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Capítulo 1 LEMBRANÇAS QUE ALIMENTAM:


1.2 O grotesco subjaz ao Belo

1.2.1 O realismo grotesco

Estudiosos afirmam que na sociedade primitiva já era possível notar manifestações culturais através de figuras humanas disformes, híbridas, desviantes, que se assemelhavam com as que seriam, posteriormente, nomeadas de grotescas. Segundo Eco (2007), nos tempos antigos, Satanás, Lúcifer ou Satã já eram representados em diferentes tradições e de diferentes formas. Eram vistos como seres intermediários, fazendo a mediação entre o homem e o divino. Tais figuras, quando malévolas, possuíam aspectos monstruosos, como, por exemplo, o monstro Ammut do Egito Antigo (híbrido de crocodilo, leopardo e hipopótamo) e o diabo Al-Saitan na cultura islâmica, que era descrito com características animalescas. Além disso, de acordo com a obra O grotesco de Wolfgang Kayser (2003), tais imagens que contrariavam a ordem do Belo e do Sublime também já tinham sido observadas em utensílios domésticos, como também em construções dos antigos povos chineses, astecas, germânicos, entre outras civilizações.

De acordo com Kayser (2003), no fim do século XV em Roma e, posteriormente, em outras regiões da Itália, foram feitas escavações em antigas grutas que até então eram desconhecidas. Nessas construções soterradas, foram encontradas ornamentações que divergiam das pinturas naturalistas vigentes na época. Essas imagens, que expressavam monstros, figuras abstratas e seres que eram metade vegetal, metade humano, rompiam com os padrões de beleza e proporcionalidade acima mencionados, e provocaram o estranhamento nos artistas e apreciadores da arte ao longo do século XVI. Tais pinturas receberam o nome de la grotesca e grotesco como derivação da palavra grota - “gruta” em italiano.

O conceito de grotesco, associado a essas figuras que desestabilizavam a ordem com sua leveza e senso de liberdade, posteriormente passou a designar também comportamentos, corporiedades e expressões populares. “Pode-se afirmar que as mesmas características reconhecidas em imagens pintadas ou esculpidas do grotesco se associam também a sua manifestação corporal” (TONEZZI, 2011, p. 43).

Na Idade Média, por exemplo, havia a antiga festa da colheita que reverenciava os demônios do mundo inferior por ajudarem na germinação dos alimentos que ainda se encontravam sob a terra. Este evento era a festa mais popular da época, acontecia ao ar livre nas vias públicas e possuía como temas principais: o sexo, a comida e o poder. Tal

comemoração ordinária e profana, desde a Idade Média até os dias de hoje, passou a ser comemorada através das festividades carnavalescas.

Durante o carnaval nas praças públicas a abolição provisória das diferenças e barreiras hierárquicas entre as pessoas e a eliminação de certas regras e tabus vigentes na vida cotidiana criavam um tipo especial de comunicação ao mesmo tempo ideal e real entre as pessoas, impossível de se estabelecer na vida ordinária. Era um contato familiar e sem restrição, entre indivíduos que nenhuma distância separa mais. (BAKHTIN, 1987, p. 14)

Esse caráter familiar citado por Bakhtin não possui relação alguma com a vida formal. Aqui, ressalta-se o fato de certos ritos antigos ainda serem vistos no carnaval medieval e, posteriormente, incorporados na vida cotidiana. No entanto, estes ecos d’outrora estão muito mais ligados à forma do que ao conteúdo. As blasfêmias e grosserias, por exemplo, que tinham um valor mágico e propiciatório nos ritos antigos, sobreviveram na linguagem familiar da praça pública, mas desprovidas desse seu caráter místico.

No que se refere à linguagem, as suas hierarquias e tabus são abolidas durante o carnaval (visto que nesse contexto todos são iguais). Essa prática acaba se expandindo para o cotidiano, mas perde esse caráter universal (todos são iguais) para adquirir um caráter discriminatório (com pessoas tidas como iguais falamos de um jeito, com pessoas tidas como superiores falamos de outro). A “linguagem familiar da praça pública caracteriza-se pelo uso frequente de grosserias, ou seja, de expressões e palavras injuriosas […]” (BAKHTIN, 1987, p. 15). Logo, quando utilizadas durante a fala formal, são reservadas a um conjunto de expressões tidas como proibidas e, assim, não só elas são eliminadas, como também as pessoas que as proferem são diminuídas pela sociedade. Isso talvez seja pelo fato de esses “palavrões” auxiliarem na manutenção de uma atmosfera de liberdade, diluindo os tão caros e rígidos padrões de poder através das suas expressões cômicas e de baixo calão.

Em sintonia com Tonezzi (2011), acreditamos que, da mesma forma que as antigas pinturas grotescas passaram a ser vistas na corporeidade humana, a linguagem familiar carnavalesca também se misturou com a comunicação formal. Logo, defendemos que as manifestações corporais oriundas destas festas populares também podem, mesmo isoladas e fora de contexto, contribuir na atualização do corpo cotidiano; de modo que a linguagem corporal e familiar da carnavalização também influencia os corpos tidos como Belos (BAKHTIN, 1987).

Percebe-se, então, que no carnaval da idade média, os elementos chamados grotescos, que são normalmente vistos sob uma luz negativa na sociedade, eram valorizados, e os elementos subalternos da sociedade se encontravam em iguais condições com os privilegiados. Esse “mundo ao contrário” do carnaval encontra ecos na sociedade contemporânea, que mesmo muito diluídos ainda podem ser observados.

A imagem medieval do grotesco que durou até o Renascimento sempre possuiu uma relação com as festas populares, de modo que seus traços estavam associados ao rebaixamento corporal e material, aproximando-se da terra, onde a vida é semeada e se degenera, concomitantemente. Este grotesco que é visto como realista a partir desta perspectiva popular olha o ser humano de um ponto de vista material e puramente orgânico, para o qual viver significa estar morrendo pouco a pouco todos os dias. Trata-se de um processo ambivalente, no qual esse movimento para baixo é, ao mesmo tempo, criação e destruição absoluta.

A imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado de transição, de metamorfose ainda incompleta, no estagio da morte e do nascimento, do crescimento e da evolução. A atitude em relação ao tempo, à evolução, é um traço constitutivo (determinante) indispensável da imagem grotesca. Seu segundo traço indispensável, que decorre do primeiro, é a sua ambivalência:

os dois polos da mudança — o antigo e novo, o que morre e o que nasce, o principio e o fim da metamorfose — são expressados (ou esboçados) em uma ou outra forma. (BAKHTIN, 1987, p. 21-22, grifos do autor)

O grotesco vê o mundo como uma estrutura em pleno amadurecimento, isto é, ao mesmo tempo em que nasce e se desenvolve, apodrece a cada dia. Devido a esta atitude ambivalente, representa em suas imagens a morte e a vida ao mesmo tempo. Bakhtin (1987) nos traz uma ótima referência que exemplifica claramente esta ambivalência: as memoráveis terracotas de Kertch4 através das velhas grávidas, onde se pode ver nitidamente a grotesca relação paradoxal entre a gravidez (vida) e a velhice (morte). Nesta obra, a velhice não se apresenta de forma acabada e saudável (contrariando os preceitos clássicos do Belo), pelo contrário, se mostra como um ser em decomposição, disforme diante da sua crua e natural condição de estar perto da morte.

4 “Entre as célebres figuras de terracota de Kertch, que se conservam no Museu L’Ermitage de Leningrado, destacam-se velhas grávidas cuja velhice e gravidez são grotescamente sublinhadas. Lembremos ainda que, além disso, essas velhas grávidas riem. Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: É a morte prenhe, a morte que dá à luz” (BAKHTIN, 1987, p. 22-23).

Figura 2: Terracotas de Kertch

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Fonte: https://tendimag.com/

As terracotas de Kertch materializam a contradição típica do grotesco, colocando as velhas com corpos embrionários (grávidas), fazendo-as também significar a geração de uma nova vida. Assim, segundo Bakhtin (1987), as terracotas de Kertch enaltecem a incompletude da vida, sendo essas obras verdadeiros exemplos da materialização das imagens grotescas no corpo humano.

Assim, o realismo grotesco expressa o sentido carnavalesco da sociedade. Tratando-se de uma estética festiva onde não há protagonismos ou hierarquias, todas as partes da imagem grotesca compõem ativamente um corpo uno. O grotesco popular, da mesma forma que o carnaval, inverte as hierarquias, procura uma igualdade social (independente do sexo, idade ou classe social), rompe com as etiquetas e os ditos “bons costumes”. O sagrado e o sublime (religiões, entidades e símbolos considerados canônicos) são parodiados, sendo seus valores relativizados. Regras da convivência social são ofuscadas pelos excessos carnais, referentes ao ato de comer, beber, excretar e copular.

Portanto, em suma, percebemos que a ideia de carnavalização desperta o que há de mais autêntico na natureza humana: a sua ambivalência. Acreditamos que esse corpo carnavalizado, com suas características desviantes, pode observar com mais clareza as deformidades do mundo e das suas relações sociais. Nesse processo, há uma espécie de retroalimentação, na qual um objeto, uma imagem ou um corpo grotesco modifica o meio ao mesmo tempo em que este mesmo meio o alimenta, reforçando sua presença desviante.

Como já vimos no inícios deste capítulo, segundo a noção de dialogismo de Bakhtin (2016), quando nos relacionamos com qualquer enunciado, produzimos inevitavelmente uma atitude responsiva. Esta atitude pode ser imediata ou de caráter retardado. Assim, ao observarmos as terracotas de Kertch, por exemplo, desenvolvemos uma resposta a elas, a partir dos seus traços singulares. Mesmo sendo essa resposta pessoal e impossível de ser determinada a priori, estará contaminada pelo universo grotesco. Seria como se o grotesco que há no espectador (que subjaz ao seu Belo), seja ele físico ou imaginário, fosse excitado a partir das singularidades observadas, potencializando assim, não só as suas próprias deformidades (físicas ou psicológicas), como também multifacetando os desvios originais da obra observada.