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AS VOZES QUE FAZEM O GÊNERO O feminino e o masculino nas famílias negras

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Academic year: 2018

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RUTE RODRIGUES DOS REIS

AS VOZES QUE FAZEM O GÊNERO O feminino e o masculino nas famílias negras

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS PUC –SP

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RUTE RODRIGUES DOS REIS

AS VOZES QUE FAZEM O GÊNERO O feminino e o masculino nas famílias negras

Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sob a orientação da Professora Livre Docente Teresinha Bernardo.

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS SÃO PAULO

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BANCA EXAMINADORA

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Agradecimentos

As vozes que deram corpo a esse trabalho.

A minha mãe que com suas narrativas me apresentou a possibilidade de mergulho nas histórias contadas em cada família negra.

Pedro, irmão e amigo, que de suas poucas palavras, o apoio foi imenso.

Ao Núcleo Relações Raciais: Memória, Identidade e Imaginário, que semanalmente nos preenche de força para continuarmos pesquisando.

Aos amigos que ao longo dos vintes anos partilhamos a luta diária no trabalho na Educação. Aos amigos de taça e fé, Solange Maria, Neusa e Fernando pelo apoio e paciência.

Ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, na pessoa da Prof. Sofia A’boim, que me acolheu no estágio de doutoramento

À Minha Orientadora Prof. Teresinha Bernardo, que a vinte anos me surpreende pela paciência e dedicação na orientação de cada linha escrita. Confesso que já estou com saudades das orientações regadas ao suco de uva. Minha admiração.

À CAPES, pela bolsa concedida e pelo Estágio de Doutoramento realizado no exterior.

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Resumo

Neste estudo investigo a vida familiar negra no contexto da Cidade de São Paulo e a construção e lugar do feminino e do masculino nessas famílias. Compreende-se que há diversidade de modelos de família e que a experiência histórica da ascendência africana e os resultados das situações de cativeiro do negro, a matrifocalidade no modelo familiar foi e tem sido marca fundamental.

Busca-se percorrer os caminhos de construção da família negra através de dados históricos e de análises contemporâneas que ligam este debate ao das relações de gênero.

A opção teórica aqui adotada refere-se as abordagens sobre identidade de gênero e identidade racial e também sobre o enfoque dado pela Ciências Sociais ao tratar da questão familiar. O caminho de abordagem foi a História de Vida em que mulheres e homens narram suas experiências nas relações familiares.

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Abstract

The present study proposes to investigate black family life within the context of the city of São Paulo as well as the construction of both female and male places within these families. Throughout this work it is possible to notice that there is a conspicuous diversity of family patterns and that the historical experience of the African ascendance, the results of black captivity, and especially the matrifocality in their family patterns were and still are remarkable boundaries.

This work aims to run through the ways of the construction of the black family throughout historical data and contemporary analysis which connect this debate to the one of gender relations.

The theoretical choice for this study is based on the approaches about gender identity and racial identity, and also on the approach given by the Social Sciences as they deal with family relations.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO…………..……….……….9

Capítulo 1 PERCORRENDO OS CAMINHOS DA FAMÍLIA NEGRA 1.1 Famílias negras: algumas imersões necessárias….………...…..37

1.2 A diáspora como possibilidade de compreensão dos aspectos culturais na formação da família negra……….……….………...41

1.3 Matrifocalidade: entre categoria analítica e realidade empírica para o entendimento das famílias negra………...56

1.4 O sagrado da família, a família do sagrado……….………63

Capítulo 2 (DES) e (RE) DOS FEMININOS 2.1 Aspectos históricos de um feminino hegemônico….……….………66

2.3 Sobre a mulher popular.……….……….………70

2.3 Com quantos tabuleiros se faz a luta? A construção do feminino negro no Brasil...……….………74

2.4 O feminisno no campo analítico: das diferenças à estruturação das desigualdades………..………..………...79

2.5 Movimento feminista negro: luta política e pensamento em movimento…..……...……86

2.6 Reflexos e imersões do pensamento feminista negro no Brasil………..…………..90

Capítulo 3 MULHERES QUE SOU EU: MEMÓRIAS QUE SE ENTRECRUZAM 3.1 Tempos narrados……….……….93

3.2 Imagens da famiília e figuras masculinas………..105

3.3 Espaços e vivências……….………..117

3.4 Das formas de violência……….………...123

3.5 Das relações e desejos………..……….127

Capítulo 4 NOS CONTORNOS DA MASCULINIDADE 4.1 Masculinidade como expressão do ideário da sociedade burguesa………..…….130

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4.3 Controvérsias sobre a crise da masculinidade………..134

4.4 Do masculino às masculinidades: contornos dissonantes……….139

4.5 Fragmentos e fissuras: elementos históricos de “outro” masculino………..144

4.6 Da luta contra hegemônica a construção de outras hegemonias………..….150

Capítulo 5 VOZES DE UM LUGAR DA MASCULINIDADE 5.1 Tempos narrados………..157

5.2 A família na memória masculina negra………...171

5.3 Aspectos de uma autoridade silenciada………...175

5.4 Histórias das mulheres que os homens contam………...176

5.5 Sobre o referencial de masculinidade………...181

5.6 Quem é quem no mundo da rua?...184

5.7 Sobre ser homem negro………190

CONSIDERAÇÕE FINAIS ………198

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9 Introdução

A escolha de uma temática de estudo revela o pesquisador que se propõe a fazê-lo, mesmo que não conscientemente, levando-o a articular sua biografia e experiências pessoais à história e aos processos sociais mais amplos. A escolha da temática existe antes da formulação da problemática proposta, e foi esse o processo que ocorreu comigo. A pesquisa se forja muito antes de tornar-se um estudo propriamente dito, mas pude apreender essa dimensão somente à medida em que fui consolidando-a como uma questão a ser pensada com instrumentais analíticos e empíricos.

Por que pensar a família negra e a questão das construção do masculino e do feminino nessas famílias? Muitas são as histórias que revelam lugares da feminilidade e masculinidade, e como ambas forjam-se nas suas construções.

Recordo de algumas histórias vivenciadas em minha família, contadas por Vó Erotides: “Sambei a noite toda quando soube da morte dele. Ele não prestava, eu não sou fingida. Eu que sempre sustentei a casa, ele nunca quis saber de nada”. Quando inquirida sobre tamanha falta de sensibilidade diante da morte do marido, ela reafirmava: “Chorar pelo que não presta! Esses trastes não fazem falta, só serve para encher a cara”.

Essa era a avó diante de olhar atento dos netos, revelando algo que conhecíamos ou a que nunca tínhamos atentado: uma personalidade dura e cruel, narrando o fim trágico de nosso avô. Um de nós ali, atento às histórias, perguntou quem se encarregou do supultamento. Prontamente, ela respondeu: “O diabo”. Depois de alguns segundos, complementou a resposta: “Os amigos dele. Só voltei pra casa quando já tinham enterrado. Gastei tudo o que tinha ganhado na venda do Muncunza. E se eu tivesse mais, gastaria também. Sambei muito, muito mesmo”. Ela levantou-se diante de nós e, com passos de samba de roda, começou a demonstrar como tinha festajado a morte do marido.

Outra narrativa familiar é muito presente em minha memória. Esta é constantemente reapresentada à família, indicando que memórias devem permanecer.

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10 Meu pai saía e sumia vários dias, não deixava nem comida nem querozene para o lampião. Quem assumia tudo era minha avó. Minha mãe morreu de tristeza. Ma minha avó dizia que ele ia pagar tudo o que ele fez com minha mãe. Não sei o que seria se não fosse minha avó. Quando ela morrreu, fui trabalhar na casa daquelas brancas. Elas colocavam um banco pra eu subir e passar a roupa, eu era pequena não alcançava, e o ferro era muito pesado. Sofri tanto quando era pequena e ainda casei com um traste desses, que agora está no inferno.

Em ambas as narrativas, o inferno não somente aparece como destino final dos homens, mas indica uma ameaça para uma determinada masculinidade expressa por essa mulheres.

Fui questionada, em algum momento, sobre o que teriam esses relatos de expressão de uma identidade negra. Ou melhor, não poderiam estar presentes em qualquer grupo familiar? Tal questionamento me levou a pensar em como a relação dessas histórias de minha vida familiar e a relação com o papel de pesquisadora dialogam e ganham sentidos no que homens e mulheres de minha e de outras famílias revelam. Ao revelarem suas histórias, elas exprimem como negras e negros vivenciam individual e coletivamente sua negritude.

Mas esse processo só foi possível ao passo em que me reconheço nessa família e nas memórias que fizeram e fazem parte da minha existência, inclusive como pesquisadora.

Os fragmentos das histórias de família trazidas por essas mulheres apresentam, nas várias gerações, um enredo do papel que estas tinham e os lugares que ocupavam. O silêncio do masculino negro e sua ausência nos relatos históricos revelam a negação da condição de homem, mas também consolida uma imagem construída e consolidada da sua existência. O que terá esse silêncio a nos revelar?

Se tais inqueitações surgem dentro da própria família, elas ganham espaço ao longo da trajetória de formação, militância e do mundo do trabalho. Este útimo será frutífero para a ampliação das inquietações e sentidos diversos da questão, tanto do ponto de vista da realidade concreta, como das possibilidades analíticas capazes de explicações da mesma.

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11 com forte ligações na modernidade. Essa ligação se acentua quando uma das duas parece não cumprir seu papel social quando, nos momentos de crise, uma busca resposta e solução na outra. O discurso recorrente, no campo escolar, é de que há uma desestruturação familiar e que essa é responsável por sujeitos que chegam à escola sem um mínimo de regras sociais de convivência. Isto afeta a instituição, que deixa de cumprir seu papel primordial, que é o de lidar com o conhecimento.

Na escola e fora dela consolidam-se discursos e práticas em nome da estrutura familiar, que corresponde ao modelo nuclear, monogâmico e heterossexual, ou seja, o modelo padrão. O que está fora desse modelo hegemônico (ao menos no campo da idealização) é considerado desestruturado ou desestruturante, já que dali decorre uma série de outras desestrutras no campo social.

O discurso da “família desestruturada” é fortemente marcado nos espaços escolares, realocando sujeitos escolares como fora ou dentro dessas famílias. O que se define como famílias desestruturas? A variedade é grande. São famílias em situação de pobreza grave, que tenham membros envolvidos com a criminalidade, com usuários de drogas lícitas e ilícitas, que partilham espaços de moradia com outros membros familiares, filhos criados sem a presença do pai, crianças criadas pelos avós. Enfim, cabe tudo que não seja a família do modelo burguês. Dessa forma, os dicursos e práticas ali referendadas legitimam um modelo idealizado e idealizante de família.

Algumas questões me chamaram a atenção. A primeira diz respeito à própria ideia de desestrutura tão propalada pelo grupo, condição da qual poucos daquela realidade escapavam. A segunda é o fato de como “cabe de tudo” nessa ideia. Terceiro, a é que a “desestrutura mais comum” eram famílias compostas de mães e filhos. Tais inqueitações se juntam às percepções iniciais com o objetivo de transformá-la em apropriações para a análise social.

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marido-12 pai, a situação pouco se alterava do ponto de vista econômico e das relações de poder. Essas falas indicavam uma relação fortemente marcada pela presença dos filhos, e do peso que estes têm no núcleo familiar. Ali se revelavam mulheres em que a história não diferenciava daquelas apresentadas na condição de mães/avós/tias/madrinhas dos alunos. Isso indicava a proximidade de realidades. Mas quando indossavam o papel de professoras, apresentavam outra roupagem e certo distanciamento ao falar do “outro”, o que as histórias de vida vão desvelando em cada caso narrado, em cada situação relatada.

Involuntariamente, essas mulheres tornam-se fontes importantes de informações preliminares para uma pesquisadora ainda não consciente do que os dados podiam revelar. Porém, ao passo em que a questão se consolidava como objeto de pesquisa, ganhava sentido e possibilitava leituras e entendimentos. O que se apresentava era um perfil de matrifocalidade, nessas famílias.

Feita essa identificação, recoloco-me as questões anteriores: por que estudar as famílias que se identificam como negras? Os conflitos de gênero não poderiam ser identificados em qualquer família? A primeira assertiva é que a construção da família negra se deu a partir de um processo histórico diferente. Segundo, pensar sobre a família negra é identificar outros padrões de estrutura familiar que não correspondem ao modelo padrão de relação de poder. Terceiro, ao passo que interfere nas relações de poder, estamos falando de papéis sociais deslocados do modelo hegemônico. Tais premissas são hipóteses que este trabalho buscou estudar através das histórias de vida.

As primeiras informantes foram as mulheres/mães. A partir desses contatos, foram realizadas algumas entrevistas para (re)definir o objeto de estudo e qual a melhor forma de apropriação dos dados que se buscavam. Feitas as entrevistas, uma delas foi fundamental para que eu me deparar com os erros cometidos pelo pesquisador, e que podem alterar fortemente a informação que se busca. Percebi que o caminho do questiónario não daria conta das informações que buscava.

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13 reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu. Queiroz (2008) afirma que a história de vida possibilita que através dela se delineiem as relações com os membros do seu grupo, de sua profissão, de sua camada social, de sua sociedade global, que cabe ao pesquisador desvendar (p. 43).

Em estudo realizado por Bernardo (1998), Memória em branco e preto, a autora identifica um outro movimento:

A coleta de dados sobre a memória não segue uma linearidade, revelando os seus próprios mecanismos. É um ir e vir constantes. Os caminhos são de profunda complexidade, demonstrando aspectos multifacetados das potencialidade do lembrar. Associações são realizadas entre dados do passado e do presente, bem como em outros diferentes aspectos ( p. 39).

O universo da pesquisa foi composto por 12 homens e 12 mulheres que se declararam de famílias negras. O número não se refere a uma estrutura pré-estabelecida para a coleta dos dados, apenas indica que, nesses relatos, começou a haver uma certa regularidade nas narrativas.

A primeira preocupação era contemplar a diversidade geracional; a segunda dizia respeito à diversidade dos estratos sociais. Para isso foi definido como marcador central a idade, seguida pela variável escolaridade, para que se tivesse um universo representativo. Optou-se pela organização de cinco grupos etários de referência, que correspondessem à idade de 30 a 40 anos , de 41 a 50, de 51 a 60, de 61 a 70 e de mais de 70 anos.

A partir dessas redefinições, fui a campo e os resultados se mostraram mais positivos. As entrevistas fluíram, as questões que deveriam ser abordadas não foram limitadoras nas narrativas, mas motivarm para que novas revelações e caminhos fossem abertos.

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14 As entrevistas foram momentos em que as memórias da pesquisadora interagiram nos relatos das(os) entrevistadas(os). Porém, a presença destes eram sustentáculos das emoções da pesquisadora.

O mesmo não ocorreu durante o processo de transcrição, em que os vários sentidos estão mobilizados e atentos para cada som, silêncio e lágrima dos entrevistados, que não estão fisicamente presentes para controlar as emoções que envolvem a pesquisadora. Desabei. Momentos de solidão em que os pensamentos confusos, sem sentido, angustiantes, compõe a cada instante cenas de um filme de que todos somos protagonistas. Aqui compreendi o que me mostrava a primeira frase do primeiro capítulo da Memória coletiva, de Maurice Halbwachs (2006) mostrava-me:

Fazemos apelo aos testemunhos para fortalecer ou debilitar, mas também, mas também para completar o que sabemos de um evento do qual já estamos informados de alguma forma, embora muitas circunstâncias nos permaneçam obscuras. Ora, a primeira testemunha à qual podemos sempre apelar é a nós próprios (p. 25).

Em que medida o debate sofre família está relacionado aos relativos a questões de gênero, é o que será apresentado a seguir.

1. Imersões no campo de gênero: muito mais que uma caixa de Pandora

Os primeiros estudos de gênero se dedicaram a pensar a condição feminina. Numa perspectiva sócio-antropológica, esses estudos possibilitaram uma dupla análise. A primeira diz respeito aos avanços alcançados através da organização e luta das mulheres; a segunda, ao avanço teórico/metodológico que possibilitou uma apreensão mais adequada da realidade, ampliando o debate e o espaço de análise.

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15 dando lugar ao desequilíbrio da história. É respeitada, porém, a identificação mulher/natureza, em oposição àquela de homem/cultura.

Momento fundamental para os estudos sobre a condição da mulher é a obra O segundo sexo, de Simone de Beauvoir (1968), em que a autora argumenta que a mulher, ao viver em função do outro, não tem projeto de vida própria, atuando a serviço do patriarcado, sujeitando-se ao protagonista e agente da história: o homem.

Gênero tem sido, desde a década de 1970, o termo usado para teorizar a questão da diferença sexual. Foi inicialmente utilizado pelas feministas americanas com vistas a acentuar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra indica rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”. Gênero pode ser compreendido como uma relação de interdependência, o aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode existir através de um estudo que os considere totalmente em separado. Em O poder do macho Saffiot (1987) aponta que pensar a diferença, assim como a igualdade isoladamente, envolve sérias armadilhas. Atribui-se o mesmo valor à igualdade e à diferença, na medida em que não constituem um par dicotômico mutuamente exclusivo, mas são cada uma a condição da outra. Ademais, similaridade e diferenciação são duas dimensões de um mesmo processo, razão pela qual não se pode mencionar uma na ausência da outra.

Nessa perspectiva, o conceito de gênero, enquanto categoria de análise, situa-se em dois níveis: o da representação e o real. Portanto, o gênero é tanto um construto sociocultural quanto um aparelho semiótico, um sistema de representação que atribui significado a indivíduos dentro da sociedade.

Não somente o sujeito do feminismo, que é um construto teórico, como também as mulheres historicamente situadas são concebidas simultaneamente dentro e fora do gênero, dentro e fora da representação. O sujeito do feminismo também deve ser concebido como múltiplo e construído através de discursos, posições e significados frequentemente em conflito uns com os outros e simultaneamente (historicamente) contraditórios. Isso equivale a dizer que o sujeito construído em gênero o é também em classe social e em raça/etnia.

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16 raça/etnia. A concepção da multiplicidade do sujeito representa um enorme avanço científico. Isto posto, o gênero se caracteriza, ao mesmo tempo, como representação e como auto-representação. Obviamente, enquanto representação participa de sua própria construção.

Joan Scott (1992) em História das Mulheres, considera e reconhece que a introdução da categoria gênero representou um considerável avanço no que até então era tratado essencialmente como história das mulheres e, portanto, uma alternativa à forma politizada como vinha se construindo o conhecimento sobre as mulheres, aqueles que saudavam seu caráter relacional.

Para Scott, duas questões são fundamentais: a primeira, que a categoria gênero havia sofrido um processo de absorção, passando a ser sinônimo de história das mulheres, contradizendo explicitamente considerações como a de Michelle Perrot, para quem “a categoria relacional de gênero substitui internacionalmente a perspectiva de uma ‘história das mulheres”.

A segunda refere-se à utilização da noção de gênero que não substitui a constituição do campo reconhecido como história das mulheres, mas sim que deve ser compreendida como a história da construção social das categorias do masculino e feminino, por meio de discursos e práticas. Muitos trabalhos que se apresentam como focalizados nos aspectos de gênero acabavam por não reconstruir a contraparte das representações do masculino (p. 77).

Aguiar (1997) em Gênero e Ciências Sociais, aponta que essa questão tem gerado um grande debate na análise das desigualdades sociais no Brasil e no mundo, não apenas enquanto perspectiva teórica, mas também na pesquisa empírica.

A discussão em torno da masculinidade expressa mudanças em relação à aceitação social do arbitrário poder masculino e de sua hegemonia dentro do regime de gênero vigente nas culturas contemporâneas ocidentais, tornando-se exemplo contundente dessa nova perspectiva.

Os mecanismos sociais que possibilitam privilégios se tornam invisíveis para aqueles que são por eles favorecidos. Assim, os homens brancos de classe média, quando se olham nos espelho, se veem como seres humanos universalmente generalizáveis. Eles não estão capacitados a enxergar como o gênero, a raça e a classe afetam suas experiências.

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17 Badinter formula algumas questões: seriam os homens a única parte da humanidade incapaz de evoluir? Seria imutável a entidade masculina? Há um mal-estar diante da generalização, em dois blocos opostos: a classe das mulheres e a classe dos homens. Isso não equivale a recair na armadilha do essencialismo, contra o qual as próprias feministas tanto lutaram? Sua afirmativa é a de que não existe uma masculinidade universal, mas masculinidades múltiplas, assim como existem múltiplas feminilidades. As categorias binárias são perigosas, porque apagam complexidade do real em benefício de esquemas simplistas e restritivos.

Assim como as feminilidades, as masculinidades ocupam um lugar na dimensão simbólica e têm papel importante na definição das atitudes e comportamentos masculinos relacionados à sexualidade e à reprodução, bem como nas relações sociais e institucionais. A masculinidade, assim como a feminilidade, é construída socialmente, é histórica, mutável e relacional.

Há uma diversidade de tipos de masculinidades, que correspondem a diferentes inserções dos homens na estrutura social, política, econômica e cultural, assim como a trajetórias e estágios diferentes do seu ciclo vital.

2. O gênero como estrutura das práticas sociais

O gênero é uma forma de ordenamento de prática social. Os processos de gênero – ou a vida cotidiana – estão organizados em torno do cenário reprodutivo, definido pelas estruturas corporais e pelos processos de reprodução humana. O cenário inclui o despertar sexual e a relação sexual, o cuidado com as crianças e as diferenças e similitudes sexuais corporais. O gênero é uma prática social que constantemente se refere aos corpos e ao que os corpos fazem, porém não à prática sexual reduzida ao corpo.

O gênero existe precisamente na medida em que a biologia não determina o social, e marca um desses pontos de transição em que o processo histórico substitui a evolução biológica como forma de mudança.

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18 maiores, e quando falamos de masculinidade e feminilidade estamos designando configurações e práticas e gênero.

Uma visão dinâmica da organização da prática expressa a compreensão de masculinidade e de feminilidade como projetos de gênero. Estes são processos de configuração da prática através do tempo, que transformam seus pontos de partida em estruturas de gênero. Encontramos a configuração genérica da prática em qualquer forma que dividamos o mundo social, e em qualquer unidade de análise que selecionamos. A mais conhecida é a vida individual, base das noções de sentido comum de masculinidade e feminilidade.

A configuração da prática é o que os psicólogos têm chamado, tradicionalmente, de “personalidade” ou “caráter”. Tal enfoque é responsável por expressar a coerência da prática que se pode alcançar em qualquer lugar. O gênero se organiza em práticas simbólicas que podem permanecer por mais tempo que a vida individual.

Desde os anos 70 do século passado tem ficado claro que gênero é uma estrutura internamente complexa, em que se sobrepõe várias lógicas diferentes. Este é um fato de grande importância para a análise tanto das masculinidades quanto das feminilidades.

Podemos identificar três grandes eixos, apresentados por Badinter (2005), através dos quais a desigualdade de gênero se estrutura. O primeiro são as relações de poder. A principal expressão de poder no sistema de gênero contemporâneo é a subordinação geral das mulheres à dominação dos homens, estrutura denominada como patriarcado. Ele persiste, apesar da resistência que o feminismo articula, impondo contínuas dificuldades para o poder patriarcal. Elas definem um problema de legitimidade, que tem grande importância para a política da masculinidade.

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19 A Cathexis, onde o desejo sexual é visto constantemente como natural, normalmente é excluída da teoria social. As práticas que dão forma e atualizam o desejo são, assim, aspectos de ordem genérica. Nesse sentido, podemos formular questões políticas acerca da relações, e questionar se elas são consensuais, coercitivas, ou se o prazer é igualmente dado e recebido. Compartilhando dessa perspectiva, Connell (1995) em La organización social de la masculinidad assinala que:

Dado que el gênero es una manera de estructurar la práctica social en general, no un tipo especial de práctica, está inevitablemente involucrada com otras estructuras sociales. Actualmente es común decir que el género intersecta – mejor dicho, interactúa- com la raza y la classe. Podemos agregar que constantemente interactua con la naciolanalidad o la posición en el ordem mundial (p. 10).

Segundo Almeida (2004) , em Senhores de si: um interpretação Antropológica da masculinidade, o gênero, enquanto área de estudos e do real introduz significativa novidade espistemológica já que, ao contrário da classe ou das intituições sociais como a família, o gênero as cruza transversalmente. A distinção entre sexo e gênero é o ponto de partida fundamental para investigar a masculinidade. Baseada na distinção que a Antropologia sempre promoveu entre biologia e cultura, e elaboração conceitual entre sexo e gênero dá a entender que o segundo é a elaboração cultural do primeiro.

Cabe, portanto, afirmar que a variação cultural dos papéis femininos e masculinos, bem como dos traços de cultura trazia o determinismo cultural para o campo do sexualidade. Ou seja: o que os homens são ou o que as mulheres são e o tipo de relação entre eles não se constitui em simples dados “biológicos”, mas em produtos de processos sociais. Segundo Almeida:

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20 Um sistema de sexo/gênero não é apenas o momento reprodutivo e um modo de produção. A formação da identidade de gênero é um exemplo de produção no reino do sistema sexual.

Rubin (1975) procura, na área do parentesco, o lócus para a reprodução do sistema de sexo/gênero, afirmando que os sistemas podem ser muitas coisas, mas aquilo de que são feitos e aquilo que de fato reproduzem são, antes de mais nada, formas concretas de sexualidade organizada. Para a autora, existe uma economia do sexo e do gênero. A divisão do trabalho pelos sexos seria um tabu contra a semelhança de homens e mulheres, exarcebando as diferenças biológicas entre os sexos, sendo os sistemas de parentesco formas empíricas e observáveis de sistemas de sexo/gênero. Entende que:

Os sistemas de parentesco requerem uma divisão dos sexos. A fase edipiana divide os sexos. Os sistemas de parentesco incluem conjuntos de regras que governam a sexualidade. A crise edipiana é a assimilação dessas regras e tabus. A heterossexualidade obrigatória é o produto do parentesco. A fase edipiana constitui o desejo heterossexual. O parentesco assenta numa diferença radical entre os direitos de homens e mulheres. O complexo de Édipo confere direitos masculinos ao rapaz e força à rapariga a acomodar-se a menos direitos” (ALMEIDA at al RUBIN, 1975, p. 198).

Ao passo que vários campos de conhecimento são mobilizados, contribuindo para a bricolagem do campo de gênero, este permeia as epistemologias, contribuindo para o entendimento dos mecanismos pelos quais sua identificação se consolida e vai se fazendo nas contradições de campos de atores.

3. Identidade como percepção do mundo, a ordem da dominação masculina

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21 exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos hábitos dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação (p.17).

A ordem simbólica funciona como uma imensa máquina que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça. Esse processo se estrutura a partir da divisão social do trabalho, desde as atividades atribuídas ao sexo aos instrumentos mobilizados por cada um. Essa divisão refere-se e é percebida através dos espaços, em que o lugar do coletivo, da decisão e da rua é reservado aos homens e a casa, às mulheres. O espaço da casa também será o reflexo dessa divisão. Para Bourdieu, mais do que expressar uma dinâmica mecânica de atribuições, esse processo inscreve uma estrutura de tempo, de jornada de ciclo da vida. Para o autor, são esquemas de pensamento que associam elementos tanto ao masculino quanto ao feminino. O mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizantes. Segundo o autor:

Esses esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram como que diferenças de natureza, inscritas na objetividade, das variações e dos traços distintivos (por exemplo, em matéria corporal) que eles contribuem para fazer existir, ao mesmo tempo que as “naturalizam”, inscrevendo-as em um sistema de diferenças, todas igualmente naturais em aparência; de modo que as previsões que elas engendram são incessantemente confirmadas pelo curso do mundo, sobretudo por todos os ciclos biológicos e cósmico (ibid.,p. 16).

Essa percepção incorpora todas as coisas do mundo e, antes de tudo, o próprio corpo. Em sua realidade biológica, é ele que constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-as aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho, na realidade da ordem social.

A diferença entre o corpo masculino e o feminino e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais é vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho.

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22 potência sexual – “defloração da noiva, progenitura masculina abundante etc.” – que são esperadas de um homem “que seja realmente homem” (ibid, p. 20).

Essa dominação, através dos pensamentos e de suas percepções, está estruturada em conformidade com o que lhe é imposto. O ato de conhecer (e esse conhecimento se dá nas práticas naturalizadas) são atos de reconhecimento da submissão. Aqui se consolida a imposição simbólica.

Assim, a definição social dos órgãos sexuais não é um simples registro de propriedades naturais, diretamente expostas à percepção, mas é produto de uma construção efetuada à custa de uma série de escolhas orientadas, ou melhor, através da acentuação de certas diferenças, ou do obscurecimento de certas semelhanças. Em outros termos:

(…) as diferenças visíveis entre os órgãos sexuais masculinos e femininos são uma construção social que encontra seu princípio nos princípios de divisão da razão androcêntrica, ela própria fundamentada na divisão dos estatutos sociais atribuídos ao homem e à mulher (ibid., p. 24).

Nas palavras de Bourdieu, a expressão da dominação pode ser observada no próprio ato sexual, que é pensado em função do princípio do primado da masculinidade. A oposição entre os sexos se inscreve na série de oposições mítico-rituais.

(…) resulta daí que a posição considerada normal é, logicamente, aquela em que o homem “fica por cima”. Assim como a vagina deve, sem dúvida, seu caráter funesto, maléfico, ao fato de que não só é vista como vazia, mas também como inverso, o negativo do falo, a posição amorosa na qual a mulher se põe por sobre o homem é também explicitamente condenada em inúmera civilizações (p. 27).

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23 Nessa ligação entre sexualidade e poder, a pior humilhação, para um homem, é ser “transformado em mulher”, mesmo do ponto de vista simbólico. Almeida (2000) chama a atenção para o fato de como as brincadeiras e deboches verbais, nos espaços masculinos, são utilizados, colocando em dúvida a virilidade, ainda com acusações de homossexualidade. O resultado é a aproximação da feminilidade e o despoderamento que ela representa.

Na busca de entendimento das questões aqui apontadas, cabe identificar o que podemos definir como família e quais os acúmulos sobre o debate nas Ciências Sociais

4. A família no debate das Ciências Sociais

Na definição de Levi-Strauss (1956), família é uma grupo social que possui algumas características: sua origem é o casamento, é constituído pelo marido, esposa e filhos provenientes de sua união, outros parentes podem encontrar seu lugar próximo ao núcleo do grupo; os membros da família se unem por laços legais, direitos e obrigações econômicas, religiosas ou de outra espécie, um entrelaçamento definido de direitos e proibições sexuais e uma quantidade variada e diversificada de sentimentos psicológicos tais como amor, afeto, respeito, medo etc.

Compreender a família através dessa descrição relacional apontada por Levi-Strauss foi resultado de uma trajetória nas perspectivas analíticas antropológicas, em que compreender as instituições e os povos a partir de determinantes pautadas no modelo de sociedade ocidental e industrial foram superadas. Agora busca-se compreender as instituições a partir de suas conexões socias mais gerais, que respondem a sua realidade. Segundo Strauss, o (…) estudo comparativo da família entre muitos povos diferentes deu origem a aguns dos mais acirrados debates em toda a história do pensamento antropológico e, provavelmente, à sua invençao espetacular (p.309). Ou seja, a vida familiar está presente em todas as sociedades. Em raríssimos casos não se pode admitir a existência dos laços familiares.1

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24 Após terem sustentado durante cerca de cinquenta anos que a família, tal como existe nas sociedades modernas, somente poderia ser um desenvolvimento recente, resultante de uma evolução lenta e duradoura, os antropólogos agora se inclinam para uma convicção oposta, isto é, que a família, consistindo de uma união mais ou menos duradoura, socialmente aprovada, entre um homem, uma mulher e seus filhos, constitui fenômeno universal presente em todo e qualquer tipo de sociedade (Id., ibid).

Ele nos alerta para o fato de que devemos relativizar quando se fala em família poligâmica, dizendo que o termo “poligamia” refere-se a poliginia, isto é, um sistema no qual o homem tem direito a várias esposas, bom como à poliandria, sistema complementar em que vários maridos compartilham de uma mesma esposa.

É bem verdade que, em vários casos observados, famílias poligâmicas nada mais são do que uma combinação de várias famílias monogâmicas, se bem que a mesma pessoa desempenha o papel de vários cônjuges. Por exemplo, em algumas tribos banto da África, cada esposa vive com seus filhos em uma choupana separada, sendo que a única diferença em relação à família monogâmica é o fato de que o mesmo homem desempenha a função de marido com relação a todas as suas esposas (ibid.,p. 312).

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25 Levi-Strauss ressalta que a poliandria pode, por vezes, assumir formas extremas, em que vários homens, geralmente irmãos, compartilham de uma esposa, ficando como pai legítimo das crianças aquele que cumpre um cerimonial específico. Assim, ele permanece o pai legal de todas as que nascerem, até que outro assuma pelo mesmo processo. Para o autor, se é possível manter a identidade legal, econômica e sentimental da família, mesmo em um esquema poligínico ou poliândrico, não é tão certo que o mesmo ocorra quando a poliandria coexiste com a poligamia. Pode-se dizer que o laço entre a mulher e seu marido legal diferia mais em grau do que em espécie, de uma gama de outros laços que se poderiam ordenar em ordem decrescente de solidez: desde aqueles que ligam os amantes reais e semipermanentes ao que ligam os amantes ocasionais. Entretanto, mesmo nesse caso, a posição das crianças era definida pelo casamento legal e não por outros tipos de união (ibid.,p. 313).

Assim como Levi-Strauss, Gomes partilha da premisssa de que a família conjugal monogâmica é mais ou menos frequente. Sempre que ela parece ter sido superada por tipos diferentes de organização, isto se dá em sociedades muito especializadas e sofisticadas e não, como anteriormente se esperava, nos tipos mais rudes e simples.

O casamento, no dizer de Levi-Strauss, envolve não apenas um homem e uma mulher, mas uma mulher e dois homens: aquele que a recebe e aquele ao qual ela é negada, em função do tabu do incesto. Nessa concepção, o casamento é visto não apenas como elemento de constituição de grupos familiares e de parentesco, mas fundamentalmente como mecanismo de comunicação entre esses grupos, estabelecendo uma troca de mulheres. Segundo Strauss, há uma predominância do casamento monogâmico nas sociedades humanas, não como inscrição da natureza humana, mas como equilíbrio de gênero, a não ser que haja alguma condição especial, o que, na sociedade moderna, compreende razões de ordem econômica, moral e religiosa. Ou seja, o casamento é meio pelo qual se estabelece aliança.

O casamento é um mecanismo regulado pelo tabu do incesto, que atribui responsabilidades e direitos específicos sobre a prole de uma mulher a homens determinados. Nesse sentido, o parentesco não pode ser concebido como uma extensão dos laços familiares.

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26 Durham (1983), em Família e reprodução humana diz que uma fonte importante de variabilidade dos sistemas de parentesco está em que os vínculos entre mães e filhos podem ser concebidos como essencialmente diferentes daqueles que ocorrem entre pais e filhos (p. 23).

Para Strauss parte da premissa de que existe um instinto materno que obriga a mãe a cuidar de seus filhos e faz com que ela sinta intensa satisfação no desempenho de tais atividades, enquanto que, entre os homens, existem impulsos psicológicos pelos quais eles podem nutrir sentimentos afetivos para com a prole. Isso independe da paternidade fisiológica, conquanto verdadeiro que a família conjugal limitada a mãe e filhos seja praticamente universal, baseada na dependência fisiológica e psicológica existente entre seus membros, ao menos durante algum tempo, e que a família conjugal consistindo de marido, esposa e filhos seja quase tão frequente, por razões psicológicas e econômicas, que se devem acrescentar às já mencionadas o processo histórico que entre nós conduziu ao reconhecimento legal da família conjugal é muito complexo (ibid.,p. 320)

Em sua obra História social da criança e da família, Philippe Ariès (1978), através do estudo da iconografia a partir do século XV, alinhava a construção do padrão de família que será definida como família moderna. Nas iconografias analisadas no século XV, o casal não é mais apenas aquele imaginário do amor cortês, mas a mulher e a família paticipam do trabalho e vivem perto do homem, na sala ou nos campos. O autor alerta para o fato de que não se tratam propriamente de cenas de família, uma vez que as crianças ainda estão ausentes, no século XV. Mas nessas cenas o artista exprime discretamente a colaboração da família, dos homens e das mulheres da casa no trabalho quotidiano, com uma preocupação de intimidade outrora desconhecida (pp. 197-198)

É ao longo do século XVI que essa iconografia sofre transformação muito significativa, quando se torna uma iconografia da família e, ao mesmo tempo, expressa as idades de vida. O aparecimento do tema família na iconografia não foi um simples episódio, mas traria uma revolução a toda a iconografia dos séculos XVI e XVII: ao quarto e à sala passa a corresponder uma tendência nova de sentimento, voltando-se para a intimidade da vida privada.

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27 Daí em diante, torna-se difícil distinguir um retrato de família de uma cena de gênero que evoca a vida em família (ibid., p. 207).

Nas palavras de Ariès esse sentimento já parecia tão moderno que para nós é difícil compreender o quanto era novo.

Uma questão fulcral dessa análise é a compreensão de que é dessa nova realidade de nascimento do sentimento de família que também nasce uma forma de expressão da virilidade. Esta é ilustrada pela refeição que reúne toda a família em torno da mesa. Para o autor, a iconografia leva-nos a concluir que o sentimento da família era desconhecido da Idade Média, e nasceu entre os séculos XV e XVI, para se exprimir com um vigor definitivo no século XVII, a idade viril é sempre a família (ibid., p. 208).

O sentimento de família que está ligado à casa, ao governo da casa e à vida na casa, o que não foi conhecido na Idade Média. Já nesse período a concepção de família estava ligada à linhagem, e também era expressa através da degradação da situação da mulher no lar. Ao passo que a casa se fecha, a mulher torna-se incapaz e todos os atos que faz sem ser autorizada pelo marido ou pela justiça. Há um enfraquecimento dos laços de linhagem e o fortalecimento da autoridade do marido dentro da casa torna-se maior e a mulher e os filhos submissos a seu poder. Esse modelo torna-se a célula social, e um elemento importante para a religião. Atributos de virilidade e casamento tornan-se pilares religiosos fundamentais.

Oliveira (2004) em A construção social da masculinidade contribui para melhor entendimento sobre a questão:

Ainda que pudesse também estimular e valorizar atributos guerreiros, no século XIX, a religião se incumbia, principalmente, de promover a moralidade tipicamente burguesa, enquanto o exécito e os esportes cultivavam valores masculinos para a educação da virilidade. Umas das instituições mais importantes e que serviu de modo fundamental para veicular esse tipo de moralidade foi o casamento, visto como consequência natural na vida do cidadão comum e também como uma barreira contra os vícios e a degeneração (OLIVEIRARA, p. 49).

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28 isto, as quais podem ser não só externas ao casamento, mas até contrárias ao mesmo. É a moralidade cristã que considera o casamento e a constituição da família como os únicos meios de evitar que a satisfação sexual seja pecaminosa.

Nas palavras de Ariès:

O sacramento do casamento poderia ter tido a função de enobrecer a união conjugal, de lhe dar um valor espiritual, bem como à família. Mas, na realidade, ele apenas legitimava a união. Durante muito tempo, o casamento foi apenas um contrato (p. 214).

O novo sentimento de família (reunião em torno da mesa), vinculado diretamente ao sentimento de infância (a crianças menores) e religiosidade, torna-se um valor a ser exaltado. Este se estabeleceu em torno da família conjugal, formada pelos pais e seus filhos como um novo lugar, assumido pela família na vida sentimental dos séculos XVI e XVII.

Aqui também é ressaltada a marca de classe na estruturação do modelo de família. No caso das famílias pobres, ela não correspondia a nada além da instalação material do casal no seio de um meio mais amplo, quer fosse a aldeia, a fazenda, o pátio ou a casa dos amos e dos senhores, onde esses pobres passavam mais tempo do que em sua própria casa. Nos meios ricos, a família se confundia com a prosperidade do patrimônio, a honra do nome. A família quase não existia sentimentalmente entre os pobres. Quando havia riqueza e ambição, o sentimento se inspirava no mesmo sentimento provocado pelas antigas relações de linhagem (ARIÈS, p. 231)

Na análise de Michelle Perrot (1988), o modo de vida popular pressupõe a mulher em casa, o que não significa absolutamente no interior do lar. Ao analisar a dona de casa no espaço parisiense no século XIX, Ariès informa que as mulheres desse universo mantinham toda uma rede de sociabilidade e econômicas paralelas para a manutenção e o sustento familiar. Aqui aparece a dimensão do espaço público e do espaço privado. Sendo o segundo lugar da família, é fortemente identificado com a casa e a mulher, agente central nesse espaço, que aqui parece não corresponder tão fielmente à realidade das camadas mais pobres, a não ser como ideário e modelo.

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29 Ou seja, esse sentimento só se desenvovolve quando a casa não está muito aberta para o exterior. O mínimo de segredo que consolida a privacidade. Como afirma Ariès, a primeira família moderna foi a família desses homens ricos e importantes.

No século XVIII, a família começou a manter a sociedade à distância, a confiná-la a um espaço limitado, aquém de uma zona cada vez mais extensa de vida particular.

A esse respeito Ariès contribui informando que:

A organização da casa passou a corresponder a essa nova preocupação de defesa contra o mundo. (…) Essa especialização dos cômodos da habitação, surgida inicialmente entre a burguesia e a nobreza, foi certamente uma das maiores mudanças da vida cotidiana. Correspondeu a uma necessidade de isolamento (p. 265).

A reorganização da casa e a reforma dos costumes deixaram um espaço maior para a intimidade, que foi preenchida por uma família reduzida aos pais e às crianças, em que o gosto moderno pela intimidade opõe a casa ao mundo exterior. Esse grupo de pais e filhos felizes com sua solidão e estranhos ao resto da sociedade não é mais a família do século XVII, aberta para o mundo invasor dos amigos, clientes e servidores: é a família moderna (ibid., p. 270).

A família moderna, ao contrário, separa-se do mundo e se opõe à sociedade, formando o grupo solitário de pais e filhos. Toda a energia do grupo é consumida na promoção das crianças, cada uma em particular, e sem nenhuma ambiçao coletiva: as crianças, mais do que a família.

Essa evolução da família medieval para a família do século XVII e para a família moderna durante muito tempo se limitou aos nobres, aos burgueses, aos artesãos e aos lavradores ricos. Ainda no início do século XIX, uma grande parte da população, a mais pobre e mais numerosa, vivia como as famílias medievais, com as crianças afastadas da casa dos pais (ibid, p. 271).

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30 Todavia, em alguns níveis, o poder patriarcal no meio doméstico entrou em decadência na última parte do século XIX. É que o domínio direto do homem sobre a casa, compreensível quando ele era ainda o centro de um sistema de produção, enfraqueceu com a separação entre a casa e local de trabalho. O marido detinha seguramente o poder dominante, mas uma ênfase crescente posta na importância do envolvimento emocional entre pais e filhos diluiu o uso desse poder. O controlo das mulheres sobre a educação dos filhos foi crescendo à medida em que as famílias se tornaram menores e as crianças começaram a ser consideradas vulneráveis e necessitadas de educação emocional a longo prazo. Giddens (1993) em A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo na sociedade moderna, desenvolve de forma minunciosa essa questão (pp. 28-29).

A divisão do trabalho é subjacente à concepção de família a divisão de trabalho. Levis-Strauss afirma que a divisão de trabalho entre os sexos é universal. O modo pelo qual são atribuídas a um ou outro sexo depende dos fatores culturais que definem a organização da família. A divisão do trabalho segundo o sexo nada mais é do que um dispositivo para instituir um estado de dependência recíproco entre os sexos. Assim, as relações entre o grupo social como um todo, bem como as famílias restritas que parecem constituí-lo, não são estáticas, mas antes um processo dinâmico de tensão e oposição com um ponto de equilíbrio muito difícil de encontrar, e sujeita a variações de época para época e de sociedade para sociedade (p. 332).

Para Durham há uma tendência de naturalização do que definimos como família, que decorre de um modelo aqui desenvolvido a partir dos dados de Ariès: a família ocidental, burguesa e branca. É reforçada pelo fato de se tratar de uma instituição que diz respeito, privilegiadamente, à regulação social de atividades de base nitidamente biológica: o sexo e a reprodução.

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31 primeiro é dissolver essa aparência de naturalidade para percebê-la como criação humana mutável. O segundo é identificar, em cada sociedade, maridos, esposas e filhos, e como as essas sociedades diversas concebem e combinam de forma variável o casamento, o parentesco, a resistência e a vida doméstica, privilegiando arranjos diversos dos nossos. “O fundamento para ‘desnaturalizar’ a família é, portanto, entender que a relação que conhecemos entre grupo conjugal, família, parentesco e divisão sexual do trabalho pode ser dissociada, dando origem a instituições muito distintas” (1983, p.16).

Todas as sociedades humanas conhecidas possuem uma divisão sexual do trabalho, uma diferenciação entre papéis femininos e masculinos. É também verdade que essas divisões são extremamente variadas, e dentro dessa diversidade há invariâncias. Não há qualquer exemplo comprovado de sociedade propriamente matriarcal, isto é, aquela em que as decisões estejam concentradas nas mãos das mulheres. A guerra e a política são essencialmente masculinas. No entanto, os cuidados com as crianças e sua socialização inicial são sempre de competência feminina, e os homens intervêm de forma auxiliar e complementar.

Parece necessário reconhecer que a variabilidade das formas concretas de divisão sexual do trabalho se constrói em torno de uma tendência praticamente universal de separação da vida social entre uma esfera pública, eminentemente masculina, associada à política e à guerra, e uma esfera doméstica privada, feminina, presa à reprodução e ao cuidado com as crianças (ibid., p. 17).

Segundo a autora, para entender a universalidade desses aspectos é preciso admitir que a construção cultural da divisão sexual do trabalho se elabora sobre diferenças biológicas, e a cultura organiza, orienta, modifica, ressaltando ou suprimindo características que possuem fundamentação biológica.

Esse ideário, segundo Oliveira (2004), consolidou um ideal moderno de masculinidade, e a família assume esse ideal de masculinidade. Família e papéis de gênero se traduzem como face de uma mesma moeda, forjada na modernidade. Observa qua há um processo em mudança:

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32 processo de erosão contínua, isto é, a figura patriarcal, símbolo fundamental do poder masculino (p. 103).

Na perspectiva de Giddens (1993), a idealização da mãe constituiu um fio condutor da construção moderna da sexualidade e alimentou indubitavelmente, de forma direta, alguns valores então propagandeados sobre o amor romântico. A imagem de mulher e mãe reforçou um modelo bissexual de atividades e sentimentos. As mulheres foram consideradas pelos homens como diferentes e desconhecidas – preocupadas com um domínio particular que a eles era alheio. A ideia de que cada sexo é um mistério para o outro é antiga e foi representada de modos diferentes, em diferentes culturas. O elemento distintivamente novo foi a associação da maternidade com a feminilidade enquanto qualidades da personalidade – isto, amplamente divulgado, sustentou, sem dúvida, algumas concepções sobre a sexualidade feminina. “O amor romântico essencialmente o amor no feminino” (p. 29). O autor faz uma distinção entre amor romântico e amor-paixão, em que este último nunca foi uma força social genérica do modo que foi o amor romântico, desde os finais do século XVIII até tempos relativamente recentes.

Ao contrário do amor paixão, que se desarraiga erraticamente, o amor romântico desliga de uma forma diferente os indivíduos de circunstâncias sociais amplas. Ele oferece uma trajetória de vida a longo prazo, orientada para um futuro antecipado e, apesar disso, maleável, cria uma “história partilhada”, que ajuda a separar a relação conjungal de outros aspectos da organização da família e lhe dá uma especial primazia (ibdi., p. 30).

O carácter intrinsecamente subversivo do complexo do amor romântico foi, durante muito tempo, contido pela associação do amor com o casamento, a maternidade, e pela ideia de que o amor verdadeiro, uma vez encontrado, era para sempre. Enquanto o casamento, era para muitos, efetivamente para sempre, a congruência estrutural entre o amor romântico e a parceria sexual era clandestina distinta.

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33 meio da divisão sexual do trabalho, sendo o domínio do marido, o da actividade remunerada, e o da mulher, o da casa. Ainda em Giddens:

Podemos ver quão importante era, a este nível, o acantonamento da sexualidade feminina ao casamento, enquanto marca da mulher “respeitável”. Porque ela permitia simultaneamente aos homens manter a distância da esfera germinante da intimidade e, às mulheres, guardar como principal objetivo o estado de casadas (ibid, p. 31-35).

Devido às necessidades e à dependência física demorada, agravadas pela absoluta necessidade de treinamento cultural sistemático para transformar um bebê em ser humano, as mulheres passam grande parte da vida adulta cuidando de mais de uma criança. Essas peculiaridades biológicas e culturais do processo reprodutivo dos seres humanos e o peso que elas representam para as mulheres certamente estabelecem condicionantes para a elaboração da divisão sexual do trabalho.

A modificação cultural desse padrão, provendo figuras substitutivas das mães ocorre, por exemplo, nas sociedades estratificadas e especialmente nas camadas dominantes. As mulheres são liberadas de pelo menos parte dessa tarefa com o papel desempenhado por amas-de-leite, babás, preceptores etc. No entanto, a divisão sexual do trabalho se mantêm, ao passo que outras mulheres se ocupam dessa função.

É preciso considerar que a divisão sexual do trabalho nunca se restringe a esses aspectos gerais, sua própria extensão e rigidez variam de uma cultura para outra, varia também a concepção do caráter feminino, os mesmos aspectos universais da divisão sexual do trabalho podem estar associados a concepção que atribuem à mulheres aspectos de seres frágeis e imaturos, como pode ser definido numa perspectiva contrária a essa. Reconhecer a existência de aspectos gerais da divisão sexual do trabalho e a generalidade da dominância masculina não implica aceitar que a submissão da mulher seja um fenômeno natural ou universal.

Segundo Durham:

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34 influência ou autonomia, de graus diversos de imposição e aceitação de autoridade real ou simplesmente formal (p.19).

Se existisse algum grupo natural na sociedade humana, não seria a família, mas aquele formado por uma mulher e sua prole imatura. Gestação, amamentação prolongada, proteção, alimentar e o carregar contribuem para criar laços relativamente duradouros entre mães e filhos. A relação entre o pai e os filhos não cria vínculos duradouros (apesar de sua necessidade, na procriação), ou seja, não apresenta a mesma relação que entre mães e filhos. Esse vínculo pode ser criado através de representações incorporadas nas noções de parentesco.

O que há de mais geral no casamento é que, em todas as sociedades, ele é concebido como pré-requisito para a legitimação da prole de uma mulher. Do mesmo modo que o tabu do incesto destrói a naturalidade das relações sexuais, a universalidade do casamento como pré-requisito para a procriação destrói a naturalidade das relações entre a mãe e seus filhos, atribuindo a homens determinados a responsabilidade para com a prole de cada mulher. O casamento, como um contrato, estabelece qual homem é responsável pelos filhos de qual mulher. Essa responsabilidade não é atribuída necessariamente ao marido e muito menos ao parceiro sexual. Nas sociedades matrilineares, por exemplo, grande parte dessa responsabilidade (e dos direitos correspondentes) é investida no irmão da mãe, e não no cônjuge.

A variedade dos arranjos possíveis, constatados empiricamente, nos conduz à necessidade de redefinir o conceito de família ou limitar sua aplicabilidade. Definir família como unidade de parentesco significa dar ao conceito uma referência formal, mais bem preenchida pelo temo introduzido por Levi-Strauss, “átomo de parentesco”. Significa privilegiar, no conceito, sua referência aos grupos responsáveis pela reprodução. Em todas as sociedades humanas, as crianças nascem e são os responsáveis imediatos e diretos pelos cuidados de que elas necessitam. A ênfase do conceito passa a recair sobre duas noções: a de grupo, segmento empiricamente delimitável e socialmente reconhecido, e a de reprodução (DURHAM, p. 26).

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35 No que tange à relação sexo e família, embora ambas as questões estejam obviamente relacionadas, possuem certa autonomia relativa e, para a compreensão da família, a análise da reprodução é bem mais esclarecedora que a da sexualidade. Constitui uma passagem do “estado de natureza” para o “estado de cultura”. O sexo se apresenta como possibilidade constante e permanente de relacionamento interindividual, e é um instrumento de vínculos sociais e de ameaça às regras preestabelecidas. Nesse sentido, a vida familiar implica sempre alguma forma de controle da sexualidade, mesmo que essa seja muito maior do que a problemática da família.

As famílias estão passando por processos de transformação importantes e rápidos, com mudanças oriundas do âmbito social geral, bem como nas estruturas de relações de gênero, consolidando outros modelos de família que não corresponde a uma estrutura heterossexual, bem como a chamadas famílias monoparentais que são expressivas nas camadas médias e na elite contemporânea. Compondo o que chamamos de modelos alternativos.

Como modelos são em primeiro lugar mutáveis; em segundo lugar, são construções sintéticas, nas quais a realidade social jamais cabe por inteiro. Por isso mesmo é que a existência de inúmeras exceções não significa necessariamente a contestação da regra; pode representar apenas sua aplicação maleável para permitir a solução de problemas diversos. No que diz respeito aos modelos que regulam a vida sexual e à procriação, suspeita-se, inclusive, de que a dificuldade de seguir o modelo ou a necessidade de acomodar um número muito elevado de exceções caracteriza não apenas a nossa, mas a grande maioria das sociedades. Parece que, nesse campo, estamos lidando com certo tipo de comportamento particularmente renitente às imposições sociais (ibid, p. 31).

Entretanto, em todas as sociedades as regras estão sendo constantemente quebradas e existe flexibilidade suficiente para incorporar grande número de exceções, sendo variável a frequência e o grau de tolerância, dimensão definida culturalmente.

No caso da sociedade brasileira, não se pode afirmar que esta fuja ao padrão de transformações que tem se apresentado para as diversas sociedades. Assim como o critério de classe, o componente étnico será definidor de padrões familiares e a composição desses nas relações de poder. O que convencionou-se chamar de “modelo hegemônico de família”, aqui também não se traduz na realidade de parte significativa da sociedade.

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36 Este trabalho está estruturado em cinco capítulos. O primeiro apresenta o debate sobre família, buscando compreender sua construção e sua especificidades na diáspora através de dados históricos. Percorre os caminhos teóricos de Klauss Wortmann, Robert Slenes, Florestan Fernandes, Philippe Ariès, Russel-Wood, Kathryn Morgan e outras análises que têm sido refêrencia no campo das Ciências Sociais, apontando suas controvérsias e possibilidades metodológicas para compreensão da família matrifocal contemporânea e a relação com o debate no campo de gênero.

O segundo capítulo apresenta o feminino através das fontes discursiva. A história da mulheres é a fonte por onde a construção desse feminino é apresentado, conforme Michelle Perrot, Schuma Schumaher, Teresinha Bernardo, Bell Hooks e outras. Ressalta-se a diversidade do feminino, apresentando dados desta construção, em destaque a história da mulher negra no Brasil e na diáspora.

No terceiro capítulo, as narrativas das mulheres são apresentadas junto a suas percepções e leituras do masculino negro, a partir da referência familiar.

O quarto capítulo tem o objetivo de revelar o masculino através das análise de Pierre Bourdieu, Robert Connell, Zygmund Baumam, Osmundo Pinho e Antony Giddens, entre outros. Assim como a feminilidade, a masculinidade é entendida em seu plural. Neste capítulo são identificadas aproximações e afastamentos da dominância masculina, bem como as alternativas de outras hegemonias.

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37 Capítulo 1 PERCORRENDO OS CAMINHOS DA FAMÍLIA NEGRA

1.1 Famílias negras: algumas imersões necessárias

Até a década de 1970, a promiscuidade era reconhecida como presente no dia a dia do cativeiro, a julgar pela informação de que os casamentos entre escravos seriam pouco comuns. Tal promiscuidade resultava do estágio de desenvolvimento do negro ou do próprio sistema, na qual o africano desenraizado encontrava-se junto a pessoas estranhas, em condições extremamente adversas (FREYRE, 1992).

Também a partir da década de 1970, novos estudos, baseados principalmente em novas fontes demográficas e focalizando especialmente o Sudeste do país, têm contestado a antiga visão da vida sexual e familiar dos escravos. Nessas novas análises coloca-se em questão o pensamento anterior, que afirmava não haver organização na vida familiar escrava. Slenes (1999), estudo intilulado Na senzala uma flôr realizado na região de Campinas, São Paulo, demonstra que havia vida familiar organizada nas senzalas, ao verificar que em propriedades médias e grandes a existência significativa de laços de parentesco que define como “parentescos simples”, aqueles entre conjugues, pai, mãe e filhos, apesar de identificar um desequilíbrio numérico entre homens e mulheres causado pelo tráfico de escravos. Apresenta dados qualitativos, sugerindo que a constituição de famílias (inclusive extensas, incorporando pessoas não aparentadas) interessava aos escravos como parte de uma estratégia de sobrevivência dentro do cativeiro.

O desequilíbrio demográfico também foi objeto de análise de Russel-Wood (2005). Em Escravos e libertos no Brasil colonial ele observa que, na realidade peruana do início do século XVII e as regiões de mineração do Brasil um século depois, havia uma predominância avassaladora de homens negros tanto na área rural como na urbana, e que a ocupação e os talentos estavam relacionados às oportunidades de mobilidade e de casamento.

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38 engenho apresentam laços de parentesco tanto entre pai, mãe, filhos, irmãos e parentes quanto entre casais de escravos casados legalmente ou que mantinham relação consensual – parceiros afetivos denominados “amásios” e “camaradas” pelos anúncios. A autora apresenta uma série de exemplos da situação que confirma sua tese. Um dos relatos apresenta a história das irmãs crioulas Maria e Luiza. Esta última, além da criança que levava no ventre, levou consigo um filho de um ano de idade. A autora apresenta muitos outros casos de mulheres escravas que fugiram levando seus filhos. É ilustrativo o exemplo abaixo:

Felicidade, africana nagô, propriedade de Bartholomeo Francisco Gomes, desapareceu com duas filhas, uma parda de nome Brígida, com 5 anos, outra crioula, com 2 meses, de nome Maria; Eudoxia, africana nagô, desapareceu da casa do padre José Dias com suas três filhas, Margarida de 7 anos, Omissias de 4 e Joana de 2 ( p. 34).

Esses são alguns exemplos de mulheres negras na condição de cativeiro que conseguiam fugir levando as crianças, na esperança de criar seus filhos como se fossem pessoas livres. Para a autora, não há indícios, no material analisado, de que a prática de fuga sem levar os filhos fosse recorrente.

Essas mulheres expressam, no comportamento rebelde, a inconformidade da condição servil à qual estavam submetidas, e buscam superar tal condição não na individualidade, mas em família, que também não pode ser entendida apenas pelos laços de sangue. Outro anúncio analisado relata a fuga de duas crioulas: Maria Joana, de 45 anos, e sua filha Custodia, de 20, que por sua vez levou uma filha de 2 meses. Essa ligação está expressa no trecho abaixo:

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39 Para a autora, a família e as afetividades escravas são fruto de rebeldia, em lugar de serem fator de acomodação.

Em estudo realizado na cidade de Taubaté, Maria Aparecida Papali (2003) em Escravos , libertos e orfãos: a construção da iberdade em Taubaté (1871-1895), apresenta a luta das mães, na pós-abolição, pela tutela de seus filhos, já que a prática de manter as crianças sob a guarda do senhor era estratégica para manutenção do trabalho escravo. Ao recorrerem à justiça, deparam com um sistema a serviço das estruturas de poder que será utilizado para manter as crianças separadas de suas mães. A identificação de liberta, preta e parda continha todos os preceitos preconcebidos em relação a essas mulheres. Seus filhos tornam-se crianças e jovens desvalidos, que deveriam ser dados a tutores para criá-los. A mulher negra perdia para o judiciário brasileiro e membros da elite o direito à maternidade.

Casar ou não, eis a questão, os casais e as mães solteiras escravas no litoral sul-fluminense, 1830-1881, um estudo de Márcia Cristina de Vasconcellos (2002) alerta para o fato de que pensar a família cativa deve ser considerado um desequilíbrio entre os sexos, decorrente da preferência do tráfico atlântico por homens e o desinteresse senhorial para dificultar a comercialização dos escravos. Isso não quer dizer que, mesmo com tais elementos adversos, não houvesse espaço para a formação de famílias e, consequentemente, para maior presença de crianças legítimas e de cativos casados e viúvos.

Os inventários na região do litoral sul-fluminense, região cafeeira de Mambucaba, analisados por Vasconcellos (2002), demonstram que a maior parte era de famílias matrifocais. Dos documentos analisados, 43 famílias eram constituídas apenas pela mãe e seus filhos e 12 por casais com ou sem filhos. Os dados acima são ilustrativos e demonstram a dinâmica e a complexidade em compreender o movimento de constituição da família negra. A autora identifica que, no final do século XIX, há um processo de diminuição de casamentos de mulheres crioulas e aumento de famílias matrifocais, dados obtidos através dos inventários.

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