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2 AS PRETENSÕES FUNDAMENTAIS E O PAPEL DO ESTADO

2.3 OS DEVERES DO ESTADO PRESTADOR

2.3.1 Do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito

Antes de discorrermos sobre os deveres do Estado na efetivação de direitos fundamentais, cumpre primeiramente compreender o pano de fundo ideológico no qual se deu a transição do Estado Liberal para o Estado Social e, mais recentemente, para o Estado Democrático de Direito.

na possibilidade de exigência de tratamento igualitário no que pertine aos serviços e bens já organizados". Ibid., p. 55.

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"Isso significa que o reconhecimento constitucional de um direito implica também para o Estado, para além do dever de abstenção (função de defesa), o dever de prestação consistente na obrigação de adotar medidas positivas e eficientes, vocacionadas a proteger o exercício dos direitos fundamentais perante atividades de terceiros que venham a afetá-los". CUNHA JÚNIOR, Dirley. Op. cit., p. 529.

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"Recente corrente doutrinária tem acentuado uma função de não discriminação dos direitos fundamentais, a partir do princípio da igualdade. (...) Ela alcança todos os direitos fundamentais para vedar, por exemplo, a discriminação - em virtude de opções religiosa, ideológica, política, filosófica -, de acesso aos cargos públicos e de emprego e profissão. Com base nessa função discute-se ainda o

problema de quotas (quotas para deficientes, para negros, para mulheres, para pobres, seja em

mercados de trabalho, seja em cargos públicos, seja em faculdades etc.) e o problema das minorias (homossexuais etc.)". Ibid., loc. cit.

O modelo de Estado Liberal (também chamado de Estado Mínimo ou Estado Abstencionista) calca-se no direito de propriedade, na plena autonomia privada e foi construído sob influência do pensamento liberal clássico que dominou o discurso político e econômico na Europa desde o final do século XVIII189. O modelo de Estado Social, por sua vez, foi gradativamente defendido nos séculos seguintes, sobressaindo-se após a Segunda Guerra Mundial, quando, em diversos países, o Estado passou a assumir mais deveres na área social, variando muito os tipos de atividades estatais voltadas a esta finalidade, não apenas por meio de prestações em sentido estrito, mas também com o emprego de mecanismos interventivos indiretos.

Enquanto o Estado Liberal estava basicamente reduzido às tarefas de ordem pública e de polícia, visando liberdade e segurança, com participação política reservada à burguesia ("Estado monoclassista") e economia entregue à autorregulação do mercado, o advento do Estado Social inaugurou a era do "Estado pluriclassista", consequência do alargamento do direito ao sufrágio, a emergência de partidos de trabalhadores e sua entrada na arena política, dando início, no dizer de Vital Moreira, à fase do constitucionalismo conformador da ordem econômica e social, na qual foram instituídos princípios orientadores de ações estatais voltadas para políticas públicas190.

A gênese do incremento da atuação do Estado na área social pode ser historicamente localizada ainda em meados do século XIX, quando foram instituídos,

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"A concepção predominante no século XIX, na fórmula do Estado Liberal ou Estado abstencionista, pretendia o distanciamento do Estado em relação à vida social, econômica e religiosa dos indivíduos. Esse afastamento significava, em primeiro lugar, a não-interferência do Estado na sociedade; daí as reduzidas funções que lhe cabiam, a inibição do Estado no âmbito econômico e social. Em segundo lugar, importava o antagonismo à existência de grupos intermediários, que pudessem interpor-se entre o indivíduo e o Estado, como associações políticas, culturais, profissionais; as associações são temidas pelo obstáculo que podem causar à liberdade do indivíduo" GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Teoria dos serviços e sua transformação. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 40. Referindo-se aos primórdios do capitalismo industrial, Vidal Serrano aponta que "neste período histórico, preconizavam-se relações econômico-sociais libertas de amarras jurídicas, com o mercado produzindo os insumos básicos para sua auto-regulação. Os institutos jurídicos gerais, em especial a propriedade privada e a autonomia da vontade, aplicados à seara das relações econômicas, eram os únicos balizamentos para as relações então entabuladas. O chamado liberalismo original implicava, portanto, uma fuga do direito". NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988: estratégias de positivação e exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009, p. 49-50.

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MOREIRA, Vital. O futuro da Constituição. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Org.). Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 313-336.

na Europa, diversos modelos de proteção estatal para fazer frente a problemas sociais que vieram à tona com o avanço do modo de produção capitalista. O capitalismo industrial, se de um lado teve o condão de gerar riquezas em larga escala, propiciando um inédito crescimento econômico e assegurando benefícios consideráveis para a comunidade, de outro lado tornou muito mais complexa a vida social, dando maior visibilidade à miséria daqueles que, atuando como mão de obra no processo de industrialização, expuseram-se a crescentes riscos191.

O avanço econômico experimentado pelos países europeus que tomaram a dianteira no processo de industrialização, com destaque para Inglaterra, França e Alemanha, levou também a uma série de preocupações políticas em torno da situação de indigência vivenciada por grande parcela da população que migrou do campo para as cidades, deixando para trás o trabalho na terra e passando a depender exclusivamente do labor industrial em parcas condições de segurança e salubridade, situação que aumentou exponencialmente os riscos de acidentes de trabalho e outros infortúnios.

Tal quadro de desigualdade reforçou o prestígio de teorias que vinham sendo elaboradas no contexto da grande revolução espiritual e racionalista desde o final do século XVIII192. Nesta época de incipiente e desenfreado crescimento industrial, tais teorias, fundadas em doutrinas reacionárias, católicas ou socialistas193, lançaram

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"A garantia de liberdade, de maneira absoluta, em algumas situações,engendrava mecanismos que frequentemente acabavam,como em um processo de tensão dialética, negando sua própria existência. Aflorou, com irrecusável clareza, a insuficiência e a incapacidade do chamado Estado absenteísta para garantir a convivência livre e harmoniosa entre os seus súditos. Interagindo com o modelo econômico, cujo ideário preconiza tratamento igualitário a seres economicamente desiguais, o liberalismo clássico acabou por revelar uma realidade tirânica e cruel em relação à classe operária que se formava nos centros industriais da Europa de então". Ibid., p. 50.

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Acerca das sementes lançadas pela Revolução Francesa, Paulo Bonavides vai além da visão tradicional que a situa no âmbito de interesses meramente burgueses, pois as ideias nela propagadas abarcaram valores mais amplos que terminaram por nortear todo o curso dos movimentos sociais dos séculos seguintes. Explica que "a Revolução Francesa fora um espécimen do próprio gênero de Revolução em que ela se conteve: a Grande Revolução espiritual e racionalista do século XVIII. (...) O século XVIII colocou, por conseguinte, todas as premissas e divisas subsequentes da rotação que a ideia revolucionária, para cumprir-se, teve que cursar. Primeiro, promulgou as Constituições do chamado Estado de Direito e, ao mesmo passo, com a Revolução da burguesia, decretou os códigos da Sociedade civil. Outro não foi, portanto, o Estado da separação de poderes e das Declarações de Direitos, que entrou para a história sob a denominação de Estado liberal. (...) A seguir, como se a ideia anárquica, potencialmente contida na rebeldia histórica de reação às prerrogativas de um absolutismo, que proclamara a equipolência do príncipe à divindade ou à instituição, desse mais um passo de imensa latitude naquela direção antiestatal da divisão de poderes, surgiram as utopias socialistas e, depois, o marxismo". BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 31.

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Como lembra Jorge Miranda,"o liberalismo vai enfrentar críticas doutrinais provenientes de vários quadrantes: do pensamento reacionário (Joseph de Maistre, De Bonald e outros), do pensamento

pesadas críticas ao liberalismo e ao modo de produção capitalista, muito contribuindo para a instituição do que veio a ser depois chamado de Estado Social, na medida em que defendiam, quando não a própria extirpação daquele modo de produção (Estado social radical), ao menos a necessidade de melhor adaptá-lo às contingências históricas e problemas reais vivenciados pelos trabalhadores e suas famílias (Estado social moderado)194.

Paulo Bonavides aponta que o aparecimento do Estado Social se explica pela influência ideológica das teorias socialistas que antecederam e se sucederam ao crescimento industrial, sem as quais não se teria salvaguardado o próprio modelo de Estado Liberal capitalista burguês195. Nesse contexto, salienta Fábio Nusdeo, "escorraçado do sistema econômico pelos postulados do liberalismo, o poder público dele saiu pela porta da frente, mas acabou por reingressar gradualmente pela porta dos fundos"196. Como assenta Eros Grau, ao se repensar o papel do Estado na

católico (do Syllabus à Rerum Novarum e às outras grandes encíclicas sociais), do pensamento socialista (Saint-Simon, Owen, Fourier, Proudthon, Marx, Engels)". MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 48.

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Edvaldo Brito, inspirado em lições de Orlando Gomes, assim explica esses dois modelos de Estado social. No Estado social radical ou extremista, "há a supressão do conteúdo das liberdades individuais, a eliminação da divisão dos poderes e a lei é transformada em menor instrumento, em regime de partido único, da política dos detentores do poder". Já no Estado social moderado, "diante do pressuposto de assegurar a realização do bem-estar e do desenvolvimento, por meio da intervenção que libertaria, esse modelo estatal nascera não para suprimir ou esvaziar liberdades, direitos e interesses dos indivíduos, mas para tornar-se responsável pela ordenação da vida social, atuando no processo econômico com o objetivo de definir políticas e dirigir o seu encaminhamento, construindo, em consequência, uma liberdade econômica, compatível com os já citados ideais de bem estar e desenvolvimento". BRITO, Edvaldo. Reflexos jurídicos da atuação do Estado no domínio econômico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 29.

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"Uma constante, a nosso ver, explica o aparecimento do Estado social: a intervenção ideológica do socialismo. Empregamos a palavra socialismo no seu sentido mais genérico e histórico, desde as utopias de fins do século XVIII à consolidação das teses marxistas, em nossos dias. Desde o socialismo utópico, chamado socialismo científico. Desde a conspiração de Baboeuf aos assaltos da Comuna de Paris. Desde a fundação da Primeira Internacional à tomada de poder pelos bolcheviques russos, há quase oitenta anos. Esse fator de continuidade forma, portanto, no Ocidente, linha permanente de combate, com a qual se defronta, desde a Revolução Francesa até nossos dias, o antigo Estado da burguesia ocidental. Antes e depois de Marx se trava esse prélio doutrinários. E, para sobreviver, o Estado burguês se adapta a certas condições históricas; ora recua, ora transige, ora vacila". BONAVIDES, Paulo. Op. cit., 2009, p. 183.

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"Ou seja, este reingresso não foi sistemático, nem sempre conscientemente desejado, mas fruto de uma necessidade incontornável, à falta de qualquer outra alternativa para lidar com os apontados problemas. E, assim, foi-se acoplando ao processo decisório do mercado um aparelho controlador de caráter burocrático, destinado a impedir as consequências mais indesejáveis do seu funcionamento". NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 9. ed. São Paulo: RT, 2015, p. 136.

implementação da política econômica não se buscou substituir o sistema capitalista, senão propriamente conservá-lo197.

Não se nega as vantagens propiciadas pelo liberalismo político e econômico198. Porém, tornou-se necessário enfrentar as suas contradições, já que parecia não cumprir na prática tudo aquilo que prometia na teoria. O crescimento econômico, ainda que implique o aumento da riqueza total de um país, não garante por si só que esta riqueza seja adequadamente distribuída entre os que tem participação ativa no processo, razão pela qual passou-se a repensar o papel do Estado como um ente regulador, de modo a se alcançar não apenas crescimento, mas, além disso, a tornar eficaz o direito fundamental ao desenvolvimento199, sem o qual não se conseguiria jamais assegurar o bem-estar social200. Como diz Edvaldo

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"O sistema capitalista é assim preservado, renovado sob diverso regime. (...) No desempenho do seu novo papel, o Estado, ao atuar como agente de implementação de políticas públicas, enriquece suas funções de integração, de modernização e de legitimação capitalista. Essa sua atuação, contudo, não conduz à substituição do sistema capitalista por outro. Pois é justamente a fim de impedir tal substituição - seja pela via da transição para o socialismo, seja mediante a superação do capitalismo e do socialismo - que o Estado é chamado a atuar sobre e no domínio econômico". GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 28.

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Não obstante as críticas que foram formuladas ao modelo liberal, Jorge Miranda pontua, "apesar de tudo, algumas das aquisições trazidas pelo liberalismo, quer direta e imediatamente, quer indireta ou mediatamente. Diretamente: a abolição da escravatura, a transformação do Direito e do processo penais, a progressiva supressão de privilégios de nascimento, a liberdade de imprensa. Indiretamente: a prescrição de princípios que, ainda quando não postos logo em prática, viriam, pela sua própria lógica, numa espécie de auto-regência do Direito, a servir a todas as classes, e não apenas à classe burguesa que começara por os defender em proveito próprio (assim, a partir da liberdade de associações a conquista da liberdade sindical e a partir do princípio da soberania do povo a do sufrágio universal. Mais ainda: independentemente das fundamentações (discutíveis ou não) dos movimentos políticos dos séculos XVIII e XIX, foram as Constituições que deles saíram e os regimes que depois se objetivaram que, pela primeira vez na história, introduziram a liberdade

política, simultaneamente como liberdade-autonomia e liberdade-participação, a acrescer à liberdade civil". MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 48-49.

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Enfocando o desenvolvimento econômico como um direito fundamental, confira-se: GOMES, Filipe Lôbo. A regulação estatal como instrumento de concretização do direito fundamental ao desenvolvimento econômico: um contributo da análise econômica do direito. RDU, Porto Alegre, Edição especial, 2016, p. 97-125.

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Registramos que nutrimos simpatia pela doutrina liberal e as teorias que pregam ampla liberdade de mercado. Contudo, entendemos que, na prática das trocas econômicas, tal modelo mostrou-se uma utopia tão evidente quanto o seu arquirrival ideológico, o regime comunista. Sobretudo no contexto do capitalismo global, os agentes financeiros não se comportam passivamente segundo as "regras do jogo" da livre concorrência. Eles influem decisivamente nestas mesmas regras, facilitando o "jogo" a seu favor. Daí porque defendemos certo grau de regulação do poder econômico no espaço democrático. Como destaca Bercovici, "o desenvolvimento é condição necessária para a realização do bem-estar social. O Estado é, através do planejamento, o principal promotor do desenvolvimento. Para desempenhar a função de condutor do desenvolvimento, o Estado deve ter autonomia frente aos grupos sociais, ampliar suas funções e readequar seus órgãos e estrutura. O papel estatal de coordenação dá a consciência da dimensão política da superação do subdesenvolvimento - dimensão, esta, explicitada pelos objetivos nacionais e prioridades sociais enfatizados pelo próprio Estado". BERCOVICI, Gilberto. Desenvolvimento, Estado e Administração Pública. In:

Brito, era preciso encontrar um modelo de Estado social moderado em que se defendesse "em lugar da liberdade que oprimia, a intervenção que libertaria"201.

Em linhas gerais, é perfeitamente possível adotar um modelo de Estado Social que siga as premissas básicas do Estado Liberal, transformando-o por dentro pelo reconhecimento de direitos sociais, mas, sem negar as bases da economia capitalista. Reside nesse ponto a essência da distinção entre o Estado Social e o Estado Socialista202, além do que, diante do risco de regimes totalitários que pretendam adquirir legitimação em nome de ideais nacionalistas ou de defesa de direitos sociais203, o desafio atual está em implantar o Estado Social dentro de um regime democrático, ou seja, como um Estado Democrático de Direito204.

A história já mostrou que não basta um Estado que enfrente a questão social; é preciso ter atenção para que o princípio da democracia não venha a ser sobrepujado por maiorias de ocasião ou governos populistas que queiram reforçar os seus poderes em nome da defesa do interesse nacional, do povo ou das classes menos favorecidas, uma tentação que parece sempre aguardar na esquina e bater à porta sobretudo nos momentos de grave crise econômica ou política.

CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos. Direito administrativo econômico. São Paulo: Atlas, 2011, p. 671.

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BRITO, Edvaldo. Op. cit., p. 28.

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"O Estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas algo, no Ocidente, o distingue, desde as bases, do Estado proletário, que o socialismo marxista intenta implantar; é que ele conserva sua adesão à ordem capitalista, princípio cardeal a que não renuncia". BONAVIDES, Paulo. Op. cit., 2009, p. 184.

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"Com ou sem formas aparentemente similares às dos regimes liberais, surgem no século XX diversos regimes, não por acaso chamados totalitários, produto da 'rebelião das massas' (Ortega), do impacto sobre estas de determinadas ideologias e de ocorrências políticas internas e externas de maior vulto. Tal como no Estado absoluto, há neles uma concentração do poder político, mas muito mais do que isso: o Estado absoluto não intervinha na vida privada das pessoas, não pretendia absorver a sociedade civil (nem tinha meios para isso); ao passo que o Estado totalitário assume todo o poder na sociedade e identifica a liberdade humana com a prossecução dos seus fins". MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 50.

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"O Estado social da democracia distingue-se, em suma, do Estado social dos sistemas totalitários por oferecer, concomitantemente, na sua feição jurídico-constitucional, a garantia tutelar dos direitos da personalidade". BONAVIDES, Paulo. Op. cit., 2009, p. 204. "Assim como o Estado Liberal cedeu espaço e, de certa forma, contribuiu para a afirmação do Estado Social, este último foi precursor do Estado Democrático de Direito. A propósito, ainda que não tenha sido abordada com maior profundidade, reconhece-se a indispensável conjunção do Estado Social e do Estado de Direito para afirmação dos direitos sociais. Como resultado de transformações sofridas pelo Estado Liberal, o Estado Social é parte do curso histórico do Estado de Direito, que alcançou o Estado Democrático com as suas características fundamentais preservadas, isto é, com o respeito à legalidade, a observância à separação de poderes e a previsão de direitos individuais no texto constitucional". MOREIRA, Alinie da Matta. As restrições em torno da reserva do possível: uma análise crítica. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 31.

Lênio Streck salienta que o novo paradigma do Estado Democrático de Direito surgido no segundo pós-guerra foi instituído por um Constitucionalismo Contemporâneo, de caráter compromissório e transformador social, por meio de textos constitucionais que deram guarida às promessas da modernidade (com grande impacto em países de modernidade tardia como o Brasil), de maneira que "de um direito meramente legitimador das relações de poder, passa-se a um direito com potencialidade de transformar a sociedade"205. Tal processo corresponde à leitura feita por Norberto Bobbio ao pontificar a mudança do enfoque que veio a ser dado ao Direito, desde o velho modelo estruturalista e ainda apegado a preceitos positivistas, passando gradativamente a uma análise mais funcional que o concebeu como instrumento de transformação da realidade206.

Por outro lado, ainda que se reconheça tal caráter compromissório e transformador, a simples referência a um Estado Democrático de Direito não isenta de dúvidas e controvérsias as discussões sobre o alcance dessa expressão quando se trate de definir, em termos concretos, as atividades que devem ser desempenhadas pelo Estado com o fito de garantir a efetividade dos direitos sociais, inclusive, no que concerne aos chamados direitos sociais prestacionais.

Como assinala Fleiner-Gerster, já reina há séculos uma grande discórdia em relação às tarefas do Estado, tanto entre ideólogos quanto entre práticos207. Se no plano do discurso parece não haver dúvidas de que a principal missão do Estado

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STRECK, Lênio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 69. Aduz o autor que tal modelo de direito "consta no texto da Constituição do Brasil, bastando, para tanto, uma simples leitura de alguns dispositivos, em especial, o art.3o. O direito, nos quadros do Estado Democrático (e Social) de Direito, é sempre um instrumento de transformação, porque regula a intervenção do Estado na economia, estabelece a obrigação da realização de políticas públicas, além do imenso catálogo de direitos fundamentais-sociais". Ibid., loc.