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6 RESULTADOS E DISCUSSÃO

6.5 A chegada do desenvolvimento: transformações e impactos no

6.5.6 Do canto das nambus ao barulho do trem: a face perversa do

Figura 34 - Trem cuja linha foi construída em local que antes havia uma “mata” com profusão de animais utilizados na alimentação, através da prática da caça e mata remanescente em ares contíguas

Fonte: Fotos produzidas pelo grupo de pesquisa

Quando foi passada essa linha do trem a caça começou a faltar. Com o barulho os animais tão fugindo. E agora que vão fazer a duplicação da linha de trem, a transnordestina, aí os bichos vão fugir cada vez mais. (participante do grupo focal).

O que está mais afetado no ambiente são as lagoas, as nascentes, porque quando se instala uma empresa o primeiro que faz é terraplanagem, aí com aquele aterro, aterra a lagoa, acaba com os peixes, as plantas, os pés de murici. (participante do grupo focal).

Essa mata era uma coisa medonha de grande, [...] a gente passava e escutava aquele tinido das “cotiazonas”, nambu, e hoje está tudo acabado. Vem uma rede elétrica aí, estão cavando as bases. É uma devoração medonha das matas. É o desmatamento! (participante do grupo focal).

Tem uma casa ali que está alugada para as firmas [...] os trabalhadores da firma tão levando aqueles banheiros pra lavar lá. Aí bota tanto produto químico pra diminuir o cheiro, afeta todo mundo, até quem está do lado de lá que é o caso da minha casa. Aí eles lavam os banheiros e a água corre no destino das lagoas. O cheiro de cloro dá para sentir lá de casa. (participante do grupo focal).

[...] a estrada que fizeram, cada vez que passa o carro cobre tudo de poeira. A poeira é grande! Todo mundo perguntando com quem pode falar pra ver se diminui isso ali. A poeirazinha parece pó de palha. (participante do grupo focal).

Eu acho que [...] vai piorar, [...] quando [...] começar essas outras firmas a trabalhar, desmatar. A poeira [...] se espalha no meio do mundo. [...] os que moram perto da Lagoa Seca já estão em tempo de não agüentar, de tanta zoada e poeira, aonde tem aquela fábrica de cimento [..] que desce aquela poeira no meio do mundo. (participante do grupo focal).

A pesca é outra atividade que está pouca. Só os mais velhos que ainda tão indo pescar. Os jovens tão muito envolvidos com o trabalho das firmas. (participante do grupo focal).

Tem muita mais gente hoje com problema respiratório. E problema de pele. Tem muita saída de medicamento pra esses problemas, e muito encaminhamento pro hospital, tem afetado geral, adulto e criança. (participante do grupo focal).

O povo usava muito o leite de janaguba prá gastrite. Hoje se procura um pezinho e não encontra e quando encontra a pessoa se sente o dono e só ela pode tirar o leite. (participante do grupo focal).

É fato corrente entre as pessoas da comunidade de Bolso que são muitas perdas e prejuízos em decorrência da chegada dos empreendedores e todo o arsenal que lhes acompanham. Lamentam a destruição das matas que supriam a comunidade como fonte de alimentos e plantas medicinais. Preocupam-se com o aterramento das lagoas que muda o curso das águas e restringem fontes importantes de alimentos como os pescados.

A transição nutricional que acontece em países em desenvolvimento em que os alimentos tradicionais, in natura, vêm sendo substituídos por alimentos processados de alta densidade energética e pobre em nutrientes, é um fenômeno que começa a acontecer em Bolso. O acesso aos salários pagos pelas empresas e as dificuldades

para a produção de alimentos, seja pela degradação da natureza, seja pela carência de mão de obra de trabalho para a lavoura e/ou outras possibilidades de suprir a alimentação com pescados e caças, atividades “de tradição”, conforme relatado pelo grupo são condições que favorecem a transição nutricional para essa comunidade.

Além das condições materiais de subsistência serem modificadas pelas alterações na paisagem e nas relações de usufruto na utilização dos recursos ambientais no território, evidencia-se nas falas dos sujeitos do estudo as mudanças relativas à apropriação simbólica, decorrentes das práticas culturais e do sistema de percepções e representações coletivas do mundo material (ACSELRAD, 2004). Conforme Acselrad as práticas de apropriação cultural do mundo material são aquelas para além das práticas de apropriação movidas por interesses utilitários e econômicos e relativos à diferenciação social dos indivíduos e dizem respeito, portanto, aos significados atribuídos por estes na realização de suas diversas atividades.

Há a presença de racionalidades não hegemônicas na ocupação e uso do território pelo grupo étnico Anacé e populações tradicionais que habitam em Bolso, que opõem ordens e relações sociais diferentes com uma apropriação simbólica do território (ACSELRAD, 2004).

Os sons das cotias e cantos dos nambus serem substituídos pelo barulho do trem representam muito mais para a população de Bolso que mudanças nas estruturas produtivas utilizadas pela comunidade.

Outras repercussões pelas alterações ambientais relacionadas à apropriação do território pelos empreendedores são relatadas pelo grupo. A contaminação das águas e poluição do ar são apontadas como possibilidades presentes, mesmo antes do funcionamento das termelétricas, siderúrgica e refinaria prevista para o território.

Figura 35 - Mostra a instalação de uma indústria (Tortuga) sobre um complexo hídrico de lagoas e riachos associados ao Tabuleiro Pré-litorâneo. Neste setor encontravam-se famílias indígenas e não indígenas que foram retiradas para locais de assentamento. De acordo com o Plano Diretor do CIPP esta área foi destinada para a Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP) e Usina Ceará Steel (UCS), entre outras que fazem parte do setor ZPE I. Um sistema lacustre denominado de Baixa do Murici foi completamente extinto pelas atividades de desmatamento e terraplenagem

Fonte: imagem e informações retiradas do Parecer Técnico nº 01/09 de 23 de abril de 2009, elaborado pelo Prof. Jeovah Meireles e analistas periciais do MPF Sérgio Brissac e Marco Paulo Schettino