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Capítulo 2 ERA UM CAMINHO QUASE SEM PEGADAS:


2.2 Ecos da mímesis clássica ao longo do tempo

De acordo com o artigo Sobre a questão da Mímesis do professor da USP Victor Knoll (1996), o filósofo alemão Georg W. F. Hegel, através da sua obra Estética, escrita em 1875, torna-se um dos principais nomes na reabilitação do pensamento platônico frente à hegemonia aristotélica. Segundo Knoll (1996), Hegel faz uma distinção entre “obra de arte” e “artefatos técnicos”. Estes, para o filósofo, não seriam de forma alguma vistos como obra de arte pelo fato de se tratar de uma mera cópia técnica da natureza. Já a obra de arte é vista por Hegel (1994) como uma reprodução da natureza, mas não na perspectiva aristotélica de mímesis e, sim, em uma relação de conformidade entre a arte e a verdade natural das coisas. Os elementos artísticos reproduzem as experiências vividas junto à natureza, havendo uma espécie de homoiosis (semelhança), e não de mímesis (imitação). Ao contrário de Aristóteles e Platão, Hegel não busca uma estética baseada no Belo e sim, numa concepção que ele denomina de “Ideal” (KNOLL, 1996).

A constituição deste conceito se prende a uma contradição primitiva: uma luta que se trava entre o sensível e a Ideia. Nestes termos, a obra de arte se põe como um lugar de equilíbrio entre aqueles dois lados. A arte comporta a infinidade da Ideia e a finitude do sensível [...]. O lado espiritual, o conteúdo ou o fundo segundo a linguagem hegeliana, tem necessidade do elemento material para se converter em presença, Assim, o Ideal se define como manifestação sensível da Ideia. O infinito, vivo e atuante, nos limites do finito. (KNOLL, 1996, p. 4)

Em linhas gerais, portanto, uma casa pintada em uma tela é mais do que uma cópia da realidade. O processo de reprodução desta imagem passa por uma zona de turbulência, de adequação, de equilíbrio e de conformidade entre a concepção artística (a pintura) e o objeto real (a casa). A obra de arte passa a ser uma possível presença finita e sensível da verdadeira concepção ideal e abstrata da casa, de modo que não busca mais o Belo e, sim, o Ideal (o equilíbrio entre o mundo sensível e o das ideais). Esta casa Ideal pintada na tela, porém, é uma verdade provisória, pois conforma-se às influências do momento histórico em que é concebida (KNOLL, 1996).

Na primeira metade do século XX, o filósofo alemão Walter Benjamin, por sua vez, influenciado pelo idealismo alemão de Kant e Hegel, não entendia a mímesis como uma cópia, mas como produtora de semelhanças. O homem produz semelhanças porque reage aos estímulos já existentes na sociedade. No entanto, segundo Benjamin, tais estímulos são mutáveis, de tal forma que o que é reconhecível hoje possivelmente não o será amanhã

(GAGNEBIN, 1990).

A originalidade da teoria benjaminiana está em supor uma história da capacidade mimética. Em outras palavras, as semelhanças não existem em si, imutáveis e eternas, mas são descobertas e inventariadas pelo conhecimento humano de maneira diferente, de acordo com as épocas. Assim, reconhecemos hoje só uma parte mínima das semelhanças, comparável à ponta de um iceberg, se pensarmos em todas as semelhanças possíveis (GAGNEBIN, 1990, p. 14).

Seguindo este raciocínio, a mímesis não seria, então, um reflexo da realidade, mas uma espécie de refração do real - uma similaridade que pode estar mais ou menos distante do modelo original. Gagnebin (1990) entende que para Benjamin a semelhança pode ter um novo significado, uma nova forma de expressão, sem perder sua similaridade com o objeto original. A essa reformulação mimética, o filosofo dá o nome de “semelhança não sensível”.

É, portanto, a semelhança não sensível que estabelece a ligação não somente entre o falado e o intencionado, mas também entre o escrito e o intencionado, e entre o falado e o escrito. E o faz de modo sempre novo, originário e irredutível. (BENJAMIN, 1985, p. 111)

Essa “semelhança não sensível”, ou capacidade de transformação mimética, é sobretudo um procedimento prazeroso de educação e de aprendizado, análogo aos jogos e brincadeiras infantis. Segundo o filósofo, as crianças não copiam ou imitam as coisas conforme seus signos. Este poder mimético, próprio da infância, transforma o objeto “original”, dando-lhe uma nova similaridade, sem abandonar, porém, suas configurações iniciais. A partir da estrutura de um objeto ou de uma imagem pode-se estabelecer semelhanças, atribuindo a eles novos significados.

Contrariando os preceitos aristotélicos e fazendo uma analogia com a nossa própria vida, Benjamin ainda acredita que um objeto mimetizado, como também o nosso presente, não é linear, nem muito menos consequente, de modo que nada se repete de fato, o passado não volta, o que há são semelhanças d’outrora: “semelhanças não sensíveis”. No curto prazo, mesmo diante das infinitas possibilidades de semelhanças, não há um afastamento total das características originais do objeto, da imagem ou de um determinado fato do passado. No entanto, com o passar do tempo as semelhanças podem chegar a não ser mais reconhecíveis por estarem muito afastadas do seu objeto original.

De acordo com a tese de livre docência do professor da USP Luiz Fernando Ramos (2012), Mímesis espetacular: a margem da invenção possível, as reinterpretações modernas da estética de Platão e Aristóteles ganharam protagonismo desde o século XIX e culminaram nas vanguardas artísticas europeias no século XX, evidenciando o que ficou popularmente conhecido como “crise da mímesis” ou “crise da representação”. As vanguardas serviram de mola propulsora para a modificação das ideias, da estética, das motivações, dos processos e dos resultados artísticos naquele período. O teatro, incentivado por essas renovações vanguardistas, inicia um processo de negação das práticas miméticas. Aspectos clássicos que foram retomados e desenvolvidos pelo drama burguês do século XIX (como a totalidade, a ilusão e a representação) são lentamente substituídos por uma arte antimimética que retira o texto (o mythos, segundo Aristóteles) do centro gravitacional da cena, passando o protagonismo para o “espetacular” (o opsis, de acordo com a concepção clássica).

Nesta hipótese, criar uma cena, menos do que tecer um novelo de ações, como sugere a metáfora tradicional da criação ficcional e dramática, seria constituir uma sintaxe de superfícies, tessitura de cores e imagens, apresentação de objetos não previamente identificados. Na cena a significação, se houver alguma, se afirmaria, pelas diversas materialidades que se alternassem numa composição, ou pelas massas sonora e visual que se apresentassem muito mais como construções abstratas do que como narrativas configurando histórias. (RAMOS, 2012, p. 14)

Esta inversão hierárquica entre o mythos e opsis, segundo Ramos (2012), assemelha-se a uma visão platônica, onde não é exaltada a imitação ou o simulacro, e sim a subjetividade própria de uma composição abstrata, através de elementos cênicos que não possuem necessariamente um significado ou um sentido a ser reconhecido. Esta “obra aberta” e antimimética, como é denominada por Ramos (2012), surge como um desdobramento da própria mímesis.

Esse novo modelo, que já vinha sendo alimentado por estímulos advindos do naturalismo do século XIX, vai contra as próprias bases e princípios clássicos, separando, assim, a representação da vida. Desta forma, é compreensível que haja uma espécie de “fantasia pós-teatral”, na qual não existe um rompimento com a mímesis, mas uma nova fase contemporânea da expressão mimética.

Em vista disso, é sempre bom reforçar que todas as transições ao longo da história, referentes ao “fazer artístico”, de uma determinada geração para outra, foram extremamente lentas e sutis. As mudanças miméticas não fogem a essa regra, ao ponto de percebermos ainda fortes indícios do teatro dramático em meio às criações artísticas na nossa cena contemporânea, já profundamente marcada por tendências que Lehmann (2007) denominou de “pós-dramáticas”.

Esse movimento antimimético próprio do teatro contemporâneo passa a ser um jogo aberto onde o espectador contribui com a obra a partir das suas referências e subjetividades pessoais, imergindo cada vez mais no universo do opsis. A cena teatral passa ser um objeto não identificável, deixando de oferecer generosamente significados e leituras prévias, despertando o espectador de uma ilusão dogmática proveniente da linearidade do drama. A verossimilhança, uma das características fundamentais da mímesis aristotélica, “não é mais previamente construída e testada na sua potência de convencer, mas é construída intimamente pelo leitor/espectador de acordo com suas próprias chaves de leitura” (RAMOS, 2012, p. 53). Frente a isto, com o aumento da adesão à prática antimimética pelos modernistas e contemporâneos, começa a surgir uma rejeição da ideia

de representação, em favor da concretude da cena. Desse modo, o ator, o principal símbolo da mímesis na arte da cena, começa a perder o seu protagonismo, uma vez que ele inevitavelmente já traz em seu corpo uma série de significados representativos, mesmo quando se faz presente através de elementos virtuais.

Ainda segundo Ramos (2012), desde a Poética de Aristóteles a mímesis está ligada à semiologia, ou seja, à representação de um mundo reconhecível. Todavia, a partir do pensamento kantiano, o teatro vem substituindo a semiótica por uma dimensão sintática, negando referentes, dando espaço aos significantes imediatos e construindo materialidades provisórias ao invés de elaborar sentidos finais.