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2 AS DESCRIÇÕES DO DIREITO SEGUNDO AS TEORIAS TRIDIMENSIONAL

2.2 A HETERODESCRIÇÃO DO DIREITO CONFORME A TEORIA SISTÊMICA DO

2.2.3 A operação específica do direito

Para que se entenda como ocorre a diferenciação e o fechamento operativo do direito, Luhmann (2016a, p. 80-81) explica que é preciso levar em consideração duas coisas: primeiro, é necessário compreender a codificação binária do direito, que fornece um esquema de valores positivos e negativos para as operações do sistema; e, segundo, conhecer a função do direito, que nos revela a orientação do direito para resolver um problema específico da sociedade. Ambos se relacionam e se estimulam reciprocamente. No entanto, sobre a função do direito cuidará o tópico seguinte. Por enquanto, fixemos nossa atenção à questão do fechamento operativo e a codificação do sistema jurídico.

Dizemos que um sistema possui fechamento operativo quando ele opera apenas com base em suas próprias observações/operações. “Chamamos esses sistemas de ‘operativamente fechados’, pois eles se fiam em sua própria rede de operações para a produção de suas próprias operações e, nesse sentido, reproduzem-se” (LUHMANN, 2016a, p. 59). Importante ressaltar que “‘fechado’ não deve ser entendido como ‘isolado’. Ele não impede, ainda que realce, à sua própria maneira, relações causais intensivas entre sistemas e seus ambientes e ainda que interdependências de tipo causal se façam estruturalmente necessárias para o sistema” (LUHMANN, 2016a, p. 58).

Como dissemos mais acima, quando um sistema é operacionalmente fechado, ele opera fazendo referência tão somente as suas próprias operações. Essa característica de autorreferência nos levará diretamente ao conceito de autopoiese49. Isto porque, “a autopoiese consistirá na tese (outros diriam “afirmação”) de que as estruturas só podem ser utilizadas ou não utilizadas, lembradas ou esquecidas, mediante produção pelas operações do sistema e para cada caso” (LUHMANN, 2016a, p. 84). Assim sendo, a “autopoiese envolve reprodução (produção de produtos produzidos) das operações elementares do sistema: por exemplo, o pagamento, afirmações legais, qualificações escolares, decisões coletivamente obrigatórias, etc.” (LUHMANN, 2006, p. 596, tradução nossa).

Se considerarmos essa maneira autorreferente de pensar, teremos que admitir que “somente o próprio direito pode dizer o que o direito é. Assim, a produção de estruturas engendra-se de maneira circular, já que as próprias operações demandam estruturas a fim de, por referências recursivas, determinar outras operações” (LUHMANN, 2016a, p. 66). Dessa forma, “não apenas a produção de operação por operação, mas também, a fortiori, a condensação e confirmação de estruturas por operações que orientam tais estruturas são realizações da autopoiese” (LUHMANN, 2016a, p. 67).

Com isso, pode-se notar que Luhmann toma como ponto de partida uma afirmação tautológica em que “a distinção de um sistema do direito operativamente fechado se dá por referências recursivas de operações jurídicas a operações jurídicas” (LUHMANN, 2016a, p. 76). Ocorre que essas operações jurídicas se realizam através de um código binário único do

49 “O conceito de autopoiese foi formulado pelo biólogo chileno Humberto Maturana, ao tentar dar uma definição

à organização de organismos vivos. Um sistema vivo, de acordo com Maturana, é caracterizado pela capacidade de produzir e reproduzir seus elementos constitutivos, e, assim, definir sua própria unidade: cada célula é produto de uma ação interna ao sistema, que é em si um elemento; e não de uma ação externa. A teoria dos sistemas sociais adota o conceito de autopoiese e amplia sua importância. Enquanto no campo biológico é exclusivamente confinado a sistemas vivos, de acordo com Luhmann, um sistema autopoiético é individualizado em todos os casos em que é possível individualizar um modo específico de operação, que é realizado apenas e internamente” (CORSI; ESPOSITO; BARALDI, 1996, p. 31-32, tradução nossa).

direito. Isso porque, “o código binário é constantemente reproduzido através de todas as operações do sistema (excluindo títulos de terceiros) e com as possíveis novas operações próprias que surgem de lá, o sistema exerce sua função” (LUHMANN, 2006, p. 596, tradução nossa).

Para Luhmann, o código binário que o direito usa para fins de realizar suas operações é o código lícito/ilícito. Como consequência disso, “sempre que uma operação dispõe acerca de legalidade ou ilegalidade o sistema a reconhece como uma operação própria, inserindo-a na rede recursiva de suas outras operações” (LUHMANN, 2016a, p. 237). Aqui encontramos, portanto, a primeira característica para entendermos porque o direito é um sistema funcional que possui em sua operação algo que o distingue dos demais, pois, “apenas o próprio sistema do direito pode originar seu fechamento, reproduzir suas operações, definir seus limites, e não

existe nenhuma outra instância na sociedade que poderia dizer: ‘isso é lícito e isso é ilícito’”

(LUHMANN, 2016a, p. 93, destaque do autor).

Desta forma, não é exagero dizer que em uma sociedade funcionalmente diferenciada, “fora do direito não existe nenhuma disposição sobre legalidade e ilegalidade” (LUHMANN, 2016a, p. 237). Portanto:

ao sistema do direito em si pertence apenas uma comunicação orientada por códigos, apenas uma comunicação que faça valer uma classificação dos valores “legal” e “ilegal”; pois somente uma comunicação dessa natureza busca e afirma uma integração recorrente no sistema do direito; somente uma comunicação dessa natureza toma o código como forma de abertura autopoiética, como necessidade de mais comunicação no sistema jurídico (LUHMANN, 2016a, p. 90).

Como consequência do uso do código pelo sistema, temos que “o que não puder ser apreendido com esse esquema de controle legal/ilegal não pertencerá ao sistema do direito, mas a seu ambiente interno ou externo à sociedade” (LUHMANN, 2016a, p. 82). De acordo com essa maneira de pensar, “o código em si não é uma norma. Ele nada mais é que a estrutura de um processo de reconhecimento e atribuição da autopoiese da sociedade” (LUHMANN, 2016a, p. 94).

Porém, é preciso esclarecer que isso não significa que, toda comunicação que se refere ao que é lícito ou ilícito, é uma comunicação jurídica. É preciso que se verifique o contexto funcional da comunicação. Se ela é ou não uma operação interna do sistema do direito. Quanto a isso, Luhmann (2016a, p. 97-98) nos oferece o seguinte exemplo:

na cátedra de jurisprudência é possível falar sobre os casos legais ou, na imprensa, informar sobre os veredictos do tribunal, sem que a comunicação disponha sobre valores jurídicos. Tal comunicação se encontra em outro contexto funcional, por mais que o professor de direito ou o jornalista

expressem sua própria opinião. Logo se vê a diferença quando professores de direito ou jornais falam explicitamente “em causa própria”.

Por isso, como dito acima, não é somente o código próprio que individualiza e concede ao direito seu fechamento operativo. Isto se dá também em razão da sua função, tendo em vista sua especificidade para resolver um problema social. É o que nos leva ao tópico seguinte.