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DO CONTRATO NATURAL: O TERRITÓRIO DA GESTÃO AMBIENTAL

5. O TERRITÓRIO DO PROJETO NOSSA RUA

5.4 DO CONTRATO NATURAL: O TERRITÓRIO DA GESTÃO AMBIENTAL

As discussões da comunidade da Vila Manaus sobre problemas ambientais locais marcaram uma mudança paradigmática da abordagem e nos determinantes para lutas e conquistas sociais.

Nos anseios e expectativas dos moradores em relação ao alcance do Projeto Nossa RUA é possível vislumbrar uma nova ética com a politização da relação sócio-ambiental, (homem-ambiente) natureza-sociedade.

O ativismo ambientalista tem um papel fundamental nesse processo de politização: quando, através de suas lutas e demandas, reivindica o estatuto de sujeito de direito para a natureza e as gerações futuras, propõem o novo, o contra-hegemônico.

O projeto “Nossa RUA”, seus atores sociais envolvidos, Comunidade – Universidade, está apontando para uma nova relação sócio-ambiental, ainda que estejam nos marcos das relações sociais presentes. O ambientalismo proposto pela ação conjunta representa, pois, uma nova utopia.

A Universidade, ao interagir com a comunidade, não se restringe apenas ao papel de retransmitir informações sistematizadas e organizadas, mas constitui-se num lugar de cultivo e reflexão crítica sobre a realidade, geradora de saberes novos que promovam a mudança e a transformação social. Ao estar inserida na sociedade e analisando todos os aspectos do complexo cultural, cujas expressões podem ser observadas e transmitidas de uma sociedade a outra, de uma geração para outra, a Universidade procura respeitar a inseparabilidade entre o Homem e seu meio social, seu espaço e territórios de ação observando a experiência humana, para poder explicá-la.

Nesse ponto de vista, um “contrato natural”, como o proposto por SERRES (1991), também se inscreve nesse projeto utópico, no projeto Nossa RUA, enquanto proposta de gestão ambiental–territorial do espaço urbano construído?

Para introduzir a proposta de um contrato natural, SERRES parte da descrição de um quadro do famoso pintor espanhol Goya:

“Dois inimigos brandindo bastões lutam, em areias movediças. Atento às táticas do outro, cada um responde golpe a golpe e dá a sua réplica à esquiva(...) A cada movimento, um buraco viscoso os engole de modo que eles se enterrem juntos, aos poucos. Em que ritmo? Depende de sua agressividade: quanto mais quente a luta, mais vivos e secos os movimentos que aceleram o enterramento gradual. Os beligerantes não adivinham o abismo em que se precipitam: ao contrário, de fora, não o enxergamos muito bem (... ) Quem vai morrer nos perguntamos? Quem vai ganhar, pensam eles e nos perguntamos mais ainda? Apostemos (...) Mas, numa terceira posição, exterior à contenda, percebemos um terceiro lugar, o pântano, onde a luta se encerra (...) Aqui, na mesma dúvida acerca dos duelistas, os apostadores arriscam perder juntos, como os lutadores, já que é mais provável que a terra absorva os últimos antes que eles próprios e os jogadores tenham liquidado sua conta” (SERRES, 1991, p. 11-2).

Aqui, o mundo ainda aparece como ameaçador, podendo facilmente triunfar sobre os duelistas. “Sempre nos interessamos só pelo sangue derramado”, continua SERRES (1991, p.

12), nunca se consideram os danos infligidos ao próprio mundo; entretanto, “... a terra, as águas e o clima, o mundo silencioso, as coisas tácitas colocadas outrora como cenário em torno das representações comuns, tudo isso que jamais interessou a alguém, brutalmente, sem aviso, de agora em diante estorva as nossas tramóias”. A natureza reaparece em nossa cultura, irrompe com uma idéia local e vaga, cosmética. Outrora a relação era local, tal rio, tal bairro, tal pântano, global agora, o planeta Terra.

As mudanças globais que hoje assistimos, observa SERRES, transformam o vigor do mundo em precariedade e fragilidade, colocando-o na posição de vítima; o que se constata é que a totalidade da Terra está em risco: as mudanças climáticas, os problemas decorrentes da industrialização, da pobreza, das aglomerações urbanas levam à destruição do mundo e à extinção automática. As mudanças globais e os desequilíbrios do planeta apontam para riscos e perigos de uma escala de grandeza e complexidade que ainda não conhecemos. E SERRES levanta a questão: “(...)a partir de que limiar e de que data ou limite temporal aparece um risco maior? Na ignorância temporária de respostas para estas perguntas, a prudência - e os políticos perguntam o que fazer? Quando fazer? Como e o que decidir?”.

Então, sob a ameaça de uma “morte coletiva”, SERRES (1991, p. 25) anuncia a necessidade de um novo pacto; “um novo acordo prévio, que devemos fazer com o inimigo do mundo humano: o mundo tal como está. Guerra de todos contra tudo”.

Nas discussões dos problemas ambientais de nosso dia-a-dia, no ponto de vista da degradação ambiental como um “problema fundamental” da modernidade, ou na perspectiva de uma situação de risco imposta à “totalidade da Terra”, o que se discute é a necessidade de uma nova relação que imprima e legitime direitos até então não declarados, de uma ética ambiental e solidariedade com as gerações futuras.

No aproveitamento racional da natureza na perspectiva utópica de uma “boa sociedade” SACHS (2000, p. 49) apresenta o imperativo condicional necessário da “ética da solidariedade sincrônica com a geração atual a que se “acrescenta a solidariedade diacrônica com as gerações futuras e, para alguns, o postulado ético de responsabilidade com o futuro de todas as espécies vivas na Terra. Em outras palavras, o contrato social no qual se baseia a

governabilidade de nossa sociedade deve ser contemplado por um contrato natural, como proposto por Michel Serres.

Enquanto para LEFF (2000) é uma nova resignificação do mundo, para Serres trata- se de rever o primitivo contrato social, que ignora e silencia sobre o mundo, e assinar um novo pacto: um contrato natural. Um contrato desse tipo nos levaria a considerar o ponto de vista do mundo em sua totalidade. Com efeito, um contrato natural, ou antes, uma nova forma de relacionamento com o mundo, também é parte de um projeto utópico.

Em última instância, contrato social e contrato natural são as mesmas leis, ambas se confundem com a Justiça, natural e humana. Ambas têm entre si “a mesma solidariedade daquela que liga os homens ao mundo e o mundo aos homens” (SERRES, 1991).

É a construção de uma nova relação sócio-ambiental, calcada em um tipo novo de cidadania, a cidadania planetária, e a responsabilidade intergeracional em respeito aos direitos de vida com qualidade para as gerações futuras. No entanto, como afirma SACHS (1993), “a solidariedade para com as gerações futuras só faz sentido como um complemento à solidariedade para com aquelas que hoje são marginalizadas: o Contrato Natural entre os Povos e a Terra é apenas um complemento ao Contrato Social entre os Povos”. Nesse sentido, a construção de uma nova cidadania planetária depende da consciência do que ocorre hoje, do enfrentamento dos “problemas fundamentais” colocados pela modernidade. A ação que se quer emancipatória situa-se em um campo bastante concreto de problemas e conflitos.

A edificação dessa ética ambiental passa pelo incremento de pressupostos básicos onde a cultura ecológica incorpore uma racionalidade ambiental, que segundo LEFF (2000) não pode prescindir dos seguintes processos:

“a) o estabelecimento dos parâmetros axiológicos de uma "ética ambiental", na qual se forjam os princípios morais que legitimam as condutas individuais e o comportamento social perante a Natureza, o ambiente e o uso dos recursos naturais;

b) a construção de uma teoria ambiental por meio da transformação dos conceitos, técnicas e instrumentos, com o fim de conduzir os processos socioeconômicos para estilos de desenvolvimento sustentáveis;

c) a mobilização de diferentes grupos sociais e a colocação em prática de projetos de gestão ambiental participativa, baseados nos princípios e objetivos do Ambientalismo” (LEFF, 2000, p. 212).

Os problemas vivenciados pelo cotidiano dos cidadãos residentes na Vila Manaus, diante dos riscos e perigos do mundo moderno, que fazem emergir a luta ambientalista, o ativismo ambientalista no processo de gestão ambiental participativa do projeto Nossa RUA, e a reivindicação de novos direitos, que, em última instância, apontam para a construção de uma cidadania ambiental.

Surgem, desta forma, uma nova agenda social e política que passa a ocupar um lugar central e privilegiado neste início de século. A problemática ambiental enunciou a emergência de novos atores sociais, sujeitos de direito, representando, portanto, um alargamento do campo da cidadania. Essa cidadania de tipo novo requer uma nova proposta de sociabilidade, que transcende a relação entre o Estado e o indivíduo, incluindo de modo privilegiado a própria sociedade civil. Daí a importância e necessidade da constituição de sujeitos sociais ativos: cidadãos.

6 RETORNANDO AO PONTO DE PARTIDA: UMA APROXIMAÇÃO DOS