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2. Coordenação Pedagógica e identidade docente: sobre a profissionalidade e a autonomia

2.1. Do mestre de ofício ao trabalhador docente

O professor, ao longo da construção e consolidação da escola como uma instituição da sociedade dedicada a uma educação sistematizada, viu-se submetido a várias formas de estrutura e organização escolar que lhe impuseram um jeito de ser e de agir profissionalmente (HYPÓLITO, 1997).

Nóvoa (1991)12 apresenta uma análise sócio-histórica da profissão docente e a trajetória de uma sociedade, onde a educação se faz por uma espécie de impregnação cultural,

12 Nóvoa (1991) fala do caso português, mas praticamente tudo o que diz serve para o Brasil, uma vez que o nosso desenvolvimento escolar seguiu a matriz da metrópole portuguesa (LÜDKE e BOING, 2004).

para uma sociedade com um sistema complexo de ensino estatal. O autor identifica a gênese da profissão docente como sendo anterior à estatização da escola, pois, desde o século XVI, diferentes grupos sociais, leigos e religiosos consagravam tempo e energia à atividade docente, erigindo o campo educativo como domínio de um grupo social específico e autônomo.

Ao apresentar uma análise das raízes histórico-culturais da concepção do magistério no contexto alemão, Kreutz (1986), por sua vez, identifica que a concepção do magistério como vocação/profissão foi construída por razões político-religiosa conservadoras e autoritárias. A origem histórica do magistério data do século XVI com o surgimento das escolas de ensino básico para a camada popular, com o intuito de instrumentalizar para a leitura de textos religiosos e, conseqüentemente, para a manutenção da influência da Igreja sobre os intelectuais e a grande massa da população.

As escolas eram de igrejas e conventos e os professores representantes dos respectivos cleros. Quando a escola passa a atender à camada popular e o clero não mais consegue atender a essas novas demandas, são os chamados colaboradores leigos que, de acordo com Kreutz (1986), faziam uma profissão de fé e um juramento de fidelidade aos princípios da Igreja. A imagem do professor, portanto, estava atrelada à idéia de missão a cumprir, como vocação- sacerdócio de caráter nobre e sublime com muita responsabilidade e abnegações, e sem muitas vantagens materiais. “Daí vem o termo professor, o que professa fé e fidelidade aos princípios da instituição e se doa sacerdotalmente aos alunos, com parca remuneração aqui, mas farta na eternidade” (KRENTZ, 1986, p. 13). Tal concepção de magistério também foi reafirmada por motivos políticos, quando se articulou, na Europa, como uma reação ao ideário liberal. Os conservadores, ao identificarem a Revolução Francesa e o liberalismo como origem de todos os males, formaram um projeto onde a figura do professor se torna vital para a missão de “debelar as investidas do liberalismo satânico” (KRENTZ, 1986, p.13).

Ainda segundo Kreutz (1986), entre 1830 e 1848, houve um crescimento dos movimentos de professores, os quais se caracterizavam pela adoção de princípios liberais, que passaram a lutar pela organização profissional e especialização de funções, pela rejeição das funções não-escolares, pela busca da autonomia da categoria e pela emancipação da tutela do Estado e da Igreja. Tais idéias opunham-se, portanto, à visão de professor estimulada pela Igreja e que era baseada na vocação, no sacerdócio e no paroquialismo.

Assim, no século XVIII, este modelo educativo passa a não mais responder às exigências econômicas dos aparelhos de produção, nem às demandas sociais da população. O Estado assume o lugar da Igreja e inicia-se o processo de institucionalização e de estatização dos sistemas escolares. É com a emergência dos sistemas de ensino que a profissão docente se desenvolve, sendo os processos de profissionalização e de funcionarização quase sinônimos, pois “tornar-se docente profissional significa, em geral, chegar a um posto de funcionário na administração pública” (NÓVOA, 1991, p.118). Assim, a passagem do ensino de obra religiosa ou humanitária a dever e direito do Estado, ou seja, a transformação em serviço público, ocasiona mudanças organizacionais de laicização e de um novo estatuto sócio- profissional de autonomia e de independência docente frente aos párocos.

No século XIX, como resultado de processos de transformação mais amplos, a sociedade apresenta mudanças nas formas de organização, tais como industrialização e organização do trabalho; mudanças políticas, tanto em termos de ideário iluminista e liberal quanto em termos de organização da sociedade em Estados Nacionais; mudanças culturais que repercutiram no modo de vida como conseqüência do processo de urbanização. A concepção liberal atendia às exigências do desenvolvimento da sociedade capitalista, urbana e industrial, que demandava um atendimento educacional elementar para as parcelas, cada vez maiores, da população trabalhadora. Em termos de educação, o pensamento liberal defendia a

escola pública e laica para todos e uma formação docente baseada em parâmetros técnico- profissionais e não em uma profissão de fé (HYPÓLITO, 1997).

Se, por um lado, a Igreja e suas corporações incentivam a docência como vocação e sacerdócio, por outro, o ideário liberal reivindicava um caráter mais técnico-profissional a atividade docente para atender às demandas advindas da expansão da educação básica.

Kreutz (1986) considera que essa concepção de magistério como vocação, ainda muito difundida hoje entre a sociedade e entre os próprios professores, dificulta a participação efetiva na organização da categoria profissional e na luta pelas reivindicações salariais e na organização do trabalho. Além disso, favorece a manipulação, a omissão e o autoritarismo do poder público na questão do ensino e do magistério.

Popkewitz (1997) analisa a escolarização de massa e a profissionalização como incorporadas às transformações sociais e econômicas durante o século XIX e início do século XX. As escolas foram instrumentos de controle moral e disciplina individual, baseadas nas relações do Estado, autoridade civil e disciplina moral, a partir da Reforma Protestante e das idéias introduzidas por Martinho Lutero. Assim, a educação pública surge como uma importante instituição para a transmissão das orientações culturais, valores e estilos das abordagens cognitivas associadas à modernidade. “Tudo isso combinado à convicção milenar de que a reforma social criaria bons cidadãos, caráter moral e hábitos de trabalho que levariam ao avanço individual” (POPKEWITZ, 1997, p.60). A escolarização de massa é, portanto, uma importante expressão do Estado Moderno, e era vista como parte do desenvolvimento democrático da sociedade. Assim, o desenvolvimento profissional dos professores vinculava-se às idéias de moralidade e autoridade no ensino.

Arroyo (1985) apresenta a constituição do professor como um trabalhador do ensino da instrução popular no Brasil Império do século XIX. O autor destaca o mestre do ofício de

ensinar, uma espécie de artesão, que desempenhava a função de ensinar muito integrada à comunidade:

Uma das características exploradas é a dedicação dos mestres. Na organização particular do trabalho pedagógico essa dedicação tinha um sentido concreto. Dessa dedicação eles viviam, e nela construíam seu nome, sua reputação profissional como mestres do ofício de ensinar. (...) A comunidade não entregava a educação de seus filhos a qualquer um. O mestre, o preceptor particular, tem que mostrar moralidade e dedicação com chefe de família, mãe, viúva, cidadão e mestre. O ofício a que ele se entregava era um ofício total (ARROYO, 1985, p. 24).

Assim, não se separava o espaço e o momento de ser profissional, sendo comum a escola na casa do professor como símbolo dessa inserção total do ato educativo nas relações globais. A dedicação ao ofício, a disponibilidade a qualquer horário, a prontidão para servir além da área de seu ofício, e um certo desprendimento material compunham a imagem desse profissional.

É sobre esse ofício já existente que o Estado vai organizar o modelo de escola e de profissional de ensino. “Em muitos casos o Estado oficializava o ensino que já era feito por mestres livres, escolhidos e pagos pelos pais e, sobretudo, por mestres feitos e formados na arte do ofício de ensinar” (ARROYO, 1985, p. 19). O autor exemplifica que, no período de consolidação do sistema de ensino primário, a aceitação do mestre se dava mediante requerimento dos pais com a indicação das qualidades, referindo-se à longa experiência no ofício de ensinar as primeiras letras ou à indicação do nome do professor a ser nomeado.

A questão da falta da titulação do mestre de ofício foi de certa maneira explorada pelo Estado, podendo-se ver o reflexo disso em sua trajetória até os dias de hoje. De mestre, de preceptor, passa a professor leigo, sendo exigido para o novo patrão, o governo e seus inspetores, um profissional qualificado no seu ofício, conhecedor do programa e do método oficial. Tem-se, então, um processo de desqualificação lento no período de configuração do sistema público de instrução, no qual se altera a relação educativa que passa a ser não mais um ofício, mas um emprego. O mestre de ensino tinha uma vinculação profissional com os

pais e alunos e com a comunidade, “(...) entretanto, dada a especificidade da nova relação de trabalho – sistema público – não deixa aquele vínculo para se vincular a uma organização rígida de trabalho” (ARROYO, 1985, p.35).

Para Arroyo (1985, p.47), a nova relação de trabalho não só desqualificou nominalmente – de mestre a professor leigo – “mas terminou desqualificando realmente na medida em que desprezou o saber, nascido do ofício de ensinar proveitosamente, e passou a valorizar o formal, a titulação, o rito”.

O que se pode observar é que à medida que os docentes vão se tornando assalariados e o Estado empregador, tanto mais vão se distanciando das comunidades, e, em termos de trabalho docente,

(...) o movimento histórico de constituição de um sistema de ensino público em expansão, baseado em princípios liberais e laicos, em consonância com o desenvolvimento do capitalismo e do processo de industrialização e urbanização, significou, de um lado, a busca de profissionalização dos docentes; de outro, o controle por parte do Estado sobre os profissionais do ensino, com a consolidação do assalariamento e da funcionarização (HYPÓLITO, 1997, p. 26).

Conseqüentemente, o prestígio social, a autonomia e o controle sobre o trabalho docente vão se perdendo à medida que a categoria aumenta quantitativamente, tornando-se assalariada, empregada pelo Estado e com sua profissão regulamentada. Pode-se observar também a redução do controle da comunidade sobre a educação de seus filhos (HYPÓLITO, 1997).

Como se percebe, a discussão sobre a profissionalização docente se faz presente ao longo da história da educação no Brasil. Hypólito (1999) considera que tal ênfase tem sido dada ora pelo movimento reivindicatório por melhores condições de trabalho para uma real profissionalização, ora pelos reformadores que quase sempre responsabilizam os docentes pelas mazelas educacionais, sendo a profissionalização a solução para todos os problemas nos diferentes níveis educacionais.

Em uma perspectiva crítica, a discussão sobre o trabalho docente e a profissionalização apresenta-se em duas vertentes: por um lado, a que vincula o trabalho docente ao estudo das profissões e, por outro lado, a que centra a análise no processo de trabalho, tendo a tese da proletarização como um de seus desdobramentos.