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Do julgamento da ADI 4.424 – DF (2012) até os dias atuais

5 A APLICAÇÃO DA PROPOSTA DE DESCRIÇÃO DO DIREITO NA MUDANÇA

5.1 A ANÁLISE DA INICIATIVA DA AÇÃO PENAL DECORRENTE DE LESÃO

5.1.7 Do julgamento da ADI 4.424 – DF (2012) até os dias atuais

Logo após a decisão do STJ, em 06/04/2010, a Procuradoria-Geral da República ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, requerendo que fosse atribuída interpretação conforme à Constituição aos art. 12, inciso I, 16 e 41 da Lei nº 11.340/2006, a fim de que fosse declarada a inaplicabilidade da Lei nº 9.099/95 nos casos de violência doméstica e, por conseguinte, que o Supremo assentasse que o crime de lesão corporal leve praticado contra a mulher, em ambiente doméstico, deveria ser processado mediante ação penal pública incondicionada, restringindo, portanto, a aplicação dos artigos 12, inciso I, e 16 da Lei Maria da Penha às ações penais cujo requisito da representação estivesse expresso tão somente em outras leis que não fosse na Lei nº 9.099/95.

O plenário se reuniu no dia 09/02/2012 para julgamento. O Ministro Marco Aurélio foi o relator e proferiu voto pela procedência da ação. Na conclusão de seu voto ele diz: “para expungir quaisquer dúvidas, resta emprestar interpretação conforme à Carta da República aos artigos 12, inciso I, e 16 da Lei nº 11.340/2006, para assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal, pouco importando a extensão dessa última” (AURÉLIO, 2012, p. 14).

215 Ver, por exemplo, em: STJ - AgRg no REsp: 1184710 RJ 2010/0041470-7, Relator: Ministro HAROLDO

RODRIGUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/CE), Data de Julgamento: 03/08/2010, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/08/2010; HC: 96601 MS 2007/0296925-4, Relator: Ministro HAROLDO RODRIGUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/CE), Data de Julgamento: 16/09/2010, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/11/2010;

216 Ver, a exemplo, em: TJ-MT - HC: 00466409820118110000 46640/2011, Relator: DES. GÉRSON FERREIRA

PAES, Data de Julgamento: 20/07/2011, SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 26/07/2011; TJ-RJ - APL: 00125149820078190045, Relator: SUIMEI MEIRA CAVALIERI, Data de Julgamento: 14/12/2010, TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 14/02/2011.

Tal endendimento foi acompanhado pelos Ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux e Rosa Weber. Na divergência figurou o Ministro Cezar Peluso. As razões pelas quais a maioria votou pela procedência da ação se aproximam em muito ao que disseram os ministro vencidos no julgamento da matéria no STJ. Veja-se, por todos, o que diz trecho do voto da Ministra Rosa Weber (2012, p. 39):

Ao excetuar das hipóteses de incidência da Lei 9.099/1995 os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, o art. 41 da Lei 11.340/2006 se mostra categórico. Ao afirmar inaplicável a Lei 9.099/1995, tenho por clara a atribuição, pelo legislador, a tais crimes, de tratamento específico – diferenciado – dando nova dimensão, quanto à sua importância, a esse tipo de ilícito. Procedendo a nova valoração, alterou o seu processamento de maneira abrangente.

O legislador da Lei Maria da Penha não explicitou, nem no art. 41 nem em qualquer outro dispositivo desse diploma, os fins para os quais negou a aplicação da Lei 9.099/1995 aos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Referiu-se à lei in totum. É regra básica de hermenêutica jurídica que não cabe ao intérprete distinguir onde o legislador não distinguiu, de modo a excluir da eficácia do preceito, no caso, a definição do tipo de ação penal cabível. Compreensão diversa estaria a conflitar com o § 8º do art. 226 da Lei Maior.

Mas, como dito, houve um voto divergente que cumpre a nós analisarmos se ele responde, satisfatoriamente, à pergunta de como o sistema jurídico valorou normativamente o fato sub judice. Para entendermos tal posição, gostaríamos de iniciar chamando a atenção que, logo após o voto do Ministro relator, o Ministro Cezar Peluso iniciou um debate acerca da posição expressada. Vejamos um trecho:

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (PRESIDENTE) – Eu quero compartilhar com Vossa Excelência e, desse modo, com todo o Plenário, não uma divergência, mas uma preocupação. Estamos todos aqui imbuídos do mesmo propósito de dar à norma uma interpretação tuitiva da condição de vulnerabilidade da mulher. Então, esse é o pressuposto.

Vossa Excelência não receia que, voltando ao regime anterior da ação civil (sic) pública incondicionada, caiamos na mesma inibição, que tinham antes as mulheres, de dar a notícia-crime? Porque hoje o sistema, na condicionada, com a possibilidade de renúncia...

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – Não, admito que continue podendo implementar a notícia-crime, mas endosso a viabilidade de essa notícia-crime ser dada, por exemplo, por um vizinho que haja percebido a violência.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (PRESIDENTE) – Eu estou preocupado com isso, queria ouvir Vossa Excelência e ouvir o Plenário. Estou pensando aqui o que poderia eventualmente ocorrer. Estamos perante uma realidade que pode ser modificada conforme a nossa decisão. Estou pensando se o fato de tornarmos a ação civil (sic) pública incondicionada não representaria maior inibição paras as notícias crimes por parte da mulher. Porque, veja Vossa Excelência o que estou pensando.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – Presidente, o receio não procede (BRASIL, 2012, p. 17, grifos nossos).

Qual o problema mais uma vez dos argumentos do julgador, dessa vez de Peluso? Ao invés de responder como o sistema jurídico já valorou a situação, o Ministro presidente da corte à época esboça preocupação acerca do futuro, sem levar em consideração o presente que está normado. Veja, a preocupação é o que pode vir a acontecer a depender da decisão e não o que foi decidido pelo modelo jurídico legislativo.

Interessante notar que, em outro trecho, o Ministro diz: “Só estou mostrando uma preocupação. Eu quero dar uma interpretação que mais bem atenda à necessidade de proteção da mulher” (PELUSO, 2012, p. 18). Logo em seguida a Ministra Carmém Lúcia (2012, p. 18) diz: “E eu quero exatamente participar desta preocupação de Vossa Excelência”. O problema é que para um, a interpretação que melhor atende à necessidade de proteção da mulher é tornar a ação penal pública condicionada e, para outro, é tornar a ação penal pública incondicionada. Assim, saber qual é a interpretação que melhor atende à necessidade da mulher não pode ser considerado um critério seguro, já que, através dele, pode-se chegar a resultados completamente opostos.

E mais. Ao não se questionar como o sistema valorou a situação normada, ou seja, o que os cidadãos já comuncaram através de seus representantes, que criaram o modelo jurídico legislativo, os julgadores deixam a mercê os jurisdicionados, em razão do que cada um dos Ministros possa vir a acreditar ser melhor para eles217. Se assim for, as expectativas congruentes e generalizadas se enfraquecem em demasia, já que os cidadãos não teriam como antever as decisões, minimamente, para poder guiar suas condutas pela lei, uma vez que teriam que aguardar um julgamento dos tribunais para saberem como agir218.

Tão intrigante quanto a discussão em si é a proposta do Ministro Peluso. Ainda nos debates ele diz: “eu estaria pensando em uma alternativa: manter eventualmente a necessidade da representação interpretando-a como irretratável” (PELUSO, 2012, p. 19). E com base em

217 “Temos que levar em consideração – sem tomar como base investigações psicológicas – que os juristas, carentes

de controles dogmáticos, não estarão em condições de diferenciar suficientemente, em um processo de avaliação das consequências de suas decisões, as suas expectativas valorativas e seus critérios decisórios; e então o controle político do acesso à decisão legal e a seleção de pessoal que tem que decidir sobre o legal e o ilícito, se tornaria um problema. Finalmente, perderia todo sentido diferenciar entre as distinções conforme direito/contrário ao direito e bom/mal, diferença esta pela qual Sócrates morreu” (LUHMANN, 1983b, p. 90- 91, tradução nossa).

218 “O cidadão tem que prever as decisões do sistema jurídico. Precisamente por isso a decisão do sistema jurídico

não pode se basear, por sua vez, somente na previsão de suas próprias consequências. Isto obrigaria ao cidadão ter que prever as previsões” (LUHMANN, 1983b, p. 68, tradução nossa).

qual comunicação poder-se-ia interpretar dessa maneira? Como seria possível criar uma representação que foge completamente de suas características para torná-la não retratável?

Mas, passado o debate, já estando o placar de 10x0 pelo procedência da ação, o Ministro Cezar Peluso emite seu voto e no seu fundamento afirma: “não como mera oposição à douta maioria, senão também como advertência para o legislador que, no caso, segundo todas as presunções, tinha boas razões para dar caráter condicionado à ação penal” (PELUSO, 2012, p. 91). E conclui: “pouco menos que discordância intelectual com a postura adotada pela douta maioria, vou votar vencido para que meu voto fique marcado como advertência para o legislador” (PELUSO, 2012, p. 93). Diante do exposto, podemos notar que, segundo nossa lente de pesquisa, o voto do Ministro Cezar Peluso não responde de forma satisfatória como o sistema jurídico valora normativamente o fato julgado, já que utiliza sua atividade juridicante para registrar uma advertência ao legislador, ao invés de analisar como o sistema jurídico valorou normativamente o fato em julgamento.

Ocorre que, com a decisão do Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça reviu seu posicionamento e editou a súmula 542 que, in verbis, afirma: “a ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada”. Após a edição da súmula ainda modificou o teor do Recurso Repetitivo sobre o tema, e à unanimidade219, através do julgamento da petição de nº 11.805 – DF (2016/0296937- 8), cujo relator e requerente foi o Ministro Rogério Schietti Machado Cruz, decidiu conforme a seguinte ementa:

PETIÇÃO. QUESTÃO DE ORDEM. RECURSOS REPETITIVOS. TEMA N. 177. CRIME DE LESÕES CORPORAIS COMETIDOS CONTRA A MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR. NATUREZA DA AÇÃO PENAL. REVISÃO DO ENTENDIMENTO DAS TERCEIRA SEÇÃO DO STJ. ADEQUAÇÃO AO JULGAMENTO DA ADI N. 4.424/DF PELO STF E À SÚMULA N. 542 DO STJ. AÇÃO PÚBLICA INCONDICIONADA. 1. Considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia, deve ser revisto o entendimento firmado pelo julgamento, sob o rito dos repetitivos, do REsp n. 1.097.042/DF, cuja quaestio iuris, acerca da natureza da ação penal nos crimes de lesão corporal cometidos contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, foi apreciada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em sentido oposto, já incorporado à jurisprudência mais recente deste STJ. 2. Assim, a tese fixada passa a ser a seguinte: a ação penal nos crimes de lesão corporal leve cometidos em detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar, é pública incondicionada. 3. Questão de ordem acolhida a fim de proceder à revisão do entendimento consolidado por ocasião do julgamento do REsp n. 1.097.042/DF - Tema 177. (STJ - Pet: 11805 DF 2016/0296937-8, Relator:

219 Votaram os Ministros Nefi Cordeiro, Reynaldo Soares da Fonseca, Ribeiro Dantas, Antonio Saldanha Palheiro,

Ministro Rogerio Schietti Cruz, Data de Julgamento: 10/05/2017, S3 - Terceira Seção, Data de Publicação: DJe 17/05/2017).

Assim sendo, podemos verificar que o modelo jurídico jurisprudencial por nós estudado passou por uma evolução, já que a variação do elemento norma, trazida pelo art. 41 da Lei Maria da Penha, modificou a sua estrutura, passando a ser incondicionada a ação penal, também, para os Tribunais. Outrossim, pode ser constatada que houve uma seleção positiva por parte do STF e, posteriormente, o sistema se estabilizou, através das decisões que se seguiram e passaram a adotar a tese da Suprema Corte, conforme se percebe da edição da nova súmula do STJ e a modificação de teor do Recurso Repetitivo que tratava do assunto.

Dessa forma, ao fim do estudo do modelo jurídico a que nos propomos, percebemos que, segundo nossa lente, a nosso ver, o Supremo acertou em sua decisão de assentar que, no nosso sistema jurídico atual, valora-se normativamente o fato de “XY”, em contexto de violência doméstica, agredir sua esposa “XX”, causando-lhe lesões corporais de natureza leve, de forma a reconhecer que a iniciativa da ação penal que visa processar e julgar tal fato seja pública incondicionada.