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Do masculino às masculinidades: contornos dissonantes

Capítulo 4 NOS CONTORNOS DA MASCULINIDADE

4.4 Do masculino às masculinidades: contornos dissonantes

Robert Connell (1995) apresenta o debate sobre a masculinidade, entendendo que esse não é um objeto isolado, mas sim um aspecto de uma estrutura maior. Adverte que todas as sociedades contam com registros culturais de gênero, porém nem todos têm o conceito de masculinidade, só recentemente entendida com questão relevante.

140 En cualquier caso, nuestro concepto de masculinidad parece ser un producto histórico bastante reciente, a lo máximo unos cientos de años de antiguedad. Al hablar de masculinidad en sentido adsoluto, entonces, estamos haciendo gêrero en una forma culturalmente especídica. Se debe tener esto en mente ante cualquiera chamada de haber descubierto verdades transhistóricas acerca de la condición del hombre y de lo masculino (CONNELL, p. 2).

A análise de Connell apresenta três importantes caminhos trilhados pela análise sobre a masculinidade: a primeira diz respeito às definições essencialistas, que qualificam tipificações relativas ao homem e à mulher, demandas acerca de um ethos de base universal da masculinidade. As definições normativas, segunda perspectiva de análise, compreende que diferentes homens se cerquem, em diversos graus, das normas.

Já enfoques semióticos abandonam o nível da personalidade e definem a masculinidade mediante um sistema de diferença simbólica em que se contrastam lugares masculinos e femininos. Masculinidade é definida como não-feminilidade. Esse enfoque segue uma fórmula da lingüística estrutural, onde os elementos dos discursos são definidos por suas diferenças entre si. Esse enfoque tem sido extensamente utilizado nas análises culturais feministas e pós- estruturalista de gênero.

Mais produtiva do que um contrato abstrato de masculinidade e feminilidade, a masculinidade é o lugar da autoridade simbólica. O falo é a propriedade significativa da masculinidade e a feminilidade é simbolicamente definida pela carência desses. Tal definição tem sido “útil” nas análises culturais, já que escapa da arbitrariedade do essencialismo, e dos paradoxos das definições positivistas e normativas.

Aqui é necessário abarcar a ampla gama de tópicos acerca da masculinidade, outras formas de expressar as relações, o lugar com correspondência de gênero na produção e no consumo, ou instituições e lugares nas lutas sociais e militares.

O que se pode generalizar é o princípio de conexão. A ideia que um símbolo pode ser entendido só dentro de um sistema conectado se aplica igualmente bem em outras esferas. Nenhuma masculinidade surge, exceto em um sistema de relações de gênero. Nas palavras de Connell,

141 En lugar de intentar definir la masculinidade como un objeto (un caráter de tipo natural, una conduta promedio, una norma), necesitamos centrarmos en los procesos y relaciones por medio de los cuales los hombres y mujeres llevan vidas imbuidas en el género. La masculinidad, si se puede definir brevemente, es al mismo tiempo la posición en las relaciones de género, las práticas por las cuales los hombres y mujeres se comprometem con esa posición de género, y los efectos de estas práticas en la experiencia corporal, en la personalidad y en la cultura (1995, p. 6).

Em outro trecho, ele reafirma:

Cualquier masculinidade, como una configuración de la prática, se ubica simultáneamente em várias estruturas de relación, que puede estar siguiendo diferentes trayectorias históricas. Por consiguiente, la masculinidad, así como la femineidad, siempre está asociada a contradicciones internas y rupturas históricas (Ibid., p. 8).

Não é o falo (ou a falta dele) o fundamento dessa visão de mundo, e sim essa visão de mundo que, estando organizada segundo a divisão em gêneros relacionais, masculino e feminino, pode instituir o falo, constituído em símbolos da virilidade, de ponto de honra caracteristicamente masculino. “A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada” (grifo do autor). (BOURDIEU, p. 33).

Assim, o que o discurso mítico professa os ritos de instituições realizam da forma mais insidiosa, sem dúvida, porém mais eficaz simbolicamente. Eles se inscrevem na série de operações de diferenciação visando a destacar em cada agente os signos exteriores mais imediatamente conformes à definição social de sua distinção sexual. Ou para estimular as práticas que convêm a seu sexo, proibindo ou desencorajando as condutas impróprias, sobretudo na relação com o outro sexo. Exemplo são os ritos de separação, que tem a função de emancipar o menino com relação a sua mãe e garantir a progressiva masculinização.

142 As relações sociais de dominação e de exploração que estão instituídas entre os gêneros se inscrevem, assim, progressivamente, em duas classes que Bourdieu define como habitus diferentes, sob a forma de hexis corporais opostos e complementares e de princípios de visão e de divisão, que levam a classificar todas as coisas do mundo e todas as práticas segundo distinções redutíveis à posição entre o masculino e o feminino.

As mulheres, pelo contrário, estando situadas do lado do úmido, do baixo, do curvo e do contínuo, veem ser-lhes atribuídos todos os trabalhos domésticos, ou seja, privados e escondidos, ou até mesmo invisíveis e vergonhosos, como o cuidado das crianças e dos animais, bem como todos os trabalhos exteriores que lhes são destinados pela razão mítica, isto é, os que levam a lidar com a água, a erva, o verde (como arrancar as ervas daninhas ou fazer a jardinagem), com o leite, com a madeira e, sobretudo, os mais sujos, os mais monótonos e mais humildes (…) é a elas que cabe a tarefa longa, ingrata e minuciosa de catar, no chão mesmo, as azeitonas ou achas de madeira, que os homens, armados com a vara ou com o machado, deitaram por terra; são elas que, encarregadas das preocupações vulgares da gestão quotidiana da economia doméstica, parecem comprazer-se com as mesquinharias do cálculo, das contas e dos ganhos que o homem de honra deve ignorar (Ibid., p. 41).

Os homens (e as próprias mulheres) não podem senão ignorar que é a lógica da relação de dominação que impõe e inculca nas mulheres uma visão de mundo na qual seu lugar – concreto e simbólico – está carregado de imperativos morais que o qualifica positiva e negativamente. As próprias estratégias simbólicas que as mulheres usam contra os homens, como as da magia, continuam dominadas, pois o conjunto de símbolos e agentes míticos que elas põem em ação, ou os fins que elas buscam – como o amor ou a impotência do homem amado e odiado, respectivamente – têm seu princípio em uma visão androcêntrica em nome da qual elas são dominadas (BOURDIEU, p. 43). Ocorre um mito ilustrativo dessa relação contraditória:

Logo que o mundo foi criado, todos os orixás vieram para a Terra e começaram a tomar decisões e a dividir encargos entre eles, em conciliábulos dos quais somente os homens podiam participar. Oxum não se conformava com essa situação. Ressentida pela exclusão, ela vingou-se dos orixás masculinos. Condenou todas as

143 mulheres à esterilidade, de sorte que qualquer iniciativa masculina no sentido da fertilidade era fadada ao fracasso. Por isso, os homens foram consultar Olodumaré. Estavam muito alarmados e não sabiam o que fazer sem filhos para criar nem herdeiros para quem deixar suas posses, sem novos braços para criar novas riquezas e fazer as guerras e sem descendentes para não deixar morrer suas memórias. Olodumaré soube, então, que Oxum fora excluída das reuniões. Ele aconselhou os orixás a convidá-la, e às outras mulheres, pois sem Oxum e seu poder sobre fecundidade nada poderia ir adiante. Os orixás seguiram os sábios conselhos de Olodumare e assim suas iniciativas voltaram a ter sucesso. As mulheres tornaram a gerar filhos e a vida na Terra prosperou (PRANDI, p. 345).

A dominação masculina encontra, assim, todas as condições de seu pleno exercício. A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas imanentes a todos os habitus. Moldados por tais condições, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como transcendentes. Eles são liberados em grande medida da necessidade do recurso da força, já que a eficácia simbólica é muito mais eficiente, como expresso no trecho abaixo: “Como o desejo, a linguagem rompe, recusa-se a ser encerrada em fronteiras. Ela mesma fala contra nossa vontade em palavras e pensamentos que se intrometem, até mesmo violam os mais secretos espaços da mente e do corpo” (HOOKS, 2008, p. 857).

O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de cultura, de língua etc.) se exerce não na lógica pura das consciências, mas através dos esquemas de percepção, de avaliação e de ação que são constitutivos dos habitus. Na definição de Bourdieu, habitus é tudo que compõe o produto de um trabalho social de dominação e de inculcação, ao término da qual uma identidade social, que o mundo social desenha, inscreve-se em uma natureza biológica e se torna um habitus, ou lei social incorporada.

(…) assumem muitas vezes a forma de emoções corporais – vergonha, humilhação, timidez, ansiedade, culpa – ou de paixões e sentimentos – amor,

144 admiração, respeito –, emoções que se mostram ainda mais dolorosas, por vezes, por se traírem em manifestações visíveis, como o enrubescer, o gaguejar, o dasajeitamento, tremor, a cólera ou a raiva onipotente e outras tantas maneiras de se submeter, mesmo de má vontade ou até contra a vontade (…). (BOURDIEU, p. 51)

Pelo fato de o fundamento da violência simbólica residir não nas disposições modeladas pelas estruturas de dominação que as produzem, só se pode chegar a uma ruptura da relação de cumplicidade que as vítimas da dominação simbólica têm com os dominantes com uma transformação radical das condições sociais de produção das tendências que levam os dominados a adotar, sobre os dominantes e sobre si mesmos, o próprio ponto de vista dos dominantes (BOURDIEU, p. 54).

Contudo, para sua perpetuação ou transformação, a e dominação depende de se manter ou transformar as estruturas de que tais disposições são resultantes – nesse caso particular, da estrutura de um mercado de bens simbólicos, cuja lei fundamental é que nela as mulheres são tratadas como objetos que circulam de baixo para cima. Se as mulheres, submetidas a um trabalho de socialização que tende a diminuí-las e negá-las, aprendem as virtudes negativas da abnegação, da resignação e do silêncio, os homens, por sua vez, também são prisioneiros e, sem se aperceber, tornam-se vítimas das representações dominantes.