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2. GEOGRAFIA E LITERATURA: UMA PROPOSTA DE DIÁLOGO

2.7 A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO

2.7.2 Procedimentos Metodológicos

Na sequência do que se disse anteriormente, procuramos estabelecer um diálogo entre objetos de investigação específicos e diferentes técnicas e instrumentos. O trabalho do geógrafo que procura apreender a complexidade das relações que se estabelecem entre o homem e o lugar, pela mobilização das representações textuais, não se deve inscrever numa simples lógica de apropriação, mas antes corresponder ao resultado de um esforço de adaptação e integração de instrumentos e de técnicas oriundos de diversos campos disciplinares. Uma abordagem desta natureza permite uma compreensão renovada dos fenômenos geográficos, mostrando de que modo a literatura pode trazer à ciência uma nova maneira de pensar o espaço em Geografia. A pesquisa qualitativa deve ser vista como uma estratégia de investigação que não se resume a uma coleção de informações, a uma simples montagem de ferramentas de investigação e de análise. Com efeito, a validade desta abordagem reside na flexibilidade das combinações possíveis de técnicas e de modos de fazer, tendo em vista a construção de um conjunto de instrumentos adaptados à investigação que se pretende realizar. A metodologia qualitativa funda-se na aplicação de ferramentas cujo contributo essencial reside na parte de iniciativa que deixa ao pesquisador:

Para Delgado (1990), a principal característica da metodologia qualitativa é a não-compatibilidade com as generalizações e normatizações. Segundo a autora, essa maneira de analisar os objetos de estudo corrobora para as contrageneralizações e contribui para relativizar conceitos e pressupostos que tendem a universalizar as experiências humanas (DE PAULA E MARANDOLA JR., 2009).

Num primeiro momento, procedemos à leitura e análise de conteúdo do romance, que obedeceu a duas etapas: 1) O estabelecimento da unidade de análise, por meio de um levantamento dos vocábulos (topônimos) que designam os elementos nos quais se assenta a estruturação do espaço urbano de Lisboa (LYNCH, 1997) e da análise das afirmações produzidas pelos narradores e pelo protagonista do romance, a respeito dos lugares de Lisboa e dos elementos acima referidos; 2) A determinação das categorias de análise, a partir da proposta de Duverger (MARCONI e LAKATOS, 1999, p. 133), a saber, de matéria, procedendo-se ao registro dos temas tratados, e de apreciação, registrando-se a valoração atribuída pelo narrador e pelo protagonista ao longo dos percursos realizados por este em Lisboa.

A pesquisa bibliográfica realizada nesta primeira fase, contemporânea da elaboração do projeto de pesquisa, permitiu, no seu confronto com o objeto de estudo, verificar a pertinência de se estabeleceram paralelos entre Ricardo Reis e a figura do flâneur, tal como esta foi definida por Benjamin (1989, 2006). A interpretação da obra, fundamentada na fenomenologia hermenêutica, foi orientada a partir daí pela figura do percurso e pela prática da flânerie como modo de leitura do espaço urbano. Assim sendo, a análise de conteúdo, a pesquisa bibliográfica, a pesquisa documental (mapas; fotografias que registram edifícios ou funções da cidade que não mais existem) em arquivos e bibliotecas, foram associadas à pesquisa de campo. Por ocasião da minha última viagem a Lisboa, procedi a um levantamento da área percorrida pelo protagonista, considerando os seus percursos e os elementos de estruturação do espaço urbano (LYNCH, 1997) referidos no romance. De acordo com Silva (2010, p. 169), um aspecto salientado na obra de Lynch é a questão dos trajetos a partir dos quais se configura a experiência urbana:

Todos os elementos que organizam a imagem da cidade de Lynch são de fato experiências móveis: as vias, os limites, os bairros, os pontos nodais, os marcos ... porque dependem de trajetos. Os trajetos, isto é, seus modos de realização e composição, é que devem, portanto, ser problematizados. Se a imagem da cidade se propõe principalmente um sistema de referências capazes de orientar não apenas a circulação, como também a fruição desses elementos visuais, é porque o autor pressupõe uma cidade em movimento.

A fim de permitir a sua visualização, os percursos de Ricardo Reis pelo Bairro Alto e pelo Chiado e a Baixa, foram representados graficamente tendo como base digital o site disponibilizado pela Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa interactiva.

Do trabalho de observação no campo agregamos alguns exemplos julgados pertinentes na forma de imagens fotográficas que acompanham o texto da dissertação e com ele (e as citações retiradas do romance) dialogam. Elas sinalizam marcos (monumentos e estátuas), limites (o rio Tejo), vias, pontos nodais e pormenores de bairros (Bairro Alto e Alto de Santa Catarina) que estruturam a imagem da cidade no romance. Segundo Flick (2009, p. 229), “Os métodos de dados visuais possibilitam novas formas de documentação do aspecto visual dos ambientes e das práticas sociais, bem como a integração destes como parte da pesquisa”. O mesmo autor (2009, p. 228) argumenta que “Vistos desta forma, os métodos de dados visuais complementam os métodos de dados verbais e aprimoram a pesquisa multifocal abrangente”. A fotografia funciona como um documento, permitindo ao leitor brasileiro não familiarizado com a cidade confrontá-la com a descrição da Lisboa feita pelo narrador, evidenciando mudanças e permanências entre o tempo da trama e a atualidade. Ao estabelecerem uma mediação entre a memória do protagonista e a memória pública figurada no presente, as fotografias possibilitam um confronto entre a representação da cidade no texto e a representação da história fixada em monumentos e estátuas.

Como escreve o autor canadense,

O diálogo, como lembra Bakhtin, é virtualmente infinito. Mas o texto é constantemente o parâmetro da interpretação. Naturalmente, é difícil dar conta, no corpo da análise, que se apresenta como uma leitura acabada, da troca da qual ela procedeu. (BROSSEAU, 1996, p. 59, tradução minha)

Aquilo que aqui apresentamos é, assim, a “decantação” da pesquisa realizada e o resultado de um convívio com o romance que se estende por muitos anos, “o fruto do percurso [efetuado] entre a minha posição inicial face ao texto e o movimento gerado pelo diálogo” (BROSSEAU, 1996, p. 59, tradução minha).

3 A GEOGRAFIA PESSOAL DE RICARDO REIS

3.1 RICARDO REIS E A FIGURA DO FLÂNEUR: O ARTISTA E “ESPECTADOR DO