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2. Coordenação Pedagógica e identidade docente: sobre a profissionalidade e a autonomia

2.1. Os caminhos da profissionalização docente

2.1.2. O professor como trabalhador da educação

Em meados dos anos de 1980, no Brasil, a luta pelo reconhecimento do direito de organização sindical deu origem à defesa da categoria dos trabalhadores de educação, incluindo de professores a especialistas, secretárias e merendeiras. Segundo Oliveira (2003, p.26),

a ameaça de proletarização se contrapunha à profissionalização como condição de preservação e garantia de um estatuto profissional que levasse em conta a auto- regulação, a competência específica, os rendimentos, a licença para atuação, as vantagens e benefícios próprios, a independência etc. O pano de fundo dessa discussão parece residir na concepção que se tem de trabalho docente. A discussão acerca da autonomia e do controle sobre o trabalho é o ponto nodal.

Os estudos voltados para a análise do processo de trabalho no ensino tomam como pressuposto que a escola é um local de trabalho capitalista e que as atividades ali desenvolvidas constituem um processo de trabalho capitalista. Inspiram-se na obra de Braverman (1981), que parte da análise marxista sobre o trabalho no capitalismo e prossegue no exame das circunstâncias históricas de alteração dos modos de produção, os quais operam mudanças que constituintes de um processo de degradação do trabalho.

O debate sobre a proletarização dos professores diz respeito à sucessiva perda das qualidades que faziam deles profissionais e a deterioração de suas condições de trabalho. A tese básica dessa posição é a de que os docentes, enquanto categoria ocupacional, sofreram ou estão sofrendo uma transformação tanto nas características de suas condições de trabalho como nas tarefas que realizam, as quais os aproxima, cada vez mais, das condições e interesses da classe operária.

Nos estudos sobre a proletarização15, em que se destacam os autores M. Apple, M. Fernandez Enguita, J. Jáen, J. Ozga e M. Lawn, as mesmas categorias utilizadas para se criticar o processo fabril são empregadas para mostrar a transformação dos professores em trabalhadores proletarizados. Assim, considera-se a semelhança entre o trabalho docente nas escolas e o trabalho dos operários nas fábricas e os efeitos produzidos pela lógica racionalizadora em ambos os contextos, ou seja, a divisão do trabalho e a perda ou ausência da autonomia.

No caso do ensino, esta lógica racionalizadora, segundo Contreras (2002), refere-se tanto ao conteúdo da prática educativa como ao modo de organização e controle do trabalho do professor, favorecendo seu controle ao torná-lo dependente de decisões que passavam pelos especialistas e pela administração. Assim, “(...) o docente vê sua função reduzida ao cumprimento de prescrições externamente determinadas, perdendo de vista o conjunto e o controle sobre sua tarefa” (CONTRERAS, 2002, p.36). Esse processo de desqualificação intelectual dos professores, o aumento das formas burocráticas de controle sobre suas tarefas e a intensificação do trabalho docente favorecem a rotina do trabalho e o isolamento entre os colegas. A privação de suas capacidades intelectuais e a impossibilidade de pensar e de tomar decisões discutidas coletivamente geraram a perda da autonomia dos professores na realização de seu trabalho profissional.

É claro que tal situação gera modos de resistências e de organização por parte dos professores em função de seus interesses individuais e coletivos. Segundo os teóricos da proletarização, esta dinâmica iguala os professores à classe operária em suas reivindicações e lutas, tanto pela desqualificação equivalente quanto pela transformação em uma categoria

15 Cf. Fidalgo (2003), que estabelece uma interlocução crítica com os autores que analisaram o processo de profissionalização (dentro da lógica do estudo ocupacional e do processo de constituição das profissões) e proletarização (na perspectiva de estrutura de classes) dos professores, apresenta elementos para a construção de uma abordagem sócio-histórica do trabalho e do movimento docente.

com interesses e procedimentos de resistências semelhantes aos do proletariado. A reivindicação pelo seu status profissional docente pode ser considerada como mecanismo de resistência à racionalização, desqualificação e alienação do trabalho, encobrindo a crescente proletarização, a evolução para os estratos sociais inferiores e a feminização do magistério.16

Contreras (2002, p.51) pondera que, no contexto educativo, a proletarização é, sobretudo, a perda de um sentido ético implícito no trabalho do professor, e não somente a perda de competências técnicas e da separação entre concepção e execução. “A falta de controle sobre o próprio trabalho (...) se traduz no campo educativo numa desorientação ideológica e não só na perda de uma qualidade pessoal para uma categoria profissional”. O autor também ressalta que o resgate de habilidades e decisões profissionais pode se transformar em uma forma mais sutil de controle ideológico. Em outras palavras, “a recuperação de determinado controle pode não ser mais que a passagem da simples submissão a diretrizes alheias à autogestão do controle externo” (CONTRERAS, 2002, p.51). Por isso, o profissionalismo é algo que deve ser analisado tanto nos processos sociais e políticos como na retórica na qual se sustenta.

Enguita (1991) considera haver uma ambivalência acerca da ocupação docente, pois esta se posiciona em um lugar intermediário e instável entre a profissionalização, como expressão de uma posição social e ocupacional, da inserção em um tipo determinado de relações sociais de produção e de processo de trabalho, e a proletarização, que deve ser entendida livre das conotações superficiais que a associam ao trabalho fabril. Para o autor, um grupo profissional é uma categoria auto-regulada de pessoas que trabalham diretamente para o mercado em uma situação de privilégio monopolista, a partir da qual somente eles podem oferecer um tipo determinado de bens e serviços protegidos da concorrência da lei. Isto

16 Costa (1995) analisa a questão de gênero, classe e profissionalismos no trabalho de professoras e professores de classes populares. Cf. também: Lopes (1991a; b), Almeida (1991), Hypólito (1991).

significa que um grupo profissional é plenamente autônomo em seu processo de trabalho. Ao contrário, a classe operária não só perdeu ou nunca teve acesso à propriedade de seus meios de produção, como também é privada da capacidade de controlar o objeto e o processo de seu trabalho, da autonomia em sua atividade produtiva.

Assim, os docentes constituiriam uma categoria ocupacional que compartilha de características desses extremos: as semiprofissões, já que são grupos assalariados, freqüentemente parte de burocracias públicas, cujo nível de formação é similar ao dos profissionais liberais e são submetidos à autoridade de seus empregadores, mas lutam por manter ou ampliar sua autonomia no processo de trabalho e suas vantagens relativas à distribuição de renda, ao poder e ao prestígio (ENGUITA, 1991).

Ao questionar se os professores são integrantes da classe trabalhadora, Hypólito (1991) ressalta também a situação contraditória do professorado: os professores são integrantes da classe trabalhadora, porque estão submetidos a um processo de proletarização em pleno desenvolvimento, mas, por outro lado, não são integrantes da classe trabalhadora, pois eles ainda mantêm uma boa parte do controle sobre seu trabalho e uma certa autonomia.

Fidalgo (1993) também considera que a busca do profissionalismo docente como um processo extremamente contraditório tanto para os professores como para o Estado. Há uma contradição porque os professores buscam a autonomia e, ao mesmo tempo, aceitam a guarida do Estado para fugir ao controle da Igreja e dos poderes locais. Já em relação ao Estado, é contraditório porque ele busca respaldar os professores de certo prestígio e, por outro lado, interpõe obstáculos ao desenvolvimento de um estatuto profissional docente, tendo em vista a necessidade de controlar este processo. Ou seja, a estratégia do profissionalismo representa a necessidade de os professores conquistarem a autonomia e auto-determinação, mas também favorece a introdução de controles mais sutis por parte do Estado, embutidos em controles técnicos e ideológicos que legitimam a racionalização capitalista no interior da escola.

Popkewitz (1997) e Contreras (2002) afirmam que a profissionalização docente constitui-se em uma estratégia de controle dos professores, a maior categoria de servidores públicos, exigindo formas sutis por parte do Estado para gerenciar estes trabalhadores.