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Interpretação como processo composicional! !82!

3 Baile da musicologia levantando poeira! !55!

3.7 Interpretação como processo composicional! !82!

(reitero: não é extramusical), mas ocorre na medida em que transforma e é transformada pela experiência musical, em reflexão mútua provocada pela interação condensada entre os níveis poiético, neutro e estésico do discurso sobre música. Assim, a ideia de mancha – para retornar a Introverso – não é somente o disparo da interpretação, como também seu ponto de chegada: tudo o que a interpretação efetua não é senão a composição dessa ideia, com apelo a estruturas, significações, literatura, bom senso, ou simplesmente o prazer da descoberta, do inadvertido, da invenção.

3.7 Interpretação como processo composicional !

A partir deste ponto, se fica em condições de encarar as interpretações analíticas desta tese como parte integrante do processo composicional. Nesta última seção de capítulo, vem à tona minha posição como compositor frente às questões abordadas. No que se refere aos meus objetivos neste trabalho, a considero vantajosa em relação aos trabalhos dos demais pesquisadores que se dedicam ao caráter performático da análise musical. Enquanto a música de concerto europeia, particularmente em seu repertório mais tradicional, domina incontestavelmente o mainstream internacional da Teoria da Música (pelo menos nas temáticas interessantes para esta tese), meu empreendimento volta-se praticamente às minhas próprias composições. Com isso não me refiro somente à particularidade de ter composto a música sobre a qual me detenho, mas também de havê-la feito muito recentemente e, mais, de situar-me na periferia da chamada música erudita ocidental, portanto das próprias questões de fundo que informam boa parte do presente debate. Essas particularidades, embora exijam certo cuidado no comércio de ideias com os autores aqui mencionados, abrem um caminho distinto para a exploração da interpretação em música, certamente menos constrangido pelo peso cultural de um repertório que acumula comentários há séculos.

Em seu trabalho interpretativo, Kramer tende a colocar em jogo várias relações entre música, política, ideologia ou contextos socioculturais. Apesar de estar preconizada em sua própria abordagem hermenêutica, a proliferação de tais relações, em minha leitura, testa constantemente os limites entre o interpretativo e o assertivo, entre a performance criativa e a elucubração sobrecarregada. Isso se vê enfatizado pelo fato de o repertório abordado estar

pela quantidade de trabalhos e campos de conhecimento com os quais se pode facilmente dialogar.

Dessa forma, a interpretação analítica pode sofrer perda de força persuasiva, promovendo o distanciamento entre os indivíduos que a compartilham – isto é, entre o que a escreve e os que a leem. No caso de Kramer, entretanto, tal distância não decorre do fastio – pelo contrário, o estilo fluído e a agudeza do autor mantêm o interesse de seus textos. O que provoca uma posição defensiva na apreciação de algumas de suas interpretações é antes a pretensão de certas associações, cujas implicações generalizantes parecem retirar o foco da experiência musical e colocá-lo ora sobre uma questão histórica, ora sobre uma situação social, estética e assim sucessivamente. É o caso, por exemplo, da relação entre o primeiro movimento do quarteto em si bemol, K 458, “A Caça”, de Mozart, e o embate entre feudalismo e iluminismo (cf. KRAMER, 2011, p. 241-257). Ainda que a interpretação seja uma proposta criativa não excludente de outras alternativas, seu teor já não convida à criação de uma experiência musical, mas a uma elaboração teórica multidisciplinar que, para se tornar novamente interessante, careceria de uma depuração necessariamente extensa e não musical.

É precisamente este o ponto mais atacado em relação ao trabalho de Kramer, configurando-se também numa espécie de estigma da (até pouco tempo atrás) chamada ‘musicologia nova’. Já foram aqui mencionadas algumas críticas a esse estigma, às quais se poderia acrescentar aquela particularmente veemente de Spitzer (cf. SPITZER, 2012, p. 607- 610). Esse estigma me parece superestimado por parte de seus críticos, sendo usado frequentemente como ‘cavalo de batalha’ para insistir em distanciamentos aparentemente epistemológicos, mas de fundo efetivamente ideológico, obscurecendo um potencial debate de aspectos mais aprofundados da hermenêutica musical, que são os que me interessam nesta tese. Se replico tal crítica neste momento, é por que minha proposta da interpretação analítica como ampliação do processo composicional se insere justamente nessa diferença de repertório, contexto e propósitos analíticos que me distanciam do empreendimento de Kramer, particularmente no que se refere à prática analítica.

Minha proposta aqui é, portanto, unir os pontos do primeiro capítulo desta tese (construído essencialmente sobre depoimentos e conceitos relacionados à minha prática composicional), com a discussão que venho elaborando no presente capítulo. Quero assim esclarecer meu posicionamento em prol da interpretação analítica como continuação do

processo composicional, e possibilitar a introdução de sua faceta mais específica, isto é, a da interpretação narrativa, da qual me ocupo no próximo capítulo.

Sendo a interpretação analítica teorizada aqui como uma performance, a maneira adequada para experimentar sua transformação sobre a música é, necessariamente, a pondo em ação, de preferência a considerando em relação à noção de outros caminhos interpretativos que não foram percorridos. Para tanto, proponho um pequeno exercício: antes de prosseguir com sua leitura, se considere a partitura contida na Figura 31 (reprodução, na íntegra, da peça Pó, que abre o ciclo Coisas Pelo Ar) e se busque conceber uma ideia interpretativa para essa peça, de acordo com o interesse de cada um, recorrendo-se ou não ao piano (quando possível) ou às diferentes gravações que acompanham esta tese.

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Figura 31: Pó, primeira peça de Coisas Pelo Ar.

um ponto de interesse do sujeito em relação à música. Disso decorre que a ausência de um ponto de interesse qualquer, isto é, de algo que enfatize a experiência com a música e a retire de seu primeiro estágio, no qual tudo é pré-julgamento e lugar comum, necessariamente impossibilita qualquer interpretação analítica. Além disso, e mais importante para meu argumento aqui, a concepção da ideia interpretativa implica que o objeto em questão já não é simplesmente a peça Pó, mas a própria definição da ideia.

Minha ideia interpretativa em Pó circunda a noção de espessura, acompanhada das qualidades de velocidade e registro. A espessura refere-se à conjugação homogênea de uma ou mais linhas melódicas, numa espécie de movimento errante, engordando ou emagrecendo, conforme as condições à que se expõe – condições que, em sua essência, são dadas por velocidade e registro. A matéria que assume tal ou qual espessura não precisa ser necessariamente identificada. Avanço, porém, um pouco mais na concepção da ideia interpretativa, a associando ao título da peça e, assim, a considerando sob a imagem de uma camada de pó suspensa no ar e, ainda um pouco mais, pensando na falta de movimentos bruscos na peça: uma camada de pó suspensa no ar (quase) parado, sob um feixe estreito de luz que perpassa o vidro de uma janela. Às qualidades de gordura ou magreza se pode então somar as de densidade e rarefação, tornando a relação imagética da música mais rica.

Vê-se que minha primeira atitude interpretativa em relação ao objeto ‘peça-Pó’ foi ultrapassar largamente o nível neutro da análise, sendo uma relação com poucas coisas da partitura imediatamente levada a uma imagem portadora de elementos dúbios. Tais elementos, como tradicionalmente vistos e teorizados, são criados a partir da música. O contrário, no entanto, é igualmente válido e importante, ou seja, a música é doravante criada a partir de tais elementos43.

Para que se possa ter uma noção clara desse paradoxo da significação musical, basta que se avaliem algumas implicações que a ideia interpretativa, pelo simples fato de ganhar vida, acarreta sobre a obra. A primeira delas já é de importância capital: estando a interpretação baseada na ideia de espessura de uma camada de pó, a forma dessa peça específica torna-se automaticamente unitária, permitindo a constituição de um fluxo temporal contínuo, fundamentado nos diferentes estados dessa espessura. Desta forma, os diferentes momentos da peça, inclusive aquele mais contrastante dos [9]-[16], podem ser vistos

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43!Ressalto que com ‘criação da música’ não me refiro à composição em sentido estrito (do som, da partitura),

conjuntamente, pois a interpretação os torna a mesma coisa, apenas mais densa ou rarefeita, gorda ou magra, visível-audível ou invisível-inaudível.

Outras ideias (mais pontuais) tornam-se então necessárias: por que ocorre aquela desconjunção da camada entre os [4]-[7]? Talvez alguma relação com registro, sendo o afastamento da região média do teclado uma desconcentração das partículas, fato que certamente responde pela diminuição da velocidade até não ser quase possível perceber seu movimento como camada. Aqui já está uma porta de entrada para o conceito de realidade musical, sendo o registro um limite para a realidade de Pó, cujo trespasse a transformaria em outra peça. E o dó (em oitavas separadas) extremamente longo dos [12]-[14]? Aqui é diferente: o desaparecimento do som, ainda que chegue a ocorrer, não ameaça a realidade da peça, pois continua muito presente a ideia interpretativa, apenas com sua espessura desfeita por um breve momento... mas o ar não termina de se mover e logo a camada torna-se novamente visível.

Neste momento, é interessante cada um considerar sua própria ideia interpretativa anterior à minha exposição – se é que lhe ocorreu alguma. Seja qual for o caso, não é difícil concluir que provavelmente ideias interpretativas muito diferentes podem vir à tona, as quais dão (ou dariam, se fossem perseguidas) origem a interpretações analíticas distantes. Assim como Kramer, considero que essa distância não é, de forma alguma, nociva ao estudo da música. Ao contrário, a distância sinaliza a potência criativa da interpretação e, com ela, a expansão do campo de experiência musical. O fato de uma interpretação não poder ser a transcrição ipsis litteris da música ‘em si’ não é um defeito, mas uma qualidade fascinante, que considero legitimamente ‘musical’.

Sendo ela musical, é também performática e composicional. No meu caso específico, é a continuação da composição. Para que tal condição fique clara, é necessário que se estabeleça ainda outra distância que não aquela entre a interpretação e o objeto, qual seja, a distância entre a composição do objeto e a composição da interpretação.

Diferentemente do que possa ser depreendido de meu pequeno exercício interpretativo, tais considerações não existiam enquanto eu compunha a peça Pó. A ideia central de espessura, por exemplo, só se definiu com a necessidade de escrita dos parágrafos precedentes, mais de um ano após a composição da música. Sequer os títulos Coisas Pelo Ar ou Pó estavam definidos naquele momento de composição em 2012. Eles mesmos não

composição do ciclo – do que se depreende que tal ideia (e com ela, os títulos) poderia ser outra, carregando consigo a música (tanto os sons quanto as demais ideias) para outro lugar, conforme venho argumentando aqui. Com isso, se pode perceber como a interpretação interfere na experiência musical, obedecendo, no meu caso, às premissas composicionais referidas no capítulo 1 desta tese.

Mas minha interpretação não é completamente alheia ao processo composicional de Pó. Há aqui um jogo de inter-relações naturalmente difícil de ser definido, pois os objetos a que dão origem (sons e palavras) compartilham uma intersecção na ideia e com ela se confundem. Portanto, não posso dizer que a ideia de espessura não existia antes dos parágrafos precedentes, pois ela informou, ainda vaga ou ‘sem rosto’, mas já como interpretação hermenêutica, o processo de composição da peça. Entretanto, sua definição em palavras anteriores (sua conformação como objeto discursivo) permitiu – e mesmo demandou – a criação de novas relações, que se interligaram com diferentes elementos da partitura e deram origem a uma concepção da música que definitivamente não existia até aqui.

Portanto, a definição da ideia – e com isso me refiro principalmente à sua definição na escrita – marca o início de um processo criativo, cujo caminho se faz, como produto, paralelamente à obra. Logo, sob o ponto de vista hermenêutico do campo da experiência musical, já não se pode falar objetivamente ‘da’ obra e ‘da’ análise, pois ambas se informam mutuamente e vão moldando o que se pode chamar de compreensão, por mais que tal compreensão não constitua a verdade da música. A compreensão não é, nem pode ser, um ponto de chegada. Ao contrário da partitura, do texto e da ocasião da performance, a interpretação é sempre uma coisa no meio. Fazê-la avançar significa refazê-la, torná-la composicional.