, e foi em direção a esses objetivos que diversos pen- sadores sociais se encaminharam. Como resultado, surgiram, a partir do início da década de

1970, novas proposições teóricas sobre as cidades, destacando-se dentre elas, por seu poder per- suasivo, duas grandes contribuições. A primeira foi resultado de uma crítica interna da teoria eco- nômica neoclássica. Sua mensagem principal, de natureza liberal, resumia-se à afirmação de que, devido ao desenvolvimento de diversas estruturas monopolísticas, as condições viabilizadoras do aparecimento da mão invisível, isto é, do mercado, não mais se concretizavam de forma espon- tânea. Conseqüentemente, o mercado privado deixava de funcionar corretamente e, por essa razão, surgiam mecanismos perversos de distribuição de recursos nas áreas urbanas, que eram os detonadores, não apenas de injustiças sociais intra-urbanas, como também dos mais diversos movimentos de contestação. Como solução para o impasse, sugeria-se uma maior presença do Estado na economia urbana, cabendo-lhe, portanto, a tarefa de garantir o funcionamento do mercado (via regulação) e de viabilizar o funcionamento de mecanismos de distribuição de renda, quando isto fosse necessário. No que diz respeito à geografia, David Harvey (com as proposições liberais contidas na primeira parte de seu clássico A justiça social e a cidade, de 1973) foi o grande nome desta escola.

A segunda contribuição teórica foi, sem dúvida, a que teve origem no pensamento mar- xista, mais precisamente na interpretação que lhe dera Louis Althusser. É hoje um fato reconhecido por todos que os acontecimentos de maio de 1968 na França pegaram de surpresa não apenas o status quo gaullista/liberal, mas também os partidos de esquerda, e em especial o Partido Comunista Fran- cês. Com efeito, o maior paradoxo que as revoltas urbanas daquele ano colocaram para a reflexão dos pensadores marxistas foi o da incapacidade das teorias vigentes de prever, ou mesmo de explicar, o que realmente havia acontecido. Tal qual ocorreu com o pensamento liberal, era mais do que neces- sário repensar teoricamente as cidades, e a essa tarefa dedicaram-se intelectuais das mais diversas filia- ções de esquerda. Os trabalhos que publicaram nessa época (vide, por exemplo, Castells, 1972; Lojkine, 1977; Harvey, 1973 (segunda parte), 1978 e 1982) tiveram um profundo impacto no desenvolvimento da pesquisa urbana, tanto no Primeiro Mundo (que foi o principal objeto de suas investigações), quanto em nosso país.

No Brasil, a chegada do pensamento marxista à geografia teve características peculiares. Vista como ligada intrinsecamente ao “sistema”, não é de se espantar que, com a crise do modelo

econômico do regime ditatorial (e com a posterior crise do modelo político e do próprio sistema de planejamento), a “geografia quantitativa” entre também em crise. A essa crise somaram-se outras — evidenciadas nas contestações às estruturas de poder então existentes nas universidades, na AGB, nos comitês que controlavam as verbas para pesquisa etc. —, tudo isso resultando num vigoroso e mul- tifacetado ataque ao “neopositivismo” e às instituições e indivíduos que a ele estavam mais ligados, que foram então identificados com o próprio diabo.

A abertura ao materialismo histórico e dialético, que até então se mantivera distante do pensamento e da prática geográficos, foi a conseqüência imediata dessa descompressão. Devido à ausência de um pensamento marxista bem estruturado na disciplina, ela se manifestou, sobre- tudo, no temário de pesquisa. Surgiram, então, diversos trabalhos que objetivavam identificar, não apenas os mecanismos perversos que estavam em funcionamento no sistema social, mas também as diversas dimensões através das quais eles poderiam se expressar no espaço. Era preciso apontar infratores, denunciar injustiças sociais, falar, enfim, daquilo que, ao contrário do que pregara Monbeig trinta anos antes, o geógrafo não só sabia como precisava conhecer ainda mais. Era pre- ciso enxergar, afinal, o que se escondia atrás da paisagem visível da geografia das formas, sem entretanto fazê-lo com o auxílio dos óculos neopositivistas, já que estes distorciam o objeto ao ten- tar explicá-lo a partir de um referencial que negava o conflito, ou reduzia-o a mero estado de dese- quilíbrio do sistema.

Surgiu assim uma “geografia de denúncia”, que, embora não rompesse, inicialmente, com os procedimentos de análise da geografia tradicional ou mesmo neopositivista, alterou subs- tancialmente o seu conteúdo. Esta alteração se realizou sobretudo a partir da crescente vinculação dos estudos de padrão, tão a gosto dos geógrafos, a referenciais processuais maiores. Relacionar processo social e forma espacial passou a ser a palavra de ordem desta geografia urbana que se renovava. Rapi- damente, entretanto, os progressos teóricos se fizeram sentir mais decididamente e, nesse processo, o papel desempenhado por Milton Santos foi fundamental. A qualidade de sua produção teórica e a liderança que exerceu na defesa de “uma geografia nova” (Santos, 1978) foram fundamentais para o sucesso da nova proposta e, posteriormente, também para os novos direcionamentos que ela tomou.

O que era, na realidade, essa “geografia crítica”? De início, poderíamos dizer que se tra- tava de uma geografia engajada, que objetivava a transformação da sociedade, e que o fazia a partir de uma crítica externa ao sistema, o que a diferenciava, portanto, da crítica liberal, que operava “den- tro do sistema”, isto é, criticava a forma mas não o conteúdo. Em outras palavras, esta última não contestava nem a ordem estabelecida (ao contrário, tomava-a como dada), nem aquilo que a escola (crítica) de Frankfurt chamou de “teoria tradicional”, ou seja, a teoria que se caracteriza pela deri- vação lógica de seus enunciados, pela objetividade de suas formulações, pela a-historicidade de sua análise e pela exigência de comprovação empírica. Já a “geografia crítica” tinha nas raízes históricas e nas determinações sociais a sua maior fonte de inspiração e de teorização, e na contestação da ordem estabelecida o seu leitmotiv (cf. Moreira, 1982).

Ao contrário das geografias de base positivista, a geografia crítica rejeitava também a autonomia do espaço, isto é, sua exterioridade em relação à sociedade. Para ela, o espaço geográfico não deveria ser concebido como espaço (externo) organizado pelo homem, e sim como produto desse mesmo homem. Em outras palavras, o espaço deveria ser visto como materialidade social; ele não era organizado pela sociedade, como assume o positivismo, mas produzido por ela através do tra- balho. Decorre daí que é a sociedade o verdadeiro sujeito da produção do espaço, razão pela qual é a partir dela que toda discussão geográfica deve proceder (Carlos, 1987). Sendo produto da socie- dade, o espaço geográfico teria que refletir, obviamente, a sua estrutura e a sua dinâmica. Em outras palavras, como é da sociedade que o espaço geográfico recebe a sua forma e o seu conteúdo, a sua compreensão teria que passar, primeiramente, pelo entendimento da sociedade a cada momento do tempo.

No documento Cidade: história e desafios (páginas 48-51)