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2 AS PRETENSÕES FUNDAMENTAIS E O PAPEL DO ESTADO

2.2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.2.3 Limites e restrições aos direitos fundamentais

Malgrado as divergências terminológicas, reputamos viável descrever-se um direito fundamental levando em conta tanto limites que lhe conformam o conteúdo prima facie, quanto restrições que possa ainda vir a sofrer nos casos concretos, alterando-lhe essa delimitação inicial. Sob esta ótica, torna-se necessário apontar critérios para diferenciar os limites e as restrições, tomando-os como aspectos que, posto não se confundam e sejam excludentes entre si, podem, todavia, coexistir79.

Para se aceitar a concomitância de limites e restrições aos direitos fundamentais, devemos elaborar uma construção teórica que cuide de descrever, com alguma precisão lógica, as notas distintivas de tais figuras, deixando evidenciada a sua presença simultânea nos fenômenos jurídicos, porém, como parcelas da realidade que sempre se excluem reciprocamente. É preciso partir da premissa de que, no exame do suporte fático de uma norma de direito fundamental, quando se estiver diante de um limite, não se poderá falar em restrição, e vice-versa. Incompatibilidade haveria apenas se a percepção das figuras continuasse sendo feita na mesma dimensão semântica com que foram construídas pelas teorias interna e externa, já que os adeptos da teoria interna só enxergam limites, enquanto os da teoria externa só reconhecem restrições.

Consoante teremos oportunidade de abordar mais à frente, quando trataremos da inocorrência de danos nos limites a direitos fundamentais (item 4.3.1), a noção de limite há muito já vem sendo empregada por doutrinadores brasileiros quando se cuida, por exemplo, dos condicionamentos legalmente impostos ao direito de propriedade por meio de limitações administrativas. Reconhecendo tratar-se de um direito fundamental garantido pela Constituição de 1988 (art. 5º, XXII), o qual, porém, deve atender a uma função social (art. 5º, XXII), Celso Antônio Bandeira de Mello leciona que, não havendo direitos ilimitados, "falar em direito - e, pois, em

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Também defendendo a possibilidade de coexistência entre as duas figuras, ver: SGARBOSSA, Luís Fernando. Crítica à teoria dos custos dos direitos: reserva do possível. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2010, v. 1, p. 264.

direito de propriedade - é falar em limitações"80. Sustenta o autor, assim, haver um perfil jurídico do direito de propriedade no qual está delimitado o conteúdo juridicamente protegido da propriedade em determinado país, salientando que os limites que balizam a extensão desse direito em nada o restringem ou sacrificam, revelando-se apenas como atributos e condicionamentos inerentes ao seu conteúdo81.

Por outro lado, consideramos simplista demais a ideia de que a identificação dos limites deva se ater ao exame da norma geral e abstrata extraída da Constituição ou da lei, ao passo que as restrições seriam reveladas no enfrentamento dos casos concretos, como resultado da ponderação no choque de princípios jurídicos. Antes mesmo de se falar em conflito de interesses individuais e restrições a direitos, os casos concretos também servem para auxiliar na compreensão do próprio conteúdo e alcance da norma jurídica de caráter geral, mormente quando no texto normativo se empregue termos de significado indeterminado que remetam a conceitos abstratos da linguagem.

Sendo função de qualquer conceito abstrato servir, por meio da linguagem, como um recorte de dados da realidade complexa, separando-os de todo o resto a fim de organizar racionalmente a compreensão dos fenômenos82, bem como

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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Grandes temas de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 350.

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"Assim, é compreensível que dispositivos legais estabeleçam condicionamentos ao exercício da propriedade, traçando, deste modo, o perfil do direito correspondente. Em suma, as normas atinentes à propriedade e ao seu uso e gozo definem o âmbito de expressão da propriedade, tal como reconhecida em um dado sistema jurídico. São elas que desenham o que chamamos de 'direito de propriedade', isto é, o conteúdo juridicamente protegido e aceito como válido, em certa ordenação nacional, para a propriedade. (...) São estas considerações que explicam e justificam a chamada

gratuidade das limitações administrativas à propriedade, isto é, o fato de não serem indenizáveis.

Com efeito, por que não se constituem em investidas contra o direito de propriedade, mas, pelo contrário, consistindo na própria definição da extensão deste direito, em nada contendem com ele. Por isso, delas não resulta para o Poder Público obrigação de indenizar. Se outro fosse o caso, isto é, se houvera alguma lesão causada ao direito de alguém, provocando-lhe detrimento econômico, seria obrigatório ressarcir o agravado". Ibid., p. 351-352.

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"O conceito engloba o conjunto de características abstratas definitórias de um certo contexto da realidade. O conceito não se encontra nos fatos. Antes, nós delineamos a separação dos fatos segundo o conceito, ou enquadramos os mesmos fatos em diversos conceitos. (...) As notas conceituais são esquemas definitórios da realidade, que a mente elabora como se fossem moldes preestabelecidos, nos quais certo trecho da realidade pudesse enquadrar-se, ou devesse permanecer pelo lado de fora". BATALHA, Wilson. Op. cit., p. 643. Como adverte Larenz, a própria seleção das notas distintivas dos conceitos abstratos "é essencialmente co-determinada pelo fim que a ciência em causa persegue com a formação do conceito". LARENZ, Karl. Op. cit., p. 625. Portanto, a construção dos conceitos sempre obedece a determinada visão de mundo que de certa forma escolhe aquilo que se deseja compreender, o que varia conforme a cultura de cada povo. Daí porque não raro encontramos signos linguísticos em determinado idioma sem qualquer correspondente semântico em outro.

havendo uma gama de direitos identificados por meio desses conceitos (e.g., vida, propriedade, saúde, moradia, educação etc.), segue-se que tais direitos hão de ser primeiramente compreendidos com vistas a limites que lhes demarcam o conteúdo e servem de referencial à análise do alcance na norma jurídica que os fundamenta. Em vista disso, estando todo direito condicionado dentro do espaço demarcado por seus limites imanentes, tal condicionamento não é algo que propriamente esteja lhe restringindo.

Ainda que se possa utilizar a palavra restrição para se referir aos fatores internos delimitadores do conteúdo (qualificando-os como restrições internas ou imanentes), não se olvida que o que existe aí é um limite que já vem previamente reconhecido segundo a tradição jurídica em cada momento histórico, sendo a ideia do respectivo direito "construída" por meio de uma interpretação do ordenamento jurídico que leve em conta a dinâmica da realidade social e as particularidades dos casos concretos que vierem surgindo. A verdadeira restrição, ao contrário, mais do que mero delimitador do suporte fático da norma, pode operar comprimindo o conteúdo do direito até determinado ponto, sacrificando com isso as situações a priori por ele albergadas, mas sempre em razão de fatores externos específicos e distintos daqueles que são levados em conta na delimitação do seu conteúdo.

Certas premissas da teoria interna devem ser levadas a sério quando se constata que qualquer ordenamento jurídico recorre a esquemas conceituais da linguagem para traçar abstratamente os preceitos das normas de conduta, servindo não apenas à interpretação dos textos legais (hermenêutica tradicional), mas, também, à própria compreensão da realidade subjacente ao Direito, dada a valoração dos fatos postos à incidência das normas jurídicas.

Não se trata sequer de um aspecto exclusivo da ciência jurídica, estando presente em todos os fenômenos objeto da percepção humana, porquanto a tentativa do homem de compreendê-los seria impossível sem o intermédio da linguagem. Aliás, mais do que isso, como ensina Gadamer em sua hermenêutica filosófica, tamanha é a influência da linguagem na nossa percepção dos fatos do

mundo, que o próprio resultado da compreensão dos fenômenos acaba se identificando com a linguagem83.

Assim, levando em conta os limites da própria linguagem e não obstante as críticas que já foram direcionadas à teoria interna, reputamos útil a tese de que o conteúdo das normas de direitos fundamentais, ainda que tomados esses direitos sob uma perspectiva objetiva e abstrata (como ordem de valores correspondentes aos anseios da comunidade), possuem prévios limites imanentes que se manifestam na própria compreensão do seu alcance e que podem ser constatados antes mesmo da ocorrência de eventuais restrições decorrentes de fatores externos ao direito fundamental.

Consideramos equivocada a ideia de que tais limites intrínsecos apenas se verificariam nas normas jurídicas de suporte fático restrito, convencionalmente categorizadas como regras, reservando-se aos princípios, dado o seu suporte fático amplo84, tão somente o exame de eventuais restrições que poderão ou não sobrevir nos casos de conflitos com outros princípios. Apesar dos variados graus de concretização dos princípios, conforme assinala Karl Larenz, ora funcionando como ideias jurídicas gerais, ora como subprincípios que estabelecem algum indício de previsão e consequência jurídica85, eles também apresentam limites imanentes que precisam ser previamente considerados no momento de sua concretização, antes mesmo de se cogitar de conflitos com outros princípios.

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"A linguagem é o meio em que realizam o acordo dos interlocutores e o entendimento sobre a coisa

em questão. (...) A linguagem é o medium universal em que se realiza a própria compreensão. A forma de realização da compreensão é a interpretação. (...) Todo compreender é interpretar, e todo interpretar se desenvolve no medium de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo, a própria linguagem do intérprete. (...) Compreender e interpretar estão imbricados de modo indissolúvel". GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 1997, p. 497-503. Sobre a ligação entre fenomenologia e hermenêutica em Gadamer, dentre outros temas interessantes sobre o papel da linguagem na compreensão, ver: STEIN, Ernildo; STRECK, Lênio (Org). Hermenêutica e epistemologia: 50 anos de verdade e método. 2. ed. Porto Alegra: Livraria do Advogado, 2015.

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"As regras podem ser dissociadas dos princípios quanto ao modo como prescrevem o comportamento. As regras são normas imediatamente descritivas, na medida em que estabelecem obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da conduta a ser cumprida. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, já que estabelecem um estado de coisas cuja promoção gradual depende dos efeitos decorrentes da adoção de comportamentos a ela necessários". ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 225. Na medida em que para se atingir tal "estado de coisas" faz-se necessário adotar uma série de comportamentos, os princípios são marcados por um suporte normativo amplo. As regras, ao contrário, por dizerem respeito à adoção de uma conduta já descrita, tem um suporte normativo mais restrito.

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Por "prévios" limites imanentes, cumpre de logo esclarecer, não se deve entender de maneira alguma que se tratem de limites extraídos de um campo de significação do texto da norma puramente in abstracto. Jamais se poderá conceber uma normatividade descontextualizada dos fatos reais, razão pela qual a interpretação do programa normativo sempre demandará atenção à realidade social ou aos casos concretos em que opera a sua incidência.

Outrossim, a premissa de que a incidência de uma norma de direito fundamental em determinada situação concreta requer primeiramente o exame dos limites do seu suporte fático, por mais amplo que este possa se apresentar ao aplicador do Direito, não prejudica a ideia de que novos casos poderão ser pensados ou enfrentados, apresentando particularidades relevantes que passarão a ser reconhecidas e incorporadas pela tradição jurídica como novas alternativas estruturais do programa normativo, ampliando-se ainda mais o suporte fático até então pensado a priori.

Imaginar os limites imanentes como dados prévios, porém nunca absolutos, eis que sempre mutáveis, significa reconhecê-los como já integrantes do programa normativo, ainda que os dados reais reveladores desses limites tenham de vir sendo compreendidos ao longo do tempo, conforme o desenvolvimento histórico-social, desvelando-se, com isso, o conteúdo do direito e tornando mais claro o alcance da respectiva norma86. É um processo de esclarecimento recíproco que Larenz identifica como a estrutura hermenêutica fundamental do processo compreensivo, razão pela qual "o princípio esclarece-se pelas suas concretizações e estas pela sua união perfeita com o princípio"87. Segue-se, então, que novas particularidades podem sempre vir a surgir e serem levadas em conta na delimitação do conteúdo do direito fundamental.

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Tomamos aqui o termo num sentido próximo ao encontrado na ontologia hermenêutica de Heidegger, ao tratar do método fenomenológico do desvelamento da verdade: "(...) o que, num sentido extraordinário, se mantém velado ou volta novamente a encobrir-se ou ainda só se mostra

“desfigurado” não é este ou aquele ente, mas o ser dos entes. O ser pode-se encobrir tão

profundamente que chega a ser esquecido, e a questão do ser e de seu destino se ausentam. (...) A fenomenologia é a via de acesso e o modo de verificação para se determinar o que deve constituir tema da ontologia. A ontologia só é possível como fenomenologia. O conceito fenomenológico de fenômeno propõe, como o que se mostra, o ser dos entes, o seu sentido, suas modificações e derivados. Pois, o mostrar-se não é um mostrar-se qualquer e, muito menos, uma manifestação. O ser dos entes nunca pode ser uma coisa “atrás” da qual esteja outra coisa “que não se manifesta”. (...) O conceito oposto de “fenômeno” é o conceito de encobrimento". HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 66.

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Vale destacar haver até quem sustente que tais particularidades, observadas em determinados casos, podem vir a ter relevância suficiente a afastar a incidência da norma mesmo que a situação concreta aparentemente esteja albergada por um suporte fático restrito, ao modelo das regras. Assim fazem, por exemplo, os defensores da teoria da derrotabilidade, segundo a qual uma regra prevista num dispositivo legal pode ser "derrotada" quando, apesar de aplicável a um determinado caso concreto, deixar de sê-lo em razão de aspectos fáticos relevantes que não poderiam ter sido levados em conta pelo legislador no momento da descrição da conduta hipotética contida no texto da lei, demandando, por isso, uma outra solução jurídica para a questão88. Nessa esteira de intelecção, argumenta-se que o direito é um típico sistema de lógica não-monotônica, de modo que os problemas enfrentados a priori sob determinadas premissas podem vir a ter as suas soluções substancialmente modificadas com a inclusão de novas premissas, hipóteses nas quais o raciocínio jurídico não funciona bem com emprego da lógica formal silogística89.

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Na ciência jurídica, o termo derrotabilidade veio a ser empregado por autores espanhóis a partir do vocábulo inglês defeasibility, e assim foi literalmente traduzido para o português. Para transmitir a mesma ideia, utilizam-se ainda outras expressões tais como superabilidade ou excepcionalidade. E não obstante se tratar de tema relativamente recente no direito brasileiro, a tese de que uma regra jurídica, a princípio aplicável, pode vir a ser derrotada, foi originariamente defendida por Herbert Hart em 1948, num ensaio intitulado The Ascription of Responsability and Rights. Em apertada síntese, como assinala Carsten Bäcker, "a derrotabilidade das regras se origina da limitação da capacidade humana em prever todas as circunstâncias relevantes e, por conseguinte, da correspondente deficiência estrutural das regras". Define, assim, a derrotabilidade como "a capacidade de acomodar exceções que não podem ser previstas e enumeradas exaustivamente para todos os casos futuros" explicando que "se as condições de uma regra são satisfeitas, então a conclusão se segue, a menos que ocorra uma exceção, ou seja, se a, então b, a menos que c. Uma vez que não é possível prever todas as exceções, não é possível criar uma regra sem exceções". BÄCKER, Carsten. Regras, princípios e derrotabilidade. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n. 102, p. 55- 82, jan./jul.2011. Sobre o tema, ainda: BERNARDES, Juliano Taveira. Aborto de feto anencefálico e derrotabilidade. Disponível em http://jus.com.br/revista /texto/6466/aborto-de-feto-anencefalico-e-

derrotabilidade. Acesso em 08/07/2016; SILVA, Matheus Teixeira. A excepcionabilidade normativa

no processo decisório. In: "Conversas e controvérsias". Porto Alegre, v.2, n.2, p. 51-64. 2011/2; VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. Hermenêutica jurídica e derrotabilidade. Curitiba: Juruá, 2010, p. 7-10.

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"A lógica clássica e a lógica silogística são monotônicas no sentido que, de um conjunto de premissas, podemos deduzir um conjunto de conclusões; porém, quando adicionamos novas premissas ao conjunto inicial de premissas, as mesmas conclusões já deduzidas continuam valendo. Uma lógica não-monotônica é uma lógica diferente da lógica clássica e da lógica silogística, uma vez que nela, de um conjunto inicial de premissas, deduzimos uma certa conclusão, mas, uma vez adicionada uma outra premissa ao mesmo conjunto inicial, as conclusões já deduzidas não continuam valendo necessariamente. Dependendo da premissa adicionada, ela pode “derrotar” a conclusão original e proporcionar uma nova conclusão. Essa é a forma de pensar que os seres humanos utilizam na maioria das vezes em que é necessário raciocinar. Geralmente nos baseamos em premissas gerais, porém elas podem facilmente ser excepcionadas, o que nos força a revisar nossas crenças e extrair novas conclusões. Umberto Eco costuma ilustrar esse ponto com o exemplo do ornitorrinco: um animal em parte mamífero, que coloca ovos e possui um bico de pato. Ele é uma

Ora, do mesmo modo que se pode sustentar racionalmente a derrotabilidade de uma regra jurídica, levando em conta novas particularidades dos casos concretos que vierem desafiando a sua aplicação e entendendo que a hipótese de incidência da norma, mesmo quando relacionada a uma específica conduta descrita no preceito normativo (suporte fático restrito), pode admitir exceções ainda não reconhecidas, operando-se, então, uma reconstrução dos limites imanentes reveladores do conteúdo do direito nela contemplado, não vemos incoerência alguma em se defender que os princípios jurídicos, aí incluídos os princípios de direitos fundamentais, também admitem certos limites imanentes traçados por seu programa normativo, conforme as alternativas que vierem sendo fornecidas pelo âmbito normativo, sempre sujeito a eventual correção diante de novas situações da realidade complexa.

Não se trata, tal reconstrução, de uma ponderação levando em conta novas restrições ao direito nos casos concretos, como diriam os defensores da teoria externa. Cuida-se, sim, de redefinir os limites do conteúdo do direito em si mesmo, nas situações em que as particularidades dos casos concretos se mostram como meros condicionamentos para o exercício do direito, tal como se previstos já estivessem para todos os casos da mesma natureza.

Serve aqui perfeitamente a construção teórica formulada por Friedrich Müller, quando considera que "âmbito normativo e programa normativo nunca são reproduzidos de modo satisfatório no texto normativo", razão pela qual devem "ser mutuamente corrigidos no que diz respeito ao caso particular que os 'provoca' no sentido da palavra"90. Salientamos, contudo, como já procuramos esclarecer anteriormente, que não utilizamos aqui a figura do limite com a amplitude que lhe foi dada por Müller, porquanto reconhecemos poderem ocorrer também verdadeiras restrições ao conteúdo do direito, sem aquele caráter de condicionamento com que os limites imanentes se caracterizam.

curiosa exceção às diversas categorias definidas pelos zoólogos". CELLA, José Renato Gaziero; SERBENA, Cesar Antonio Serbena (Prefácio). In: VASCONCELLOS, Fernando. Op. cit., p. 7-10.

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MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 254. Explica ainda o autor que "âmbito normativo e programa normativo não são meios para encontrar, à maneira do direito natural, verdadeiros enunciados ônticos de validade geral; tampouco ajudam a averiguar o 'verdadeiro sentido' dos textos normativos em termos do tipo definido e juridicamente 'correto' do uso da língua no respectivo contexto normativo. A função de escolha e de delimitação do programa normativo ligada a isso faz com que a análise do âmbito normativo, como parte integrante da concretização jurídica, fortaleça a normatividade da disposição legal como uma normatividade marcada pelos dados reais, em vez de deixá-la de lado em prol de um sociologismo avesso à norma". Ibid., p. 238.

Ao lado disso, na linha da hermenêutica filosófica de Gadamer, é preciso lembrar que qualquer objeto histórico somente pode ser adequadamente compreendido a partir da sua relação com outros objetos. Como assinala Róbson Reis, "dado que não nos é possível conhecer todas as relações com eventos futuros