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DO HOTEL BRAGANÇA AO ALTO DE SANTA CATARINA: O ESPAÇO

2. GEOGRAFIA E LITERATURA: UMA PROPOSTA DE DIÁLOGO

3.7 DO HOTEL BRAGANÇA AO ALTO DE SANTA CATARINA: O ESPAÇO

Habitar uma cidade, ou seja, aí permanecer durante certo tempo, significa estabelecer com ela uma relação de proximidade. Por sua vez, habitar um lugar implica, de acordo com Tuan (1983), permanência e apropriação do mesmo. Habitar um lugar pode, por outro lado, assumir modalidades diferentes. Ricardo Reis habita a cidade utilizando-se dos recursos que ela oferece. O café, que é uma componente indissociável das cidades portuguesas, encontra no romance mais um frequentador (Figura 12):

Figura 12 – Pormenor da entrada de ”A Brasileira” do Chiado.

Fonte: Paulo O.N.D.Teixeira.

Entrou na Brasileira para descansar um pouco as pernas, bebeu um café, ouviu falar uns que deviam ser literatos, dizia-se mal de pessoa ou animal, É uma besta, e como esta conversa se cruzava com outra, intrometeu-se acto contínuo uma voz autoritária que explicava, Eu recebi directamente de Paris, alguém comentou, Há quem afirme o contrário, não soube a quem a frase se dirigira, nem o seu significado, seria ou não seria besta, viera ou não viera de Paris (SARAMAGO, 1988, p.180).

Ao escolher o seu posto de observação, o heterônimo, na senda do seu criador, Fernando Pessoa, apropria-se ao mesmo tempo de um espaço. Esta forma direta de assinalar a sua presença permite afirmar a sua identidade própria num espaço aparentemente impessoal. O poeta habita Lisboa no sentido em que se apropria dela, pouco a pouco. Dito de outro modo, ele escolhe, encontra e marca a sua posição no seio da cidade. Como afirma Tuan (1983, p. 83), “Quando o espaço nos é inteiramente familiar, torna-se lugar”. Quer dizer, a relação entre um sujeito e o lugar, se ela se faz sob o signo da apropriação, instaura um pacto. Trata-se para o sujeito de criar um vínculo com a cidade de modo a que uma complementaridade se instaure entre essas duas entidades.

Figura 13 – O Hotel Bragança (1958).

Fonte: www.blogspot.pt.

A problemática do espaço privado é colocada em O Ano da Morte de Ricardo

Reis. Nos primeiros meses da sua estada em Lisboa, o domicílio de Ricardo Reis

resume-se a um quarto de hotel no Hotel Bragança (Figura 13).

O viajante gostou do quarto, ou quartos, para sermos mais rigorosos, porque eram dois, ligados por um amplo vão, em arco, ali o lugar de dormir, alcova se lhe chamaria noutros tempos, deste lado o lugar de estar, no conjunto um aposento como uma casa de habitação, com a sua escura mobília de mogno polido, os reposteiros nas janelas, a luz velada (SARAMAGO, 1988, p.19).

O que distingue um quarto de hotel, “lugar neutro, sem compromisso, de trânsito e vida suspensa” (SARAMAGO, p.10), é a sua impessoalidade. O hotel destina-se a pessoas que se encontram de passagem pela cidade (como sucede com Marcenda que, acompanhada do pai, vem uma vez por mês de Coimbra ao médico). O narrador esclarece: “[…] um hotel não é uma casa, convém lembrar outra vez, vão-lhe ficando cheiros deste e daquela, uma suada insónia, uma noite de amor, um sobretudo molhado, o pó dos sapatos escovados na hora da partida […]” (SARAMAGO, 1988, p. 22). É um espaço que, salvo exceções, não é habitado, no sentido em que habitar é permanecer e apropriar-se de um lugar. No entanto, essa leitura inicial do hotel será

corrigida e em poucos dias vemos o protagonista, no decurso das suas deambulações pela cidade, sentir “aquela repentina saudade do quarto” (SARAMAGO, 1988, p. 46). O que era espaço marcado pela neutralidade vê-se assumir as características da casa – “é como estar em casa, no seio da família, do lar que não tenho” (SARAMAGO, 1988, p. 28) – e ser investido dos valores atribuídos a um lugar:

Ao entrar no quarto, Ricardo Reis vê a cama aberta, colcha e lençol afastados e dobrados em ângulo nítido, porém discretamente, sem aquele desmanchado impudor da roupa que se lança para trás, aqui há apenas uma sugestão, em querendo deitar-se, este é o lugar (SARAMAGO, 1988, p.55).

Mas o narrador precisa a singularidade da situação na qual se encontra Ricardo Reis ao fim de três meses em Lisboa: “começava a sentir-se enfadado do hotel, esta rotina, precisava de ter casa sua, abrir consultório […]” (SARAMAGO, 1988, p. 198). A suspeição de que passa a ser vítima por parte dos funcionários e hóspedes, após receber uma intimação para comparecer na polícia política faz com que se torne “irrespirável a atmosfera do Hotel Bragança […]” (SARAMAGO, 1988, p. 203). Nesta ausência de um espaço onde se sinta à vontade, o médico e poeta vê-se obrigado a procurar a sua própria morada.

Figura 14 – A morada de Ricardo Reis no Alto de Santa Catarina.

Nos dias seguintes Ricardo Reis pôs-se à procura de casa. Saía de manhã, regressava à noite, almoçava e jantava fora do hotel, serviam-lhe de badameco as páginas de anúncios do Diário de Notícias, mas não ia para longe, os bairros excêntricos estavam fora dos seus gostos e conveniências, detestaria ir viver, por exemplo, lá para a Rua dos Heróis de Quionga, à Moraes Soares, onde se tinham inaugurado umas casas económicas de cinco e seis divisões, renda realmente barata, entre cento e cinco e duzentos e quarenta escudos por mês, nem lhas alugariam a ele, nem ele as quereria, tão distantes da Baixa e sem a vista do rio. Procurava, de preferência, casas mobiladas, e compreende-se, um homem só, como se governaria ele na compra de um recheio de habitação, os móveis, as roupas, as louças, sem ter à mão um conselho de mulher […](SARAMAGO, 1988, p. 201-201).

A busca de um espaço privado para Ricardo Reis conclui-se quando encontra um apartamento no Alto de Santa Catarina (Figura 14). A apresentação da nova residência permite situar os referentes espaciais e, ao mesmo tempo, mostrar algumas características da personalidade da personagem que nela se instala.

Ricardo Reis aproximou-se duma janela, através da vidraça sem cortina viu as palmeiras do largo, o Adamastor, os velhos sentados no banco, e o rio sujo de barro lá adiante, os barcos de guerra com a proa virada para terra, por eles não se sabe se a maré está a encher ou a vazar, demorando aqui um pouco logo veremos, Quanto é a renda, quanto é a indemnização pela mobília, em meia hora, se tanto, com algum discreto regateio, se puseram de acordo, o procurador já tinha visto que estava a tratar com pessoa digna e de posição, Amanhã vossa excelência passa pelo meu escritório para tratarmos do arrendamento, e olhe, senhor doutor, deixo-lhe a chave, a casa é sua (SARAMAGO, 1988, p. 206).

O princípio de apropriação de uma cidade apresenta semelhanças com a ideia de habitar uma residência. Como indica Bachelard (1989, p. 25), “todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa”. O apartamento urbano é um espaço que se ocupa e que, desde logo, se vê marcado pela identidade do seu morador. O modo de Ricardo Reis ver o apartamento é posto em evidência por Saramago ao descrever a sua aparência:

[…] esta é a casa, vasta, ampla, para numerosa família, uma mobília também de mogno escuro, profunda cama, alto guarda-fato, uma sala de jantar completa, o aparador, o guarda-prata, ou louças, dependendo das posses, a mesa extensível, e o escritório, de torcido e tremido pau-santo, com o tampo da secretária forrado de pano verde, como mesa de bilhar, puído num dos cantos, a cozinha, a casa de banho rudimentar, mas aceitável, porém todos os móveis estão nus e vazios, nenhuma peça de louça, nenhum lençol ou toalha, A pessoa que aqui viveu era uma senhora idosa, viúva, foi morar com os filhos, levou as suas coisas, a casa é alugada só com os móveis (SARAMAGO, 1988, p.206).

Ver o interior de um apartamento significa intrometer-se na intimidade do locatário. Para Bachelard (1989, p. 56), a observação dos interiores torna possível identificar a maneira pela qual são habitados: “[…] há sentido em dizer que se ‘lê uma casa’, que se ‘lê um quarto’, já que quarto e casa são diagramas de psicologia que guiam os escritores e os poetas na análise da intimidade”. Noutras palavras, os espaços habitados funcionam como reveladores da personalidade do morador. Habitar um espaço consiste, de algum modo, numa tomada de possessão: “Eu moro aqui, é aqui que eu moro, é esta a minha casa, é esta, não tenho outra […]” (SARAMAGO, 1988, p. 219).

Segundo Tuan (1983, p. 159), habitar um lugar implica dotá-lo de traços pessoais: “A casa como lugar está cheia de objetos comuns”. O fato de lhe acrescentar características pessoais, permite ao inquilino tomar possessão da sua residência e de a fazer sua.

No dia seguinte Ricardo Reis foi às lojas, comprou dois jogos completos de roupa de cama, toalhas de rosto, pés e banho, felizmente não tinha de preocupar-se com a água, o gás, a luz, não tinham sido cortados pelas respectivas companhias, se não quiser fazer contratos novos continuam em nome do inquilino anterior, isto disse-lhe o procurador, e ele concordou. Também comprou alguns esmaltes e alumínios, fervedouro para o leite, cafeteira, chávenas e pires, uns guardanapos, café, chá e açúcar, o que era preciso para a refeição da manhã, que almoço e jantar seriam fora. Divertia- se nestas tarefas, lembrado dos seus primeiros tempos no Rio de Janeiro, quando, sem ajuda de ninguém, cometera iguais trabalhos de instalação doméstica (SARAMAGO, 1988, p.209-210).

Caminhar na rede das ruas é entregar-se à dialética do exterior e do interior (BACHELARD, 1989) ou, para usar a formulação sintética de Benjamin (2006, p. 466), à prática da “rua como intérieur”. É necessário sair periodicamente, atravessá-la e abordar esses fragmentos fugidios da realidade. Espaços exteriores e interiores dialogam constantemente no romance, como se Ricardo Reis desposasse a matéria da cidade ao mesmo tempo que permite que a sua identidade se abra a ela. Nas palavras de Bachelard (1989, p. 221), “O exterior e o interior são ambos íntimos; estão sempre prontos a inverter-se, a trocar sua hostilidade”.

A geografia pessoal de Ricardo Reis remete para esse espaço simultaneamente interior e exterior que se constrói pela mediação de um olhar e de um corpo em movimento pelo mundo. Trata-se de um espaço na aparência sólido que se desmorona a seus pés como um monte de escombros – “um terramoto interior, como grandes cidades caindo silenciosamente porque lá não estamos, pórticos e torres

brancas desabando” (SARAMAGO, 1988, p. 41) – e que lhe compete reorganizar. Porque o mundo muda sem cessar, a sua geografia pessoal muda também. Lisboa torna-se viva na medida em que ele a recria continuamente: a cidade desloca-se ao ritmo dos seus passos e do seu pensamento.

4 “UM LABIRINTO COM UM DEUS”: TEXTO, IDENTIDADE E MEMÓRIA

4.1 DA INTERTEXTUALIDADE À CIDADE COMO TEXTO