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Fator de relevância (B): relevância do conteúdo atribuído à música através da narrativa!.!131 !

4 Narratividade em Música! !89!

4.5 Fatores de relevância da narratividade em música! !129!

4.4.2 Fator de relevância (B): relevância do conteúdo atribuído à música através da narrativa!.!131 !

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Conforme a posição adotada nesta tese, a interpretação narrativa não é propriamente uma análise musical. Seu percurso metodológico assenta-se sobre uma ideia interpretativa que transcende, deliberadamente, o objeto musical tradicional e, mais importante, serve de fundamento principal para a trajetória narrativa. Assim, a interpretação narrativa propõe sempre um desvio da famigerada música ‘em si’. Esse desvio não deve ser simplesmente circunstancial ou poeticamente sugestivo, ele deve ser a principal substância da interpretação, justamente por se desenvolver em função da ideia interpretativa que a norteia.

Ao descartar a música ‘em si’, entretanto, a interpretação narrativa não se torna ‘extramusical’. Ela transforma a música e a ela se soma no sentido mais amplo aqui defendido, isto é, integra e expande o campo da experiência musical. Essa transmutação do discurso em música, vista aqui como continuação do processo composicional, é a principal justificativa para o fator de relevância (B). Nela baseiam-se também todas as interpretações analíticas aqui apresentadas.

Pela explanação antecedente, observa-se que os fatores (A) e (B) são aparentemente paradoxais: enquanto um solicita à narratividade um parentesco próximo com a configuração e com os procedimentos concretos, vinculados ao objeto musical que a subsidia, o outro a manda seguir uma ideia interpretativa que a desvie desses mesmos elementos. Esse paradoxo é apenas aparente, porque o fator (A) não impede a plena vigência do fator (B), mas lembra que o desvio da interpretação narrativa está (ou deveria estar) constantemente atravessando o objeto musical, a maneira como ele foi feito ou as maneiras de percebê-lo. Os dois fatores são, nesse sentido, complementares. Sua observância conjunta permite à ideia transformar o objeto, tanto quanto o objeto transforma a ideia.

4.4.3 Fator de relevância (C): interesse intrínseco à narrativa proposta

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Diz o jargão (popular e acadêmico) que há muitas maneiras de se contar uma história. Não obstante, em cada narrativa é apenas uma delas a que existe, a qual sendo única é circunstancialmente a própria história. Para dar conta da efemeridade dessa existência da interpretação narrativa, como sendo de fato uma performance, proponho o fator (C). Nele, reencontra-se a questão da enunciação e, mais especificamente, a estética da narrativa discursiva em música.

Esse não é um debate exclusivo. Ele pode ser encontrado, ou pelo menos pressentido, em muitos estudos até aqui mencionados. De certa forma, a utilização de recursos antropomorfizantes ou prosopopeicos; de agenciamentos, encadeamento de ações e tempo narrativo; de inferência de narração, posicionamento ideológico e arquétipos narrativos - todos esses elementos recorrentes em vários trabalhos - cumpre não somente a função de tornar a narrativa em música compreensível e portadora de compreensão musical, mas também a de torná-la interessante e dinâmica em relação à experiência de mundo. Almén propôs inclusive uma categorização de tipos narrativos em música, os quais chamou modos retóricos: (1) intrafísico ou pessoal; (2) interpessoal; (3) social; (4) sinedóquico ou metonímico; (5) não actorial (ALMÉN, 2008, p. 162-163). O autor os sugere como uma espécie de adendo à sua teoria da narrativa musical, em que a escolha por um ou outro depende da “própria esfera de interesse do intérprete” (ALMÉN, 2008, p. 163). No entanto, o interesse em jogo aqui é muito mais aquele do leitor, como o próprio Almén reconhece mais adiante (ALMÉN 2008, p. 164), sendo esse o interesse contemplado pelo fator de relevância (C).

Conforme identificado anteriormente, as interpretações analíticas desta tese surgiram de acordo com as premissas composicionais de indefinição de materiais e fluência da forma. Antes de começar a escrever cada uma dessas interpretações, não sabia qual seria seu teor. Porém, assim como acontecera com as notas sobre a partitura, as palavras sobre o papel suscitaram ideias e vice-versa, de maneira que a construção foi se fazendo junto com a interpretação. Esse procedimento não se deve somente às premissas composicionais mencionadas, mas também à importância dada aqui à enunciação, que se viu equiparada à

proporem a uma continuação composicional, deve ser buscada também como arte através do fator (C). Isso quer dizer que sua importância, sendo artística, depende do ouvinte/leitor, de sua reflexão e de seu interesse ou, de forma convenientemente direta, depende da continuação que ele dará a esse processo composicional.

5 Parêntese e delírio em O Desvão

5.1. Breve introdução !

Associações com a linguagem não se restringem à narratividade e ocorrem quase automaticamente, no momento em que se passa a expressar alguma ideia sobre música, seja no âmbito morfológico, sintático ou semântico. Tal associação música-linguagem, que pode ser rastreada até a própria conotação da palavra musiké no grego clássico, passou historicamente por diversas tendências na cultura ocidental. Ora pendeu mais para a retórica – como nos séculos XVII e XVIII –, ora para considerações relacionadas à sintaxe ou mesmo à gramática – como em diversos tratados da tradição germânica e também em trabalhos mais recentes, como o de Fred Lerdahl e Ray Jackendoff (1983), apenas para citar um exemplo emblemático. Mesmo aproximações com a semântica, comuns em boa parte da literatura sobre música desde o século XIX, têm sido refeitas de maneira mais explícita e sistemática nas últimas décadas, principalmente através da semiologia musical, no que o livro The Sense of Music (2000), de Raymond Monelle, constitui um exemplo.

Não é minha intenção aqui me debruçar sobre o problema da associação música- linguagem, já estudado por diversos autores, para o qual tomo por referência trabalhos como os de Kofi Agawu (2009) e Nicholas Cook (2007). Neste capítulo, pretendo refletir especificamente sobre a ideia de parêntese em música, que de certa forma, motivou a composição de minha peça O Desvão e, portanto, me levou a buscar, em outros trabalhos e partituras, referências que me ajudassem nessa associação. Com base nessa concepção parentética crio a interpretação narrativa dessa peça.

À guisa de preâmbulo, tomo algumas considerações e advertências dos autores referidos, para assim estabelecer a perspectiva desde a qual o presente estudo se desenvolve. Nicholas Cook, para quem as conceptualizações da música como linguagem têm sido marcadas por confusões constantes entre o que é descritivo e o que é prescritivo (2007, p. 250), propõe a individualização do problema através das especificidades de cada obra musical. Neste caso, o esclarecimento da comparação entre música e linguagem seria um problema de solução sempre local, para o qual a perspectiva epistemológica seria