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Capítulo 2 ERA UM CAMINHO QUASE SEM PEGADAS:


2.5 Os princípios-que-retornam

Eugenio Barba, na sua juventude, foi imigrante na Noruega. Por não conhecer a língua local, acabou aumentando a sua sensibilidade a fim de compreender a linguagem corporal e as “expressões involuntárias” das pessoas daquela região. Esta circunstância aguçou sua sensibilidade para as corporeidades, o que lhe permitiu, posteriormente, observar a linguagem não verbal do ator oriental e perceber a recorrência dos mesmos princípios artísticos trabalhados por este ator em diferentes expressões cênicas. Ao notar a importância destes elementos “invisíveis”, ele os nomeou de: princípios-que-retornam. Dentre esses princípios, que estão na base da pré-expressividade, destacam-se: o desequilíbrio em ação, a dança das oposições, a equivalência e o corpo decidido.

2.5.1. Desequilíbrio, ou equilíbrio de luxo

Em busca deste corpo extracotidiano, o desequilíbrio corporal se torna um dos importantes fatores a serem trabalhados. Eugenio Barba observa esse princípio, por exemplo, no Teatro Nô (através da técnica dos “pés que lambem”), no andar do Teatro Balinês, no Kabuki (“dança do caminhar”), no Balé Clássico, entre outras referências. Ao mesmo tempo, ele nota que esse desequilíbrio aparece no trabalho que já vinha sendo desenvolvido por seus atores.

Ao invés de pensar em termos de desequilíbrio, mais preciso seria falar em um equilíbrio precário - ou “equilíbrio de luxo” como é nomeado em seus estudos -, isto é, um corpo que lance mão de um desequilíbrio controlado onde o ator possa manipular a “tensão” da possiblidade da queda, podendo chegar, se for o caso, a um corpo ereto, aparentemente “equilibrado”, porém, internamente instável e em constante suspensão.

2.5.2. Dança das oposições

Segundo Barba e Savarese (2012), o ator mostra sua vida ao espectador através de um conjunto de forças contrárias dentro do seu próprio corpo - vetores opostos que impulsionam a estrutura física para lados distintos. Esta dinâmica que desestabiliza a corporeidade do indivíduo é nomeada “dança das oposições”. Nesta prática, o medidor do movimento certo é o mal-estar. Se o corpo não está desconfortável, o movimento não está correto. Porém, atenção, isso não quer dizer que a dor é bem vinda ou sinaliza o caminho correto a ser seguido. Afinal de contas é nítido quando o ator apresenta um corpo extracotidiano, não habitual, intencionado e com uma desconformidade física, mas, sobretudo, feliz, saudável e disponível para o risco.

2.5.3 Equivalência

Ver uma flor dentro de um belo vaso pode proporcionar ao observador uma atmosfera de harmonia, paz e tranquilidade. Quando um artista pinta esta imagem em sua tela, ele cria um “estado de espírito” artificial, fruto de uma paisagem fictícia. Pode-se seguir este mesmo raciocínio em relação a um ator que interpreta um personagem. Não há um produto autêntico. A flor pintada e o personagem não são reais, eles se fazem vivos através da arte. Tratando-se, portanto, de uma Ikebana: tornar-se vivo através da arte (BARBA, 1994).

Etienne Decroux acredita que da mesma forma que se tenta recriar a vida de uma flor através de uma tela, o homem pode reviver ações retirando-as do seu verdadeiro espaço e tempo. Para isto, desenvolveu uma noção baseada em tensões contrárias, equivalentes àquelas das ações cotidianas. Em vez de construir tensões e forças coerentes com a que a ação pede, o ator as aplica inversamente, buscando não perder a veracidade e o realismo da situação sugerida. De modo que “tudo acontece como se o corpo do ator fosse descomposto e recomposto com base em movimentos sucessivos e antagônicos. O ator não revive a situação; recria o vivente na ação” (BARBA, 1994, p. 53).

Um exemplo desta equivalência, destas intenções contrárias que rompem com a estrutura habitual do cotidiano, é quando a mestra de Katzuco Azuma propõe “matar a

respiração”, que significa reter a expiração relaxando paulatinamente. Um outro exercício é “matar o ritmo”, ou seja, fazer uma força, uma tensão desigual em relação à fala ou ao ritmo interno do movimento, rompendo com a fluidez e a linearidade das ações.

Esta ideia de recriar ações equivalentes à verdadeira natureza das coisas se relaciona com a noção de Mímesis Corpórea discutida anteriormente. Esta relação se torna mais evidente quando nos aproximamos da ideia de “refração mimética” e da (re)criação de “semelhanças não-sensíveis”. A Mímesis trabalha como o princípio da “equivalência” proposto por Eugenio Barba, “pois busca imitar não somente os aspectos físicos, mas também orgânicos, encontrando equivalências” (FERRACINI, 2001, p. 204). Um outro ponto de concordância entre esses conceitos é a busca pela recriação do vivente na ação. Esta ideia que é própria da equivalência de Barba se assemelha com a recriação da potência de vida proposta pela Mímesis Corpórea.

2.5.4 Corpo decidido

O “corpo decidido” é mais um princípio-que-retorna destacado por Eugenio Barba. O diretor possui uma certa dificuldade em conceituar este princípio através de palavras, por isso se baseia em algumas experiências práticas, como a proposta pelo físico dinamarquês Niels Bohr, para tentar passar a ideia do que poderia ser este referido estado corporal.

Apaixonado por filmes de Western, o grande físico dinamarquês Niels Bohr perguntava-se por que, em todos os duelos finais, o protagonista era o mais veloz em disparar, ainda que seu adversário fosse o primeiro a levar a mão à pistola. Bohr se perguntava se atrás dessa convenção não havia alguma verdade. Concluiu que sim: o primeiro é mais lento porque decide disparar, e morre. O segundo vive porque é mais veloz e é mais veloz porque não deve decidir, está decidido. (BARBA, 1994, p. 57, grifos do autor)

Estar decidido, como o próprio termo fala, é já ter agido antes mesmo de pensar em decidir. É atirar antes de pensar em puxar o gatilho. É quando “a indicação de uma enérgica disponibilidade para a ação se mostra como velada por uma forma de passividade” (BARBA, 1994, p. 54). Quando o ator se encontra neste estado de ação assemelha-se, segundo Barba, com um princípio utilizado pelo Teatro Nô: jo-ha-kyu.

Inspirado na mestra Katzuko Azuma, o diretor italiano utiliza deste termo para explicar quais estágios corporais que o ator terá que cumprir a fim de “ser” esse corpo decidido.

O jo-ha-kyu se refere a três fases da ação: JO, primeiro momento, trata-se de duas forças, uma que tenta crescer e outra que retém justamente este crescimento. HA, refere-se ao momento exato em que esta tensão (força) inicial é liberada. KYU, é a culminância, a execução, o desdobramento das forças que finaliza atingindo novamente o JO e, dessa forma, reinicia-se o processo.

Este corpo decidido expande o trabalho pessoal do ator. No Teatro Nô, utiliza-se também deste procedimento como metáfora para a condução do espetáculo como um todo.

Aplica-se a cada ação do ator, a cada um dos seus gestos, à respiração, a música, a cada cena, a cada drama, à composição de uma jornada de Nô. É uma espécie de código de vida que percorre todos os níveis de organização dos teatros e das músicas clássicas do Japão. (BARBA, 1994, p. 56)