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2. GEOGRAFIA E LITERATURA: UMA PROPOSTA DE DIÁLOGO

2.7 A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO

2.7.1 Fenomenologia e Hermenêutica

A especificidade da pesquisa que nos propusemos realizar exigiu o recurso a uma metodologia própria, adequada à aproximação entre dois domínios disciplinares, a Geografia e a Literatura.

A ideia de diálogo parece emergir de uma constatação: eu, enquanto geógrafo (no seio das ciências humanas) e o romance (no seio da literatura) constituímos duas esferas autônomas, duas totalidades, ou seja, dois sujeitos que apenas um “método” dialógico pode fazer comunicar (BROSSEAU, 1996, p. 60, tradução minha).

O diálogo encetado procurou conciliar a análise geográfica (morfologia, funções e estruturação do espaço urbano) com a crítica literária de índole temática, que, de acordo com Brosseau (1996, p. 82, tradução minha), melhor se presta, em detrimento daquela de índole estruturalista-semiótica, a uma abordagem desta natureza: “No conjunto dos seus temas (elementos, espaço e tempo, sensações, mundo vivido, etc.), esta tradição crítica, por outro lado dificilmente assimilável a uma abordagem codificada, aborda questões caras à geografia humana”.

A abordagem dialógica recorreu à fenomenologia, na senda de Merleau-Ponty e de Bachelard, tendo em vista a descrição da experiência perceptiva de Lisboa por parte do protagonista do romance. Um conjunto de artigos, exemplificando os modos pelos quais os geógrafos podiam abordar a literatura, reunidos por Douglas C. Pocock na obra Geography and Literature, Essays of the Experience of Place, defendia que os geógrafos deviam começar o seu estudo da literatura pelo

reconhecimento da capacidade perceptiva do artista: a literatura é o produto da percepção, ou, mais simplesmente, é percepção. O escritor articula em consequência as nossas próprias afirmações a respeito do lugar, dos nossos próximos e de nós mesmos, fornecendo deste modo uma base para um conhecimento novo, uma nova consciência (POCOCK, 1981, p. 15, tradução minha).

O autor reivindicava que a literatura podia estabelecer para os geógrafos a base para um nova percepção nos seus domínios de investigação. Procurando meios para abordar as dimensões subjetiva e afetiva da experiência do lugar até aí negligenciadas pela disciplina, alguns geógrafos recorreram a técnicas associadas com a fenomenologia. O foco no significado e na experiência do lugar destacou a relevância da literatura como um meio com o qual a Geografia, enquanto disciplina, poderia criticar as reivindicações de objetividade dos modelos positivistas. A literatura, e o romance em particular, seriam associados, desde o início, a esta reabilitação da subjetividade no estudo do sentido do lugar. Pois “[...] o romance é o domínio fenomenológico por ‘excelência’, é o lugar para estudar a forma pela qual a realidade nos aparece ou nos pode aparecer” (BOEURNEUF e OUELLET, 1976).

Tendo em conta o fato de que, no romance de Saramago, a memória e o confronto com a história desempenham um papel fundamental, pareceu-nos necessário aliar a este método a interpretação do texto no modo como ela é proposta pela fenomenologia hermenêutica de Ricoeur (2000). Para Holanda (2006, p. 367- 368), “O que a perspectiva hermenêutica traz de grande contribuição e que está no centro de sua metodologia e de seu projeto, é a ideia de inter-relação entre ciência, arte e história, para a elaboração de uma interpretação condizente”.Na sequência do que anteriormente se disse, Holanda acrescenta (2006, p. 368) que

A expressão “círculo hermenêutico” é uma metáfora para designar o processo da compreensão das ciências do espírito (e também humanas) e da interpretação em geral. […] Define-se pelo fato de que o solo das interpretaçõesse dá sobre as experiências que são continuamente refeitas e reinterpretadas: “O homem cresce sobre si mesmo, é um novelo de experiências. E cada nova experiência é uma experiência que nasce sobre o fundo das anteriores e a reinterpreta” (Reale & Antiseri, 1991, p. 628). […] Na perspectiva de Paul Ricoeur, definem-se alguns critérios para a elaboração de um trabalho hermenêutico, dentre os quais destacamos o esforço pela fixação no sentido, bem como a necessidade de se interpretar os protocolos como um todo, como uma gestalt de sentidos interconectados, o que revela a potencialidade para múltiplas interpretações.

De acordo com o autor francês, “A tarefa da hermenêutica […] é dupla: reconstruir a dinâmica interna do texto e restituir a capacidade da obra projetar-se para o exterior mediante a representação de um mundo habitável” (RICOEUR, 2000, p. 205, tradução minha). Brosseau (1996, p. 58, tradução minha) esclarece bem que não é possível, por meio do recurso à prática do dialogismo, escapar ao problema do círculo hermenêutico, que considera uma operação fundamental nas ciências humanas:

A interpretação intervém desde o começo: é um logro crer que esta não é senão o resultado de um modo de pensar. Com efeito, não se trata de procurar escapar a esse círculo – coisa que se afigura desde logo impossível – mas de saber entrar nele e aceitar proceder a um vaivém entre os pormenores e o conjunto. […] Esse jogo de avanços e recuos entre a explicação do pormenor e a compreensão da totalidade subentende também a possibilidade de reajustar o alvo, de redefinir os termos do diálogo em curso.

Num outro trecho da sua obra, Brosseau (1996, p. 197, tradução minha) afirmará que “O espaço é ao mesmo tempo fonte e objeto de um desejo hermenêutico. Ele solicita o olhar que tenta interpretá-lo. Nessa busca de sentido, o percurso torna- se na sequência lógica do olhar que orienta na ‘boa direção’”.

Defensora da adoção do método em Geografia, Araújo (2007, p. 159-160) afirma que

O conhecimento hermenêutico, do mesmo modo, não é estabelecido por uma estrutura metodológica previamente definida […]. Antes, é atravessado por um campo de forças (expectativas, conflitos, tensões, horizontes de fusões, compreensões-interpretações), nos quais as identidades de cada parte envolvida no projeto (a do cientista-pesquisador, a do professor, a do observador, a do técnico e a dos sujeitos-sujeito pesquisados) são permeadas pelas posições que assumem diante do todo e da parte, e vice- versa.