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Dos tipos de inciativa da ação penal no sistema jurídico brasileiro

5 A APLICAÇÃO DA PROPOSTA DE DESCRIÇÃO DO DIREITO NA MUDANÇA

5.1 A ANÁLISE DA INICIATIVA DA AÇÃO PENAL DECORRENTE DE LESÃO

5.1.1 Dos tipos de inciativa da ação penal no sistema jurídico brasileiro

Cediço é que a ação penal “é o direito do Estado-acusação ou do ofendido de ingressar em juízo, solicitando a prestação jurisdicional, representada pela aplicação das normas de direito penal ao caso concreto” (NUCCI, 2016, p. 182). A ação penal pode ser de iniciativa privada ou pública197. Fala-se em ação penal de iniciativa pública quando a legitimação para a

propositura da ação é privativa do Ministério Público, nos termos do art. 129, inciso I, da Constituição Federal de 1988198. Por sua vez, dizemos que a ação é de iniciativa privada quando

cabe ao ofendido ajuizar a ação devida (PACELLI, 2018, p. 128).

No caso das ações penais públicas há a obrigatoriedade do órgão ministerial em propor a ação penal (PACELLI; FISCHER, 2017, p. 116-118). Isso significa dizer que “não se atribui a ele qualquer liberdade de opção acerca da conveniência ou da oportunidade da iniciativa penal, quando constatada a presença de conduta delituosa, e desde que satisfeitas as condições da ação penal” (PACELLI, 2018, p. 117). O inverso acontece com as de iniciativa privada, já que o ofendido pode escolher promover a ação penal ou não, devendo ele fazer o juízo de oportunidade e conveniência para iniciar uma persecução penal (LOPES JUNIOR, 2016, p. 190-191).

Ocorre que a ação penal de inciativa pública pode ser incondicionada ou condicionada199. A incondicionalidade é a regra do nosso sistema, conforme dispõe o art. 100 do Código Penal Brasileiro200. Com isso, em havendo conhecimento por parte do Ministério Público de prática delituosa e presente os demais requisitos, ele já pode exercer seu dever201 de

197 Não nos olvidamos aqui da possibilidade de haver ação penal privada subsidiária da pública, prevista no art. 5º,

LIX da CF, art. 29 do CPP e art. 100, § 3º, do CP. Ocorre que em verdade, nesse caso, a ação continua sendo de iniciativa pública, havendo tão somente a ocorrência da substituição processual por parte do ofendido em razão da desídia do Ministério Público. Nesse sentido, conferir Pacelli e Fischer (2017, p. 79 e seguintes); e Lopes Junior (2016, p. 196-197).

198 “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública,

na forma da lei” (BRASIL, 1988).

199 Em que pese autores como Juarez Cirino dos Santos (2012, p. 633-634) dividirem a ação penal em pública em

incondicionada, condicionada e extensiva, entendemos qu,e embora esta última esteja prevista no art. 101 do Código Penal; ela nada mais é do que uma espécie da ação penal de inciativa pública incondicionada, já que a propositura da ação deve ser feita pelo Ministério Público independentemente de representação ou requisição. Por este motivo, entendemos ser mais correto dividir analiticamente as ações públicas, apenas em condicionadas e incondicionadas, tal como Pacelli e Ficher (2017), Aury Lopes Junior (2016) e Nucci (2016).

200 “Art. 100 - A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido” (BRASIL,

1940).

201 “É que, como as ações penais são, em regra, de natureza pública, tendo por legitimado ativo um órgão de

natureza igualmente pública (o Ministério Público), a uma conclusão imediata já se chega, sem maiores indagações: o exercício da ação penal (pública) não revela exercício de direito algum, mas de verdadeiro dever. [...] Por isso, a ação penal pública é dever do Estado, como também o é a jurisdição. Dever este que vem

ajuizar a ação penal correspondente. No entanto, em alguns casos, quando a lei expressamente assim dispor, a iniciativa a ação penal poderá ser condicionada à representação ou à requisição do Ministro da Justiça. Dessa maneira, em se tratando de crime cuja ação penal correspondente seja condicionada, o Ministério Público necessita da representação ou requisição como condição para a propositura da ação202, não podendo dar início à ação penal sem elas.

Mas porque o sistema impôs essa diferença entre as inciativas das ações penais? Segundo Pacelli (2018, p. 122), a opção pelo condicionamento para a propositura da ação penal pública se deu para buscar a proteção da vítima, posto que em alguns casos a apuração de determinados crimes pode causar efeitos ainda mais negativos para o ofendido com a publicização do fato apurado. Isso é o que:

a doutrina convencionou chamar de strepitus iudicii (escândalo provocado pelo ajuizamento da ação penal), reserva-se a ela [a vítima] o juízo de oportunidade e conveniência da instauração da ação penal, com o objetivo de evitar a produção de novos danos em seu patrimônio – moral, social, psicológico etc. – diante de possível repercussão negativa trazida pelo conhecimento generalizado do fato criminoso (PACELLI, 2018, p. 122).

Outra possível justificativa para o autor é de cunho mais pragmático, posto que “se o ofendido não se dispuser a confirmar a lesão em juízo, a ação penal dificilmente chegará a bom termo” (PACELLI, 2018, p. 122).

Nestor Távora e Rosmar Alencar (2017, p. 265) refere-se à ofensa à vítima em sua intimidade como critério para se justificar a diferenciação entre as ações penais de inciativa pública condicionada ou incondicionada. Guilherme de Souza Nucci (2016, p. 184), por sua vez, diz que:

o prisma da ação penal pública – condicionada ou incondicionada – volta-se ao interesse da sociedade na apuração e punição do infrator. Quando se permite ao ofendido o direito de representar, legitimando o Ministério Público a atuar, nada mais se faz que resguardar a mescla de interesses: público e privado.

A doutrina aponta justificativas possíveis também para a existência das ações penais de inciativa privada. Para Pacelli (2018, p. 128-129), por exemplo, “a única razão para a permanência da ação penal privada parece ser o controle – objetivo, e não discricionário – de propositura da ação penal, o que permite à vítima de determinados delitos ingressar no juízo

expressamente afirmado em texto constitucional (art. 129, I), com a privatividade da ação penal pública.” (PACELLI e FISCHER, 2017, p. 59, destaques do autor).

202 “Art. 24. Nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá,

quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo” (BRASIL, 1941).

criminal independentemente do juízo de valor que dele ou sobre ele fizer o Ministério Público”. Távora e Alencar (2017, p. 271), entretanto, dizem que:

o fundamento é evitar o constrangimento do processo (strepitus iudicii), podendo a vítima optar entre expor a sua intimidade em juízo ou quedar-se inerte, pois muitas vezes, o sofrimento causado pela exposição ao processo é maior do que a própria impunidade do criminoso. Ação penal de iniciativa privada tem assim o fito de proteger o ofendido contra a "vitimização secundária" (ou efeito vitimizador), que muitas vezes é provocada por meio de novos danos e exposições decorrentes das investigações levadas a cabo pelos órgãos da persecução penal estatal.

Dessa maneira, podemos perceber que o sistema jurídico penal criou distinções referentes às situações fáticas, de maneira a tratar a iniciativa das ações penais de forma diferente por reconhecer que há uma discrepância valorativa que deve ser levada em consideração, ao se iniciar uma ação penal (honra, intimidade, oportunidade, conveniência, segurança, etc.). No entanto, o que mais nos importa, neste momento, é ter em conta as características de cada um dos tipos de iniciativas das ações penais em apreço, posto que nosso objetivo nesta seção é estudar como os casos de lesões corporais leves em situação de violência doméstica foram sendo valorados normativamente no que pertine ao tipo de iniciativa para a propositura da ação penal no decorrer da lapso temporal escolhido. Assim, podemos passar ao estudo acerca do crime de lesões corporais leves.