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Capítulo 3 A ESTRADA SE FAZ CORPO:


3.1 Do Ateliê de Pesquisa do Ator à Mímesis Corpórea

Falar do Ateliê de Pesquisa do Ator - APA, é algo extremamente delicado, difícil, sensível e, acima de tudo, pessoal. Não só pelo fato de ele ainda estar em pleno desenvolvimento enquanto escrevo, mas por se tratar de uma experiência ímpar em minha vida, para a qual precisarei muito mais do que os três anos — meu tempo de permanência no projeto

— para absorvê-la de fato. Parece-me que o APA será para mim como aqueles livros que revisitamos ao longo da vida: aparentemente simples, porém com infinitas camadas de compreensão. Na medida em que amadurecemos e lemos novamente, aquelas mesmas palavras nos fazem viver uma nova experiência. Não porque elas mudaram, mas sim porque nós já não somos os mesmos. Logo, as impressões que tenho hoje sobre as práticas que desenvolvemos no Ateliê, provavelmente, não serão as mesmas que terei daqui a alguns anos, afinal de contas, a percepção sobre qualquer coisa pode mudar completamente com o tempo, visto que o sujeito e objeto em questão sempre estarão em pleno processo de atualização.

Não tenho como falar sobre o APA se não for segundo minha experiência (de dois anos, até o momento) enquanto ator-pesquisador deste Ateliê. Embora o SESC-Paraty (RJ) — representado pela Analista de Cultura em Artes Cênicas, Maira Jeannyse — e os nossos orientadores artísticos Stephane Brodt (diretor e ator do Amok Teatro) e Carlos Simioni (fundador e ator-pesquisador do LUME Teatro) estejam me dando todo o suporte possível, há fundamentos que ainda estão, até mesmo para eles, em um campo bastante subjetivo calcado estritamente na prática, de modo que sem o suporte de uma demonstração prática fica inviável tratar teoricamente de alguns temas. Na tentativa de encontrar um viés de abordagem para este trabalho, irei adotar seus princípios relacionando-os com o procedimento metodológico adotado por esta pesquisa: a Mímesis Corpórea.

Tentarei expor aqui as minhas impressões sobre o projeto e as relações que criei entre ele e o meu laboratório-em-vida, ou seja, apenas hipóteses diante das minhas experiências e sensações. É preciso frisar também que tudo nesse projeto ainda está em pleno

processo de amadurecimento, de modo que as nomenclaturas dadas aos exercícios, etapas e momentos específicos do trabalho são passíveis de alterações. Sendo assim, as definições referentes aos procedimentos do APA não devem ser consideradas fixas ou já estabelecidas.

O Ateliê de Pesquisa do Ator teve início em 2014, na cidade de Paraty-RJ (onde se encontra até hoje), dedicando-se a uma pesquisa contínua em módulos de três anos com cada grupo de trabalho. Sediado no Silo Cultural (espaço cultural gerido pelo SESC Paraty), promove encontros presenciais mensais durante todo um fim de semana, com 8 (oito) horas diárias de trabalho. As três turmas que vêm sendo formadas pelo projeto ao longo desses quatro anos são constituídas por atores, pedagogos, diretores, dançarinos, artistas circenses, entre outros, das mais diversas regiões do Brasil e da América Latina. Embora a investigação seja homogênea, procurando trabalhar princípios comuns a todos, não ignora as diferenças culturas que, voluntária ou involuntariamente, são apresentadas por cada um dos integrantes.

Em vista disso, de acordo com a entrevista realizada com Stephane Brodt para esta dissertação, o projeto possui, em linhas gerais, duas frentes de trabalho:

1) Uma pesquisa continuada sobre o trabalho do ator, o APA, que procura investigar caminhos novos e desenvolver com um grupo fixo, um método de trabalho inédito. 2) Uma pesquisa de campo com as comunidades da região, indo ao encontro das diversas tradições e manifestações culturais da “Costa Verde”. [...] A ideia era ter um grupo de pesquisa fixo (o APA) desenvolvendo um trabalho que poderia dialogar e trocar experiências e conhecimentos com as manifestações culturais tradicionais que já existiam

nas comunidades da região. (BRODT, 2017)16

Em sintonia com Brodt, a Analista de Cultura do SESC/Paraty Maira Jeannyse Acunha Paiva, também em uma entrevista realizada para este trabalho17, salienta o caráter

formativo do APA com ênfase na pesquisa e na criação de uma metodologia própria para o trabalho do ator. Maira esclarece ainda que o projeto dialoga com outros núcleos de pesquisa, descentralizando conhecimento e iniciando um polo internacional de intercâmbios. Desta forma, o APA criou oportunidades de encontros com diferentes grupos e artistas, como, por exemplo, Enrico Bonavera (Itália/2014), Grupo Moitará (2014), Patuanú – Núcleo de Pesquisa em Dança do Ator (2016), Ponte dos Ventos (Europa e América Latina/2016) e Tadashi Endo (Japão/2017).

16

Entrevista transcrita no Anexo II. 17 Entrevista transcrita no Anexo III.

Ao longo da minha participação no Ateliê, pude constatar e sentir a pujante força e a sensível presença cênica que vem sendo decantada em mim durante o desenvolvimento dessa pesquisa. Por meio de um conjunto de exercícios, ora propostos por Stéphane, ora por Simioni, mergulhamos no universo da pré-expressividade. O nosso trabalho é norteado por princípios-que-retornam e se desdobram concomitantemente, podendo ser dividido em três momentos: Corpo de Trabalho, Corpo Sensível e Corpo Cênico.

Enquanto a primeira etapa procura tornar o corpo-mente-voz do ator disponível, revisitando os princípios básicos do nosso treinamento, a segunda etapa tenta colocá-lo em “queda livre”, ou seja, leva esse ator a uma improvisação plena onde as técnicas, por mais presentes que estejam, são imperceptíveis até mesmo para o próprio ator. Já a terceira etapa (que será experimentada pelo grupo de trabalho do qual faço parte ao longo de 2018) buscará corporificar os afetos trabalhados

no Corpo Sensível, construindo assim, matrizes18 e prováveis relações cênicas.

Como ainda não trabalhamos o Corpo Cênico no APA, não tenho nenhuma propriedade para falar sobre ele, e tampouco para utilizá-lo como procedimento nesta pesquisa. Em vista disso, procuro na Mímesis Corpórea inspiração metodológica para corporificar os meus afetos grotescos, ocupando, assim, a função desta última etapa que ainda será trabalhada no Ateliê. Desta forma, nos inspiramos e adotamos para nossa investigação somente os dois primeiros momentos trabalhados até agora pelo APA (Corpo de Trabalho e Corpo Sensível), deixando a corporificação dos afetos a cargo da Mímesis.

É sempre bom salientar que não é do interesse desta investigação desenvolver o Corpo Cênico - mesmo que, inevitavelmente, aspectos dessa categoria sejam abordados, devido à recriação das ações físicas mediante a Mímesis Corpórea. Visto que “as ações físicas em Estado Cênico são uma atualização e, portanto, uma recriação de virtuais, e nesse sentido, esse estado não é, ele vai sendo à medida que vai recriando as ações físicas” (FERRACINI, 2012, p. 126), embora posamos chegar ao Corpo Cênico, por ora não trabalharemos o jogo entre atores, a relação ator-plateia e o corpo-dramaturgia, entre outros aspectos próprios da teatralidade, enquanto “lógica do resultado”.

18Segundo a atriz do LUME Raquel Hirson (2006, p.44-45), a matriz “não se trata de uma foto ou um risco no

espaço. Ela é infinitamente mais complexa do que isso. Ela é, muitas vezes, um conjunto de ações mais simples que determinam uma qualidade de energia inerentes a todas. Esta qualidade acaba sendo também denominada matriz. A matriz, portano, não tem um tamanho ou um espaço definido. O que a determina como matriz é o fato de poder ser repetida e codificada pelo ator, configurando-se como material vivo de sua criação. [...] Sendo um

material vivo, a matriz mesmo codificada, é repleta de virtualidades [...] que não se atualizam de maneira