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2 AS PRETENSÕES FUNDAMENTAIS E O PAPEL DO ESTADO

2.3 OS DEVERES DO ESTADO PRESTADOR

2.3.4 Pretensões fundamentais e ativismo judicial

Partindo de premissa já apontada desde o início, temos que, só se podendo falar em direito (em benefício de alguém) onde houver algum dever correlato (por parte de outrem), não há dúvida de que a todo direito fundamental a uma prestação em sentido amplo corresponde algum dever do Estado, variando apenas o conteúdo e o alcance dessa incumbência conforme a natureza do direito fundamental cuja efetividade cumpre ao Estado assegurar.

As prestações em sentido amplo, reitere-se, abrangem diversas atividades desempenhadas pelo Estado e que se tornam necessárias para viabilizar a efetivação dos direitos fundamentais, desde a edição de normas jurídicas regulamentando o modo de exercício destes direitos (prestações normativas) à criação de órgãos e outras estruturas administrativas (prestações institucionais)

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Virgílio Afonso salienta que os direitos a prestações em sentido amplo se distinguem dos direitos sociais "na medida em que não tem como objetivo a realização de uma igualdade material entre os indivíduos, que é o escopo por excelência desses últimos". Destaca, por outro lado, "semelhanças estruturais entre os direitos sociais e os direitos a prestações em sentido amplo (direitos de proteção e direitos a organizações e procedimentos), já que ambos exigem um fazer estatal com o objetivo de realizar tais direitos". SILVA, Virgílio. Op. cit., 2010, p.79.

voltadas ao fornecimento de bens ou serviços em prol dos administrados (prestações materiais).

A doutrina tem reunido as prestações normativas e institucionais sob a rubrica de prestações jurídicas292. Já as prestações materiais são as utilidades concretas (bens ou serviços) destinadas a "atenuar desigualdades de fato na sociedade, visando ensejar que a libertação das necessidades aproveite ao gozo da liberdade efetiva por um maior número de indivíduos"293. Tais prestações materiais podem ser objeto de pretensões dirigidas pelos cidadãos ao Estado, para que este lhes preste serviços públicos essenciais e voltados à satisfação de direitos fundamentais sociais (educação, saúde, saneamento básico, habitação, transporte etc.) ou lhes forneça recursos financeiros ou bens em espécie (linhas de crédito diferenciadas, medicamentos, financiamentos habitacionais, alimentos etc.).

Não se olvida que a Constituição brasileira de 1988 foi elaborada em sintonia com ideais de um constitucionalismo contemporâneo transformador da realidade social, o que fica claro logo no seu art. 3o, quando aponta como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; II) garantir o desenvolvimento nacional; III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Ao lado disso, o legislador constituinte de 1988 estabeleceu um vasto elenco de direitos fundamentais sociais, atribuindo ao Estado uma gama de deveres nesta área, tais como os mencionados nos artigos 6o e 7o, recepcionando a categoria dos serviços públicos enquanto atividades de interesse coletivo de titularidade do Poder

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"Há direitos fundamentais que dependem essencialmente de normas infraconstitucionais para ganhar pleno sentido. Há direitos que se condicionam a normas outras que definam o modo do seu exercício e até o seu significado. Há direitos fundamentais que não prescindem da criação, por lei, de estruturas organizacionais, para que se tornem efetivos. Além disso, esses direitos podem requerer a adoção de medidas normativas que permitam aos indivíduos a participação efetiva na organização e nos procedimentos estabelecidos". MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martires; BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 258

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Ibid., p. 259. "Há direitos fundamentais cujo objeto se concentra em uma prestação jurídica, isto é, a edição de normas punitivas, premiais, de processo ou de organização pelo Estado, sem as quais esses direitos não podem ser exercidos por parte dos cidadãos (direito à propriedade, acesso à justiça etc.). Indo mais além, os direitos sociais são direitos a prestações materiais do Estado, concebidos para atenuar as desigualdades de fato na sociedade". KRELL, Andreas. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional "comparado". Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 31.

Público, a quem incumbe prestá-las direta ou indiretamente (art.175); prevendo instrumentos de intervenção no domínio econômico e de regulação do mercado (art.170); dispondo sobre as ações e serviços públicos de saúde (art.198), previdência social (art. 201) e assistência social (art. 203).

As Constituições anteriores já previam liberdades e direitos sociais, porém, como anota Luís Roberto Barroso, sempre houve no Brasil uma distância muito grande entre o texto constitucional e a realidade, não apenas pelas dificuldades contingenciais e a larga desigualdade social enfrentadas, mas, também, por certo sentimento de indiferença no tocante ao disposto na Constituição, o que denomina de insinceridade constitucional. A Constituição "tornava-se uma mistificação, um instrumento de dominação ideológica, repleta de promessas que não seriam honradas. Nela se buscava, não o caminho, mas o desvio; não a verdade, mas o disfarce"294. Daí que, somente com a promulgação da Constituição de 1988 e sob inspiração de uma teoria crítica do direito295, iniciou-se a construção de uma cultura jurídica verdadeiramente voltada a se garantir a efetividade das normas constitucionais296.

Esses novos ventos do constitucionalismo contemporâneo - fenômeno por alguns denominado neoconstitucionalismo e que, no Brasil, identifica-se com a reabertura democrática no final dos anos 80297 - conduziram a um modo até então

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BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. In: SARMENTO, Daniel (coord.). Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 6.

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Luís Roberto Barroso explica que durante a ditadura militar (1964-1985), os estudos do direito constitucional oscilaram entre dois extremos: "de um lado, o pensamento constitucional tradicional, capturado pela ditadura, acomodava-se a uma perspectiva historicista, puramente descritiva das instituições vigentes, incapaz de reagir ao poder autoritário e ao silêncio forçado das ruas. De outro lado, parte da academia e da juventude havia migrado para a teoria crítica do direito, um misto de ciência política e sociologismo jurídico, de forte influência marxista. A teoria crítica enfatizava o caráter ideológico da ordem jurídica, vista como uma superestrutura voltada para a dominação de classe, e denunciava a natureza violenta e ilegítima do poder militar no Brasil". Ibid., p. 5.

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"Os primeiros anos de vigência da Constituição de 1988 envolveram um esforço da teoria constitucional para que o Judiciário assumisse o seu papel e desse concretização efetiva aos princípios, regras e direitos inscritos na Constituição. Pode parecer óbvio hoje, mas o Judiciário, mesmo o Supremo Tribunal Federal, relutava em aceitar esse papel. No início dos anos 2000, essa disfunção foi progressivamente superada e o STF se tornou, verdadeiramente, um intérprete da Constituição". Ibid., p. 6.

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"O neoconstitucionalismo identifica uma série de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, nas últimas décadas, que tem: (i) como marco filosófico o pós-positivismo (...); (ii) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, após a 2a Guerra Mundial, e, no caso brasileiro, a redemocratização institucionalizada pela Constituição de 1988; e (iii) como marco

teórico, o conjunto de novas percepções e de novas práticas, que incluem o reconhecimento de força

normativa à Constituição (inclusive, e sobretudo, aos princípios constitucionais), a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática de interpretação constitucional,

inédito de se encarar a Constituição como instrumento de avanço social e cujas normas passaram a ter um efeito expansivo sobre todos os ramos do Direito, gerando uma reinterpretação dos principais institutos jurídicos. Novas teorias vieram sendo construídas, debruçando-se sobre uma Constituição garantidora de direitos fundamentais, num regime democrático equilibrado por uma jurisdição constitucional marcada pela superação do formalismo jurídico, com o advento de uma cultura pós- positivista, a ascensão do Direito Público e a centralidade da Constituição298.

Num ambiente de tamanha luta por efetividade das normas constitucionais, é natural que a Carta Magna, prevendo explicitamente tantos direitos fundamentais sociais - e como consequência, impondo ao Estado uma gama de deveres a eles correspondentes - tenha ampliado as expectativas, alimentando pretensões por parte de milhões de brasileiros em busca da adequada efetivação dos seus direitos.

Nada mais previsível, pois, como assinala Lênio Streck, "textos constitucionais compromissórios, com amplo catálogo de direitos fundamentais individuais e coletivos, inexoravelmente, geram um aumento de demandas"299. Logo, no momento em que a Constituição brasileira de 1988, na esteira do constitucionalismo contemporâneo e com nítido intuito de transformação da realidade social300, assegurou aos indivíduos e à coletividade diversos direitos fundamentais sociais, tornou-se inevitável que isso conduzisse a um aumento exponencial das demandas em torno dos bens e serviços necessários a sua efetividade. Em paralelo com o advento da nova Carta Magna, emergiu no Brasil "uma interessante doutrina identificada como dogmática constitucional da efetividade, ou, como preferiram alguns, dogmática constitucional emancipatória, ou,

envolvendo novas categorias, como os princípios, as colisões de direitos fundamentais, a ponderação e a argumentação. O termo neoconstitucionalismo, portanto, tem um caráter descritivo de uma nova realidade, mas conserva, também, uma dimensão normativa, isto é, há um endosso a essas transformações. Trata-se, assim, não apenas de uma forma de descrever o direito atual, mas também de desejá-lo". Ibid., p. 7.

298

Ibid., p. 9-10.

299

STRECK, Lênio. Op. cit., 2014, p. 69.

300

"A Constituição garantista das liberdades formais converte-se na Constituição dirigente, para a promoção da justiça social". FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 171. Nessa esteira, Lênio Streck sustenta uma Teoria da Constituição

Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia que, "como uma teoria da Constituição

dirigente-compromissória adequada a países periféricos, deve tratar, assim, da construção das condições de possibilidade para o resgate das promessas da modernidade incumpridas, as quais, como se sabe, colocam em xeque os dois pilares que sustentam o próprio Estado Democrático de Direito". STRECK, Lênio. Op., cit., 2014, p. 178.

ainda, dogmática constitucional transformadora"301. Tudo isso levou a que intensificasse, e muito, as pretensões materiais frente ao Estado.

Esse aumento de pretensões, aliado a um quadro de mau contingenciamento dos recursos públicos frente às grandes desigualdades sociais, levou ao incremento dos litígios judiciais contra o Poder Público, jogando-se no colo do Judiciário as promessas da modernidade. Invocando a aplicação direta de princípios constitucionais e exercendo ativamente um controle constitucional dos atos da Administração Pública, passaram os juízes a figurar como os principais atores da cena de efetivação dos direitos fundamentais, cabendo-lhes recorrer a uma "fundamentada sensibilidade para o justo", no dizer de Juarez Freitas, a fim de fazer valer o que está previsto na Constituição302. Jorge Miranda, na mesma linha, salienta que no Estado de Direito os direitos fundamentais, por definição, tem de receber proteção jurisdicional, pois "só assim valerão inteiramente como direitos, ainda que em termos e graus diversos consoante sejam direitos, liberdades e garantias ou direitos econômicos, sociais e culturais"303.

Nesse contexto da dogmática constitucional, pode-se dizer que estavam abertas as portas ao ativismo judicial no Brasil, o que veio e continua sendo objeto de críticas, notadamente no que se refere ao controle jurisdicional de omissões nas políticas públicas304.

301

CLÈVE, Clémerson Merlin. Direito constitucional, novos paradigmas, constituição global e processos de integração. In: BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gérson Marques de; BEDÊ, Fayga Silveira (Coord.). Constituição e Democracia: estudos em homenagem ao Prof. J. J. Gomes

Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 35-47. 302

"São os juízes os intérpretes que detém e merecem continuar detendo, como sublinhado, a chamada jurisdição única. Deles dependem, por isso mesmo, o futuro e a eficácia da nossa Constituição e, por implicação lógica, do nosso Estado Democrático. Almejo, finalmente, deixar consignado que se mostra indispensável apostar no Poder Judiciário Brasileiro, em sua capacidade de dar vida aos preceitos ilustrativamente formulados e crer, apesar dos pesares, na sua fundamentada sensibilidade para o justo, razão pela qual insisto em proclamar que todos os juízes, sem exceção, precisam, acima de tudo, ser respeitados, fazendo-se respeitar como juízes

constitucionais". FREITAS, Juarez. O intérprete e o poder de dar vida à Constituição: preceitos

de exegese constitucional. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Org.). Direito

constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 226-247. 303

MIRANDA, Jorge. A tutela jurisdicional dos direitos fundamentais em Portugal. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Org.). Direito constitucional: estudos em homenagem

a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 284-303. 304

Ana Paula de Barcellos sistematiza tais críticas basicamente em 3 grupos: 1) críticas da teoria da Constituição (questionando, sob aspecto formal, a legitimidade democrática dos juízes); 2) crítica filosófica (questionando, sob aspecto substancial, a legitimidade dos juízes para tomarem decisões complexas do ponto de vista moral e técnico); 3) crítica operacional (questionando a falta de visão holística do juiz, preocupado com a solução do caso concreto - microjustiça - ignorando a realidade

Na percepção de Saulo José Casali Bahia, o tema do controle das omissões do Poder Público era, na década de 1980, estudado na seara da responsabilidade civil do Estado. Com o advento da Carta Magna de 1988, os debates foram aos poucos migrando para o campo da proteção dos direitos fundamentais, inicialmente em razão do papel do Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado, dada a criação de novos instrumentos tais como a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a arguição de descumprimento de preceito fundamental e o mandado de injunção. Ocorre que, diante da interpretação conservadora que num primeiro momento o STF conferiu aos efeitos destes instrumentos, limitando-se a conclamar os demais Poderes a agir, "pouco a pouco, as instâncias inferiores do Poder Judiciário entenderam que a concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal carecia de sua ação própria e direta,ou dela poderia advir"305.

Tal movimento levou a excessos que caracterizaram a "judicialização da política, a politização do Judiciário ou, ainda, ativismo judicial, denominações atribuídas a este fenômeno, no Brasil, desde a década de 1990, e principalmente nos anos mais recentes"306.

Clara da Mota Santos Pimenta Alves aponta o peculiar momento de ativismo judicial pelo qual vem passando o Brasil, estando o Supremo Tribunal Federal cada vez mais inclinado a concentrar sua competência para decidir, com efeito vinculante e erga omnes, questões constitucionais que chegam à Corte pela via do controle difuso, num movimento que já foi designado de "objetivação do recurso extraordinário"307. A autora alude ao voto do Ministro Gilmar Mendes, relator da Reclamação 4335/AC308, no sentido de que teria ocorrido uma mutação estatal como um todo e o conjunto das políticas públicas - macrojustiça). A autora apresenta argumentos sólidos, buscando refutar tais críticas. BARCELLOS, Ana. Op. cit., 2013, p. 107-116.

305

BAHIA, Saulo José Casali. Judicialização da política. In: II Jornada de Direito Constitucional. Tribunal Regional Federal da 1a Região, Escola de Magistratura Federal da 1a Região. Brasília; ESMAF, 2014, p. 388-402.

306

Ibid. Conclui o autor que "o problema da judicialização da política vem acontecendo muito mais nos países de desenvolvimento tardio do que em países desenvolvidos, onde o princípio da confiança nos Poderes Executivo e Legislativo possui prática em graus mais elevados e onde a responsabilidade individual e pública é levada a sério. Este parece ser o melhor caminho, já que a escolha do Poder Judiciário como a via preferencial ou exclusiva para a satisfação de direitos fundamentais basicamente funciona como índice da nossa baixa cidadania e do mau funcionamento do Estado e da sociedade". Ibid.

307

ALVES, Clara da Mota Santos Pimenta. Mutação constitucional na era do ativismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 02.

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constitucional do art. 52, X, da Carta Magna de 1988, tornando dispensável a tradicional resolução do Senado Federal309. Ao lado disso, estaria havendo a "aproximação cada vez maior da Corte em relação a abordagens marcadas por um acentuado grau de substancialismo"310. Formulando críticas a este posicionamento concentrador do STF, Alves considera premente que se busque um novo significado de valorização do controle difuso e concreto, atribuindo-se novos sentidos à sua prática e institutos311.

Entendemos que o ativismo judicial por meio da jurisdição constitucional - tanto no controle concentrado de competência do Supremo Tribunal Federal, quanto no controle difuso exercido por todos os juízes e tribunais do país - por si só não é prejudicial à democracia. Ao contrário, reforça-a como verdadeira democracia constitucional, a ser demarcada não apenas em sua dimensão formal e procedimental representada pela vontade da maioria, mas, também, em sua dimensão substancial caracterizada pelo respeito aos direitos fundamentais assegurados na Constituição, inclusive em prol das minorias312. É assim que, consoante destaca Luís Roberto Barroso, "o ideal democrático realiza-se não apenas pelo princípio majoritário, mas também pelo compromisso na efetivação de

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"Uma consequência relevante extraída pelo relator é a de que a intervenção do parlamento ao final do processo de revisão judicial seria uma providência anacrônica e destituída de sentido, pois como nas ações diretas a decisão do Tribunal tem efeito vinculante per se, a resolução do Senado Federal despir-se-ia de qualquer papel político, constituindo mera forma de publicação do posicionamento do STF. O seu voto decreta, então, uma mutação constitucional alteradora do art. 52, X, da Constituição de 1988. O sentido anterior da resolução senatorial como ato dotado de discricionariedade política seria substituído por um novo no qual ela passa a ser uma providência de índole burocrática". ALVES, Clara. Op. cit., p. 09-10. Ressalte-se que a ratio dessa linha de pensamento, abraçada pelo Ministro Gilmar Mendes, fez-se refletir em regras processuais que vieram à tona com o Código de Processo Civil de 2015 (Lei 13.105), estabelecendo um novo modelo de vinculação dos juízes à jurisprudência dos tribunais (v.g. os arts. 332, 927, III, 947, §3º e 985), de duvidosa constitucionalidade.

310

Ibid., p. 195.

311

"A nossa prática como um todo precisa se assentar em pressupostos novos e distintos dos que a tem conduzido até o momento à postura judicial de superioridade, autorreferência e isolamento, o que não precisa vir através de emendas à constituição ou atos que simbolizem rompantes e hostilidades entre os poderes. A ressignificação do controle difuso de constitucionalidade, isto é, a atribuição de novos sentidos a que faço alusão surgem pelo cotejo de outras experiências e teorias sobre adjudicação diferentes das que inspiram a linha da 'objetivação'". Ibid., p. 201.

312

"A política majoritária, conduzida por representantes eleitos, é um componente vital para a democracia. Entretanto, a democracia é muito mais do que a mera expressão numérica de uma maior quantidade de votos. Para além desse aspecto puramente formal, ela possui uma dimensão substantiva, que abrange a preservação de valores e direitos fundamentais. A essas duas dimensões - formal e substantiva - soma-se, ainda, uma dimensão deliberativa, feita de debate público, argumentos e persuasão. A democracia contemporânea, portanto, exige votos, direitos e razões". BARROSO, Luís. Op. cit., 2015, p. 4.

direitos fundamentais"313, configurando-se segundo uma concepção coparticipativa de democracia, tal como a defendida por Ronald Dworkin ao destacar a importância do controle judicial de constitucionalidade para o aperfeiçoamento da legitimidade do governo314.

Em verdade, o que tem preocupado em alguns casos é o excesso de ativismo, quando juízes, ainda que bem-intencionados, no sincero intuito de concretizar direitos fundamentais e garantir a proclamada justiça social, tomam decisões ignorando uma série de variáveis fáticas e princípios jurídicos igualmente importantes e previstos na Constituição. As discussões sobre quais devam ser os limites de atuação do juiz constitucional ultrapassa fronteiras, já tendo sido objeto de estudos em diversos países315, apontando-se, como fez Habermas, aspectos positivos e negativos de uma forte jurisprudência constitucional316. Porém, no Brasil, a questão veio adquirindo colorações específicas que, no momento atual, segundo alguns críticos, tornaram-na um dado deveras preocupante.

313

BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: CUNHA, Sérgio Sérvulo da. GRAU, Eros Roberto (Org.). Estudos de Direito Constitucional: em homenagem a José Afonso da

Silva. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 23-59. 314

Dworkin escreve que, enquanto "a concepção majoritarista define a democracia de modo puramente procedimental" e "encara o controle judicial de constitucionalidade com desconfiança", a concepção coparticipativa "liga a democracia às restrições substantivas das condições de legitimidade". Por conseguinte, a concepção coparticipativa "pressupõe que a maioria política tem autoridade moral para decidir questões controversas em nome de todos", contudo, "a maioria não tem autoridade moral para decidir coisa alguma a menos que as instituições por meio das quais governe sejam suficientemente legítimas. O controle judicial de constitucionalidade é uma estratégia possível (e, sublinho, apenas uma entre outras) para aperfeiçoar a legitimidade do governo - protegendo a independência ética de uma minoria, por exemplo - e, assim, assegurar o direito moral da maioria de