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3 Baile da musicologia levantando poeira! !55!

3.3 Divergências metodológicas! !61!

teoria da música, a vejo como redutora do potencial composicional da análise musical, tal como o estou praticando neste trabalho. A ideia de ‘fato musical total’, que em outro trabalho chamei de metáfora da música como “reservatório potencialmente infinito de significados” (cf. ANGELO, 2012b, p. 104), pressupõe o analista como alguém que interage com a música, porém às custas de sua responsabilidade criativa em relação a ela. Ora, sendo o ‘fato musical total’ uma forma simbólica, a qual está ligada a um “complexo infinito de interpretantes” (NATTIEZ, 1990b, p. 8), ele não existe senão em potência. Portanto, ao estabelecer suas associações e também ao escrever o discurso analítico, o analista musical não está revelando uma faceta oculta ou antes desapercebida da música, mas está diretamente a compondo, a continuando. Essa faceta performática da análise transcende o campo teórico proposto por Nattiez.

3.3 Divergências metodológicas !

Na seção precedente, esbocei minha concepção sobre a interação entre os três níveis da tripartição semiológica, a discutindo, demonstrativamente, com base num pequeno trecho de minha interpretação analítica relativa aos [95]-[100] de Ao Pó. A partir de agora, cabe-me dar conta das divergências de minha posição, nesta tese, em relação a certos preceitos da semiologia musical tripartite de Nattiez, efetuando, ao mesmo tempo, a expansão de meu referencial teórico.

Dentre essas divergências, a da metodologia da análise é talvez a mais evidente, certamente notável a quem está familiarizado com o trabalho de Nattiez. Antes de mais nada, considero que parto de uma premissa comum, sendo meu pequeno exercício meta-analítico – representado na Figura 29 – perfeitamente conciliável com a função da semiologia musical preconizada por Nattiez, que é a de “identificar interpretantes de acordo com os três polos da tripartição, e estabelecer a relação entre eles”13 (1990b, p. 29). Para o autor, tal identificação pressupõe o destrinchamento!entre os três níveis semiológicos no próprio processo analítico, com especial preocupação sobre a análise do nível neutro: esta, de cunho descritivo, deve geralmente preceder as análises poiética e estésica, ambas de cunho explicativo (1990b, p. 32). Ainda assim, a individualidade do analista – o reconhece Nattiez – existe também na

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13!“The task of semiology is to identify interpretants according to the three poles of the tripartition, and to establish their relationship to one another”.

análise de nível neutro, através da escolha das características consideradas relevantes em sua descrição. Neste sentido, me são perfeitamente aceitáveis a existência e a identificação do nível neutro no fato musical, desde que não se confunda a descrição objetiva de uma parte da imanência (do rastro) musical com a neutralidade por parte do analista. Entretanto, apesar de considerar a análise de nível neutro como ‘dinâmica’ e em constante movimento na realização da análise (1990b, p. 32), para Nattiez, é necessário que esta receba certa autonomia através de um “objeto gráfico, uma forma de apresentação que parece, paradoxalmente, <fixa>”14

(1990b, p. 32). Assim, por exemplo, o autor imagina uma hipotética análise de música eletroacústica de acordo com a seguinte metodologia:

No nível neutro, seria suficientemente fácil identificar e descrever os objetos sonoros que compõem essas obras, descrever as leis que governam sua sucessão e sua integração a vários agrupamentos sintáticos, em vários níveis. Nós, a seguir, (...) procederíamos à extração daqueles traços constituintes que são responsáveis por um sentido de continuidade dentro da sucessão de momentos isolados que perfazem a obra. Mas essa explicação essencialmente estésica (nós percebemos um “sentido de continuidade”) jamais será possível sem que tenhamos acesso primeiramente à descrição material da obra; isto é,

a uma análise de seu nível neutro.15 (NATTIEZ, 1990b, p. 101)

Nota-se aqui uma clara divisão da investigação em dois processos analíticos separados, ainda que ela não necessariamente transpareça no discurso finalizado. Os dois processos são, em princípio, autônomos, sendo teoricamente possibilitadas diversas maneiras de descrever os ‘objetos sonoros’ e sua sintaxe, e outras tantas – completamente distintas – para criar um sentido de continuidade. Mais especificamente: Nattiez outorga à análise de nível neutro uma metodologia de caráter exclusivamente estruturalista – com clara ênfase dada à análise paradigmática –, ao passo que a contemplação dos níveis poiético e estésico se daria na abertura da obra ao mundo externo, integrando aí abordagens de semântica e sintaxe musical e a incluindo em contextos sociais e culturais, bem como na história das estruturas da linguagem musical. Neste mesmo sentido, o autor, em outro trabalho, considera a tripartição como um modelo “transestruturalista” (NATTIEZ, 2005, p. 31).

Semelhante separação de processos metodológicos na construção da análise não é conciliável com minhas premissas composicionais, que se mantêm ativas na criação de

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14"“Given that an analysis is so much more precise than its written form, analysis of the neutral level will always

at first take the form of a graphic object, a form of presentation that seems paradoxically ‘fixed’ (...)”. 15

“In the neutral level, it would be easy enough to identify and describe the sound-objects that make up these Works, to describe the laws governing their succession and their integration into various syntactic arrangements, on various levels. We would then, from this arrested description of the material, proceed to extract those constituent traits that account for a sense of continuity within the succession of isolated moments that make up the work. But this essentially esthesic explanation (we perceive a ‘sense of continuity’) will never

minhas interpretações analíticas. Neste caso, a autonomização da análise de nível neutro, através de um modelo estruturalista, me seria de pouca valia ou mesmo contraproducente, já que meu interesse é justamente empregar em conjunto dados extraídos desde os níveis poiético, neutro e estésico na construção da trajetória narrativa. Sendo assim, para retomar o exemplo anterior, quando me utilizo de dados referentes às indicações de dinâmica e técnicas de execução indicadas nos [95]-[100] de Ao Pó, não vejo necessidade de empreender uma descrição sistemática desses dados em toda a peça, provendo-me de estatísticas ou representações gráficas que me permitissem rastreá-los a qualquer momento de maneira uniforme. Antes, meu propósito é abordar os aspectos do nível neutro conforme necessidades pontuais oriundas de minha interpretação, de maneira a fortalecer a ligação desta com a partitura ou a performance em questão.

Se, portanto, for forçada a delimitação de! uma ‘análise de nível neutro’ nas interpretações analíticas deste trabalho, pode-se concluir que tal análise não é em absoluto sistemática, mas transparece apenas como ligação dinâmica entre o argumento proposto desde o nível estésico e a imanência da obra que, no capítulo 2, limitou-se à partitura de Ao Pó. De qualquer maneira, se comparada com a de Nattiez, minha posição não é restritiva em relação ao nível neutro da análise, pois reconheço não só a necessidade de sua identificação como também a importância que lhe cabe na validação (persuasão) da análise. Descarto, porém, a necessidade de movimentar todo um aparato metodológico do estruturalismo para seu escrutínio, quando este cumpre melhor um papel secundário nas interpretações analíticas que aqui proponho. Com isso, quero reconhecer, desde já, que minha apropriação do conceito de ‘análise do nível neutro’ é deliberadamente parcial em relação à perspectiva de Nattiez, pois assim me é suficiente. Do contrário, creio que se correria o risco de haver dispersão, ou pior, descaracterização de meus objetivos investigativos nesta tese.

3.4 Criação de uma experiência musical !

Estando minha ênfase, neste trabalho, posta sobre a dimensão estésica da análise, me corresponde aqui uma discussão de minha concepção específica dos processos de recepção do fato musical. A definição de uma posição analítica como estando apoiada no nível estésico é vaga, já que seus referidos processos podem se originar em concepções epistemológicas muito distintas, desde uma perspectiva cognitiva da percepção musical em tempo real,