• Nenhum resultado encontrado

Primeiros apontamentos sobre a fluência da forma no âmbito da narrativa musical! !34!

1 Um passeio pela composição em vias de fazer-se! !3!

1.2 Primeiros apontamentos sobre a fluência da forma no âmbito da narrativa musical! !34!

do Noturno op. 32/1, no qual, prestes a terminar, a música é rasgada ao meio e revela outra realidade que acolhia atrás de si, completamente inadvertida. Neste movimento final do Trio, ainda que por um momento finito, a música simultaneamente avança em seu percurso e finca violentamente o pé onde está. Este paradoxo pode ser resolvido de maneira interessante através do agenciamento dos instrumentos em ação, que o incorporam e passam a ser portadores de realidades distintas.

A atuação conjunta ou disjunta dos instrumentos em uma mesma peça, conforme observada no último exemplo, é um elemento muito presente nas composições e interpretações analíticas das obras que integram esta tese. Minha forte impressão do último movimento do Trio serviu como inspiração na adaptação natural (para não dizer inconsciente) desse procedimento em minha composição. No correr das intepretações analíticas que estão por vir, discuto, oportunamente, outras maneiras de interação instrumental sob a luz do conceito de realidades musicais. A ênfase que aqui concedo a esse procedimento específico, além de derivar de sua recorrência nas peças desta tese, deve-se também a seu impacto sobre a noção de realidade musical, pois o desengajamento entre os instrumentos proporciona constantemente sua problematização, tanto em termos composicionais como interpretativos.

1.2 Primeiros apontamentos sobre a fluência da forma no âmbito da narrativa musical !

O que ficou dito na seção anterior visa estabelecer um conceito de realidade musical que está presente em todas as interpretações analíticas desta tese. Ficou esclarecida sua relação com as duas premissas composicionais apresentadas, de maneira que a própria indefinição de materiais e do percurso formal acaba gerando a necessidade de um conceito o qual, simultaneamente, identifique aquilo que a música é e mantenha uma consciência subjacente daquilo que ela pode vir a ser, de sua potência.

A ênfase deste capítulo inicial, entretanto, tem sido posta sobre o processo composicional que deu origem às peças que integram esta tese, tomando como exemplo Introverso e contando com alguma ajuda de obras de outros compositores. Ou seja, o debate sobre as interpretações analíticas, objeto deste estudo, ainda não começou de forma explícita. No capítulo seguinte, ofereço uma interpretação narrativa deliberadamente detalhada (quase

venha a assumir o primeiro plano nos capítulos 3 e 4, nos quais a referência às interpretações feitas até então é constante e crucial.

O fato de adiar a discussão propriamente teórica desta tese não significa, porém, que ela esteja ausente no caminho até aqui empreendido. Pode-se perguntar, por exemplo, até que ponto as ideias suscitadas anteriormente, com relação a Introverso e também às demais peças abordadas, respondem à música (num sentido estrito oportunamente problematizado) ou a uma intersecção interpretativa de conhecimentos que se pode chamar, provisoriamente, de experiência musical. Essa intersecção, ao mesmo tempo em que extrai da música as ideias que a impulsionam, cria, nessa mesma música, outras ideias, perpetuando o processo de transformação antes discutido5. No restante deste capítulo, meu propósito é esclarecer pontualmente essa ligação criativa entre os procedimentos composicionais estudados e as interpretações analíticas, de maneira que essa relação permaneça subjacente na posterior argumentação teórica da tese, cujo foco anunciado está sobre a interpretação narrativa.

Começo por expandir a vigência das duas premissas composicionais para o âmbito criativo da interpretação. Tanto a indefinição de materiais quanto a fluência da forma não são características exclusivas de meu processo composicional, contudo se manifestam também no momento de criar o texto interpretativo, como sugerido anteriormente. Quando começo a escrever sobre determinada peça musical, geralmente ainda não tenho noção precisa das palavras ou sentenças mais relevantes para a definição – premissa (1) –, nem tampouco do caminho ou resultado que essa escrita pode tomar – premissa (2). O momento de começar um texto assim reflete aquele de começar uma partitura, exemplificado na abertura deste capítulo. Isso ocorre por que o conteúdo da interpretação não existe simplesmente como ideia prévia, mas é, em boa parte, moldado através da escrita.

Por ora, reduzindo a discussão a uma perspectiva metodológica fundamental, a questão interessante é conceber o processo criativo da interpretação como um recomeço do processo criativo da composição. Os comentários antes apresentados, referentes às peças de Sciarrino, Chopin ou Ligeti, exemplificam parcialmente essa questão, pois, mesmo decorrendo de aplicações circunstanciais do conceito de realidade musical, já portam ideias

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

5!O próprio conceito de realidade musical, nesse sentido, existe nessa intersecção entre música e interpretação e,

cuja origem se confunde com sua escrita6. É, no entanto, especificamente nas interpretações narrativas, principalmente aquelas mais extensas (apresentadas nos capítulos 2, 5 e 6 desta tese), que a reconfiguração das premissas composicionais se torna plenamente sensível, sendo notável o papel dessas interpretações na concepção (e, em sentido expandido, composição) musical.

Devido à existência da interpretação analítica como processo criativo concomitante ao ato de escrita, o dito antes é, obviamente, de difícil demonstração. Entretanto, e apesar de não constituir o objeto deste trabalho, tal esclarecimento preliminar é importante para que se compreenda o vínculo aqui sugerido entre composição e interpretação analítica em música, inicialmente no que concerne ao meu processo criativo pessoal. Toma-se, por ponto de partida, meu depoimento referente a esse vínculo na criação das obras aqui apresentadas, no entanto o caminho a ser percorrido nos capítulos seguintes dirige-se à sua compreensão numa perspectiva de estudo bem mais abrangente, que engloba a análise e a teoria da música.

Para concluir este capítulo introdutório de maneira a vislumbrar todas as discussões que o sucedem, apresento uma interpretação narrativa que, assim como a simulação sobre Introverso, mostra-se em vias de se fazer. Como em Introverso, não vou perseguir essa simulação até seu final, mas somente até o ponto em que se pode distinguir a trajetória da interpretação, afastando-se da música ‘em si’, cuja identificação remete diretamente ao centro da problemática aqui abordada e, portanto, aos capítulos subsequentes.

A peça que abre o ciclo Breviário das Narrativas Absurdas, para piano e vibrafone, possui caráter marcadamente inquieto, caracterizado pela aglomeração de gestos em lapsos curtos de tempo:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

!

Figura 13: Breviário das Narrativas Absurdas/I, [1]-[7].

Pode-se distinguir três materiais que, justapostos e sobrepostos, resumem quase todo o vocabulário da peça, pelo menos se considerados desde a premissa composicional (1). Têm- se: (A) o ataque seco, geralmente indicado como staccato e vinculado a níveis de intensidade f para cima; (B) a sucessão veloz de notas, geralmente melódica (com uma direção clara, ascendente ou descendente) e vinculada a reguladores de intensidade, seja crescendo ou decrescendo; (C) notas que, uma vez atacadas, ficam ressoando, concedendo à peça sons que se prolongam por sobre a interação rápida de seus gestos, geralmente vinculados a níveis de dinâmica p para baixo.

Para facilitar a distinção de cada um desses materiais e sua interação no desenrolar da peça, pode-se identificá-los por cores na partitura. A título de exemplificação:

!

Figura 14: Breviário das Narrativas Absurdas/I, [12]-[19]. Identificação dos materiais A, B e C na partitura.

Até este ponto, me mantive no âmbito analítico descritivo. Uma descrição que é deliberadamente seletiva e, portanto, subjetiva. Ela não contempla, por exemplo, alguns gestos com perfil melódico, como aquele do piano no [5] (Figura 13) – lento demais para ser material B, rápido demais para ser material C. Entretanto, essa descrição resta pertinente para a obra, pois estabelece um critério de compreensão preliminar e simplificada de quase toda a peça.

O passo seguinte a ser dado, e que de fato abre o caminho da interpretação narrativa, é considerar que o caráter inquieto da peça não se deve simplesmente à sucessão constante dos três materiais indicados, mas a um conflito latente em sua interação. Imediatamente, a ênfase interpretativa recai sobre as diferenças estruturais desses materiais, as quais insinuam as diferentes possibilidades daquilo que a peça é ou pode vir a ser. Ou seja, os materiais A, B e C, uma vez identificados como conflituosos, suscitam, na interpretação, o enigma da realidade musical da peça, o qual deve ser respondido a observando como um todo. Disso decorre que a decisão pelo conflito, conquanto tenha origem numa associação pontual, acarreta

que deverão surgir não somente em função da peça (da partitura, da performance, daquilo que o compositor diz que fez...), mas também ao sabor da própria interpretação narrativa.

É importante observar que, neste ponto, ultrapassa-se despudoradamente a descrição analítica. O ‘conflito’ não existe na peça Breviário das Narrativas Absurdas/I, nem tampouco o enigma de sua realidade musical. Esses elementos existem na intersecção entre a peça e a interpretação e, portanto, não são ‘materiais’. As questões que vêm à tona com sua identificação são muitas e sua formulação e resposta(s) constituem a argumentação desta tese.

Para concluir esta introdução de forma sugestiva, pode-se conjeturar sobre o impacto da narrativa antes esboçada sobre os elementos ambíguos de Breviário das Narrativas Absurdas/I. Já foi mencionado o gesto melódico do piano no [5], mas passo agora diretamente ao trecho mais curioso da peça, no qual esse mesmo gesto se vê ampliado consideravelmente. Trata-se dos compassos que seguem imediatamente os da Figura 14:

!

Figura 15: Breviário das Narrativas Absurdas/I, [19]-[29].

A partir do [19], o material B perde impulso no piano, vai ficando mais lento, mais grave e mais fraco ou, mais simplesmente, vai se aproximando do material C. De certa forma, essa descida inaugura também uma miragem na peça: quando o piano estaciona no [21], o vibrafone avança de maneira semelhante, a princípio intercalando os três materiais, mas logo adiante arrefecendo novamente (indo ao grave, desacelerando, diminuindo). A intercalação,

antes tão rápida e vinculada aos materiais A, B e C, agora se transporta aos dois instrumentos, formando longos gestos individualizados que sugerem outra realidade à peça. Estará ela encontrando sua quietude? Será esse o sinal de protagonismo do material C? A ilusão se desfaz a partir do [28], quando o piano faz o caminho de volta à confusão inicial. Fica no meio da peça esse buraco, que é também uma pergunta sobre o que ela poderia ter sido... mas não foi.

Fica assim esclarecida a permanência da premissa composicional (2) na criação da interpretação narrativa. A fluência da forma mantém-se nela aberta para além da composição, tendo, no entrelaçamento entre música e interpretação analítica, um impacto marcante na composição da experiência musical.